A condição de pequenos agricultores, comunidades tradicionais e povos indígenas se agrava na medida em que o já precário escoamento de sua produção agroextrativista é duramente atingido
Os impactos da pandemia de Covid-19 na Amazônia são particularmente severos a agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais, como os quilombolas. Estes grupos já são vulneráveis dada a sua histórica exclusão, assolados pela negligência do poder público e menoscabo da maior parte da sociedade. Sofrem com acesso limitado a serviços de prevenção, da saúde e entraves logísticos que dificultam inclusive a chegada de apoio, na forma de entrega de cestas básicas ou repasse direto de recursos financeiros.
A condição desses grupos se agrava na medida em que o já precário escoamento de sua produção agroextrativista familiar está sendo duramente atingido. Diversas comunidades vêm adotando o isolamento social para evitar a contaminação, reduzindo drasticamente as possibilidades de geração de renda pelas limitações de comercialização. Em comunidades quilombolas do Baixo Tocantins, mesmo a produção ao autoconsumo está duramente impactada, uma vez que a agricultura é coletiva, e agora se evitam mutirões.
A ribeirinhos, como os marajoaras, a dependência do atravessador pode levar a receitas menores ao mesmo tempo em que, na maré pandêmica, este intermediário se coloca em risco de contaminação e de se transformar em vetor da doença às populações tradicionais.
Brasil da agricultura familiar
Destaca-se que a agricultura familiar provê 70% dos alimentos da mesa do brasileiro, mobilizando quase três quartos dos trabalhadores do campo, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, de 2016, o que a torna imprescindível ao abastecimento das cidades e à economia nacional, embora seja pouco reconhecida como tal.
A perda da sustentabilidade das atividades tradicionais agroextrativistas pode relegar centenas de milhares de famílias de agricultores familiares e povos tradicionais da Amazônia à vulnerabilidade extrema, sujeitando-os à dependência de auxílio emergencial público, à busca de alternativas econômicas por vezes predatórias, ao êxodo rural e à urbanização precária. Além disso, acarreta insegurança alimentar e a hábitos alimentares pouco saudáveis, que pioram os indicadores relacionados à segurança, soberania alimentar e saúde, a ser intensificado neste tempo pandêmico.
O quadro do descaso com povos e comunidades tradicionais se agrava diante do crescente desmonte das políticas de proteção, de comando e controle de queimadas, desmatamento e invasão de terras públicas. A tentativa de regularização da grilagem como política de Estado, da defesa do garimpo e outras contravenções afrontam toda a Nação Brasileira por descumprirem a Constituição brasileira.
Evidenciar boas iniciativas
É urgente multiplicar as iniciativas de organizações da sociedade civil, de empresas e organizações públicas na valorização da produção local, tais como a priorização da compra da agricultura local, o fomento ao associativismo, o fortalecimento das capacidades produtivas e a ampliação dos canais de comercialização. Tais ações contribuem para a garantia de mais voz e dignidade aos atores na base da cadeia. Espera-se, no desenvolvimento dessas práticas, contar com empresas e poder público atuando de forma coordenada na valorização da agricultura familiar, além de consumidores mais conscientes de suas escolhas e com maior acesso à produção local.
Políticas de apoio à agricultura familiar como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) são estratégicos para a soberania alimentar, o combate à pobreza e erradicação da fome. Em movimento contrário, o poder público segue preterindo os agricultores familiares da Amazônia (e do Brasil) em prol de eventuais panaceias grotescas como “ir passando a boiada” e o Brasil tende ao retrocesso, com a cruel previsão de retorno ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), de onde havia saído em 2014.
A quebra de cadeias agroextrativistas de produtos amazônicos significa imediatos desabastecimento, inflação e desemprego. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reitera que evitar a escassez no suprimento de alimentos depende de medidas adicionais relacionadas à proteção dos trabalhadores, a fim de evitar o risco de exposição à Covid-19 e fortalecer as práticas existentes de higiene e saneamento de alimentos.
Além das ameaças à segurança alimentar e escoamento da produção, a pandemia evidenciou a situação lastimável das condições de saneamento básico na maioria dos municípios amazônicos. A inexistência ou precariedade desse importante serviço influencia diretamente nas condições de higiene necessárias à contenção do contágio. Iniciativas para implementação, regularização e fiscalização dos serviços relacionados à saúde pública tornaram-se, mais do que nunca, inadiáveis.
Para povos e comunidades tradicionais, muitas vezes distantes de unidades de atendimento à saúde e de hospitais, a difusão do conhecimento sobre medidas eficazes para contenção do vírus, como higienização pessoal e dos alimentos, uso de máscara e distanciamento social, poderá reduzir o contágio e a proliferação dos casos no estado.
Torna-se necessário que os meios de comunicação, empresas, organizações, associações e demais atores estabeleçam protocolos cotidianos para colaborar com a permanência do escoamento da produção da agricultura familiar e, ao mesmo tempo, colaborar com medidas de prevenção. Assim, teremos chance de evitar que o vírus siga as rotas de escoamento das diferentes produções do estado.
Povos e comunidades tradicionais convivem com a biodiversidade amazônica e acumulam saberes e práticas relevantes à manutenção da biodiversidade e de sua reprodução social. Impactos nesta relação desencadeiam medidas extremas para sobrevivência. A ciência vem confirmando como o conhecimento da biodiversidade da Amazônia resultou de dezenas de séculos de aprendizado e convivência com a última grande floresta tropical do planeta, inclusive com a dispersão planejada de espécies de interesse humano.
A produção com bases sustentáveis e agroecológicas, a valorização dos saberes dos povos e comunidades tradicionais são as nossas melhores apostas para a agricultura e a regeneração amazