[Foto: Bruno Kelly]
Espécie salva da extinção é símbolo de soluções para cadeias produtivas na Amazônia em tempo de pandemia
O avanço da pandemia de Covid-19 na metrópole de Manaus, e de lá para os confins da Amazônia, coloca em xeque a saúde, a renda e as condições sociais de populações vulneráveis, como indígenas e ribeirinhos. Ao representar iminente ameaça à vida de quem cuida da maior floresta tropical do planeta, a expansão da doença pode turbinar fatores associados ao desmatamento, que tem registrado contínuo crescimento – antes e durante a epidemia – e preocupa o planeta na urgência de mitigar a mudança climática e seus efeitos desastrosos para uma humanidade já intensamente machucada pelo novo coronavírus.
Em cenário global tão grave e desafiador, proteger a saúde é um imperativo. Uma prioridade que expõe a busca por soluções e a capacidade de resiliência e superação dos povos amazônicos também na dimensão econômica, tendo agora o mundo digital como maior aliado.
Prova disso foi o anúncio, quinze dias antes da Páscoa, da venda online de um produto regional símbolo da união entre ciência e conhecimento tradicional: o pirarucu, peixe de grande porte que chegou à beira da extinção e hoje – com os estoques naturais recuperados – está na mesa da população e no cardápio de chefs de cozinha, com a garantia da produção sustentável, que também assegura o sustento econômico de milhares de famílias na floresta.
A Feira Digital do Pirarucu, com entrega em domicílio no mesmo dia, foi a solução encontrada por um grupo de manejadores que moram em reservas ambientais e vivem da captura legalizada do pescado, no propósito de escoar a produção que já tinha sido armazenada em frigorífico para venda na entressafra, em Manaus. O card com a mensagem divulgando a iniciativa chamou atenção nas timelines em meio a uma avalanche de posts, lives e estímulos digitais variados da vida em distanciamento social devido à epidemia. Por trás do produto amazônico, o apelo socioambiental se destacava pelo potencial de fazer a diferença na disputa por clientes no e-commerce.
Inovações para o cenário pós-Covid-19
“O mundo mudou: negócios e pessoas já não serão as mesmas e terão um olhar diferente para o que fazem”, observa o empreendedor Macaulay Souza, à frente da Onisafra, startup de Manaus que opera como canal para comercialização justa e transparente do extrativismo e agricultura familiar, com maior acesso e valorização dos produtos – entre os quais, ícones da alimentação amazônica, a exemplo do pirarucu, vendido na forma de postas, manta ou filé.
“Já tínhamos preparado a plataforma para aumento do fluxo de compras a partir de abril e a demanda devido aos cuidados na epidemia acelerou o processo, dobrando o número de pedidos desde o início da quarentena”, conta Souza. Além da venda avulsa, a lógica de pacotes comercializados por assinatura promove fidelidade de clientes, implicando na garantia de uma fonte de renda mais estável e duradoura para o pequeno produtor. Em paralelo, o modelo facilita a vida de uma classe ascendente de consumidores que busca soluções de compra sem sair de casa, com maior impacto positivo na inclusão social.
Em cenário que requer inovações, a startup ganhou impulso no programa de aceleração da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA), voltada a conectar investidores a negócios socioambientais com potencial de escala e retorno financeiro, no rumo do desenvolvimento sustentável.
O plano é chegar a 500 clientes por mês, na onda do crescimento do consumo pela internet, que atrai compradores interessados não apenas em roupas, eletrônicos, cosméticos e produtos de corporações multinacionais. A ferramenta digital, segundo Souza, não é trabalhada propriamente como um fim, mas como meio para se concretizar propósito: “Mais que tecnológico, o desafio é cultural no atual momento de mudanças na forma de se relacionar com a cadeia de alimentos”. Neste podcast, o empreendedor fala sobre a importância da reinvenção em situações de crise.
Nativo do município de Borba (AM), às margens do Rio Madeira, Souza inspirou-se na realidade local e na necessidade de soluções para escoar a produção de banana da família e amigos. Assim transformou em negócio uma inquietude que o acompanha desde a adolescência no meio rural até o período de aprendizados profissionais como técnico agrícola e depois na formação acadêmica em Agronomia, com a perspectiva de contribuir para relações comerciais mais inclusivas, ligadas à manutenção da qualidade de vida e da floresta em pé.
No caso do pirarucu, em destaque na vitrine digital ao lado de produtos hortifruti, polpa de açaí, granolas de tapioca e demais itens vendidos por associações e cooperativas da floresta, está em jogo um mix de conservação ambiental e tradição cultural. De tão arraigada no imaginário popular, o chamado “bacalhau da Amazônia”, capaz de atingir dois metros ou mais de comprimento, tem protagonizado campanhas de conscientização para cuidados na epidemia: “Contra o coronavírus, mantenha um pirarucu de distância”, recomendam cartazes difundidos nas redes sociais.
Dos manejadores aos chefs de cozinha
Nas residências, a espécie é fonte de segurança alimentar, ao lado do tambaqui e do popular jaraqui – aquele cuja lenda reza: “Quem come, não sai mais daqui”. No Amazonas, a iguaria é normalmente servida na forma de moqueca, iscas fritas ou em lascas do peixe seco dessalgado misturadas com farinha regional e banana da terra – o famoso “pirarucu de casaca”. Mais recentemente, as receitas ganharam padrão cosmopolita nas mãos de chefs de cozinha, como o amazonense Dedé Parente, reconhecido pela técnica de defumação da ventrecha (barriga) do pescado para fazer torresmo, na companhia de melaço de cana, gengibre e pimenta (veja a receita).
Na ponta inicial da cadeia do pirarucu estão os manejadores, ribeirinhos que transmitem a tradição de pai para filho e buscam formas de mantê-la viva. “O objetivo principal é chegar direto ao consumidor”, diz Edson Gonçalves, produtor da região de Tefé (AM), no médio-Solimões, anteriormente refém dos preços injustos pagos por barqueiros que passam nas comunidades para comprar a produção e revender na capital.
A aposta no comércio digital representa um passo à frente na estratégia de realizar feiras convencionais, em Manaus, para venda sem atravessadores. “São oportunidades de levar informação sobre o manejo sustentável da espécie para a sociedade, reforçando a importância das unidades de conservação e dos projetos socioambientais lá realizados”, explica Edvaldo de Oliveira, gerente do programa Floresta em Pé, da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) – organização não governamental parceira na venda digital do pirarucu. A alternativa, adotada na epidemia para suprir o consumo das pessoas mantidas em casa, pode se incorporar definitivamente como mais um canal destinado a escoar o produto que chega de comunidades ribeirinhas.
Em cinco unidades de conservação estaduais do Amazonas, com destaque para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, na região de Tefé e Fonte Boa (AM), a FAS apoia a infraestrutura comunitária de produção com investimento em barcos, apetrechos de pesca, sistemas comunicação e local de armazenagem, além de contribuir na gestão comercial e acesso a mercados, como redes de hotéis e restaurantes. Em 2019, as feiras de pirarucu abertas ao público na sede da ONG, em Manaus, venderam cerca de 33 toneladas, beneficiando 79 famílias com uma renda total de R$ 272 mil.
Cerca de 24% do ganho total dos manejadores que participam das feiras se refere ao valor da pele, comercializada junto a um curtume que fornece couro de pirarucu a grifes da moda, como a carioca Osklen, para compor peças de alto valor agregado com a pegada da origem amazônica. O projeto agora é implantar etiquetas nas peles para garantia da rastreabilidade como diferencial de mercado e maior valorização do produto.
Para Wildney Mourão, coordenador de empreendedorismo da FAS, o momento é de repensar modelos de negócio. “Armas digitais precisam ter alma, com propósito e princípios que norteiam as vendas com vantagem competitiva para os produtos amazônicos no contexto de toda a exposição que se vê atualmente na internet”, explica. Um exemplo é o aumento das vendas do Jirau da Amazônia, vitrine virtual que integra o marketplace das Lojas Americanas contendo artesanato, farinha, objetos de decoração e outros itens da produção ribeirinha em reservas ambientais apoiadas pela ONG, que em abril lançou campanha para enfrentamento do coronavírus junto aos povos da floresta.
A retomada da produção comercial
As atuais oportunidades que surgem em torno do pirarucu resultam da interação entre comunidades tradicionais e cientistas – um casamento que recuperou os estoques da espécie na natureza e permitiu a criação de regras seguras para a produção comercial sustentável. “O manejo não só protege a espécie, como ajuda no desenvolvimento do território e na conservação da floresta, pois as árvores frutíferas da margem de várzeas e lagos alimentam peixes que são predados pelo pirarucu”, ressalta Ana Claudia Torres Gonçalves, coordenadora do programa de manejo de pesca do Instituto Mamirauá, em Tefé (AM).
Com base no conhecimento das populações locais sobre o comportamento da espécie na natureza, os pesquisadores chegaram a novas informações biológicas e desenvolveram uma metodologia de captura baseada em três pilares: vigilância dos lagos pelas comunidades, contagem de peixes e definição de cotas para captura em determinadas áreas autorizadas pelo órgão ambiental, entre agosto e novembro, respeitando-se o período de reprodução e o tamanho mínimo do peixe.
“Foi uma resposta que possibilitou a retomada da captura do pirarucu após a proibição legal, decretada em 1996, em decorrência da drástica redução dos estoques naturais”, conta Gonçalves. Ela lembra que, além de promover segurança alimentar, as práticas de manejo sustentável acabam favorecendo outras espécies que compartilham os ambientes aquáticos, como quelônios, botos e peixes-boi. A biodiversidade é protegida na esteira da perspectiva de ganho econômico e empoderamento social.
No ano passado, a produção cresceu 26% nos locais acompanhados pelo Instituto Mamirauá. Em todo o Amazonas, existem 34 áreas de manejo com permissão para captura de pirarucu, totalizando em torno de 2 mil toneladas, em 2019 – cerca de 70% nas RDS Mamirauá e Amanã. No entanto, frente uma fiscalização falha por parte do poder público, estima-se que pelo menos o dobro dessa quantidade foi injetado no mercado de forma não legalizada, sem critérios de sustentabilidade.
O desafio de melhorar a renda de quem produz corretamente esbarra na concorrência do produto ilegal, adverte Gonçalves. Isso sem falar da competição com empreendimentos de produção de pirarucu em cativeiro, que podem fornecer pescado o ano inteiro, mas há custos de insumos e assistência técnica, riscos de impactos ambientais negativos e, além disso, o lucro fica na mão do dono do negócio – sem a governança comunitária que marca a atividade nas reservas ambientais credenciadas.
“O manejo sustentável do pirarucu na natureza está em linha com mercados que buscam produtos orgânicos e saudáveis”, afirma a coordenadora. Uma maior valorização, como ela defende, é elemento-chave para remunerar e manter ativo o detalhado processo de manejo, cujos custos não estão sendo cobertos pelos preços pagos no mercado. O cenário demanda inovações: “Além de mapear novos segmentos para o consumo da carne, por meio do desenvolvimento de cortes especiais, pesquisadores estudam o potencial da espécie como fonte de colágeno para cosméticos”.
A barreira da conectividade digital
A tecnologia é um caminho para superar distâncias e fazer o produto chegar ao consumidor, o que requer avanços mais expressivos na conectividade digital. “Na Amazônia, a infraestrutura de telecomunicação é um grande gargalo”, atesta João Guilherme Silva, diretor-presidente da Processamento de Dados Amazonas (Prodam). A banda larga fixa cobre a capital, Manaus, e a sede de dez dos 61 municípios do interior – tecnologia que no contexto estadual representa somente 351 mil acessos (32,7 acessos por 100 domicílios), segundo dados de fevereiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
No projeto Amazônia Conectada, lançado em 2015 pelo governo federal sob a coordenação do Exército, a meta é instalar 9 mil quilômetros de fibra óptica, abrangendo 52 municípios. Desse total, 10% estão implantados, mas não em operação. A iniciativa não avançou devido a questionamentos do Tribunal de Contas da União que resultaram em mudanças de gestão e na escolha pela licitação internacional, o que permitiu a redução do orçamento de R$ 1,5 bilhão para R$ 500 milhões. “Diante da emergência do novo coronavírus e do papel da conectividade em manter atividades minimamente ativas, esperamos que o processo seja agora retomado para mudar a realidade da região”, afirma Silva.
Há necessidade de investimentos em comunicação por satélite ou torres de rádio para levar internet a comunidades isoladas no interior da floresta – e não apenas a cidades, atendidas em parte por pequenos provedores privados que atuam na região. Além de benefícios como a emissão de documentos e assistência à saúde por meio da telemedicina, a conectividade digital pode impulsionar transações comerciais nos negócios associados às diversas cadeias produtivas da Amazônia. “Uma boa conexão ajudaria muito na troca de email, envio de imagens e acesso a contas bancárias”, aponta Marcos Paulo Barros, presidente da associação da RDS Rio Madeira, sem saber o que fazer com a produção da roça que periga apodrecer, sem escoamento, devido à epidemia.
No fim de março, o governo estadual decretou a suspensão do transporte fluvial no combate à proliferação do novo coronavírus, situação de risco que acendeu luzes para um futuro diferente. “Hoje nossos celulares servem basicamente para mandar mensagem, ouvir música e usar aplicativos de jogos”, diz Barros, aproveitando o momento sem aulas na escola local para “roubar” sinal de internet obtido do sistema de educação à distância por satélite que atende a comunidade. Com wi-fi, é possível minimamente resolver problemas como os que agora afetam a comercialização da banana, principal fonte de renda da região. No ano passado, foram produzidos 400 mil cachos. “Peixe e farinha temos em fartura e ninguém morre de fome, mas o dinheiro da produção é essencial para comprar açúcar, café e outros gêneros, e pagar o óleo do gerador ou a conta de energia”.
“Uber fluvial” se torna realidade
Quando a epidemia passar, a conectividade digital deverá permanecer como forte aliada, impulsionando negócios inovadores como o NavegAM: aplicativo que gerencia a venda de passagens e frete de embarcações, permitindo identificar a localização nos rios e acompanhar o trajeto em tempo real até o ponto final – tecnologia apelidada de “Uber fluvial”. “A ideia surgiu quando passei no concurso público e perdi a vaga porque não achei a tempo informação sobre a disponibilidade de barco para a viagem de quatro dias até a localidade no interior”, conta o empreendedor Geferson Oliveira. Com uso inteligente de tecnologia SMS, o plano é faturar neste ano 45% a mais do que em 2019, quando a receita foi de R$ 250 mil. “Poderíamos ir muito além na cobertura do serviço se houvesse maior infraestrutura digital na região, onde os barcos são praticamente o único meio de transporte”, enfatiza Oliveira.
Dezoito cadeias produtivas da Amazônia foram mapeadas como potenciais usuárias, com uma vantagem principal: a negociação direta entre os vendedores – que precisam transportar a carga até os compradores – e as embarcações, sem necessidade de intermediários. Além da agilidade logística no acesso a mercados, cooperativas e associações de produtores alcançam maior autonomia comercial, com venda por melhores preços. Os ganhos já foram testados para o café e o cacau – e podem também beneficiar o pirarucu, que em abril estreou no comércio online. No ritmo do vaivém das águas, regente da vida cotidiana na Amazônia com suas longas distâncias, a rapidez da informação na internet se soma à cultura da floresta e o que ela tem a oferecer.
A seguir, galeria de fotos de Bernardo Oliveira sobre o manejo do pirarucu na RDS Amanã: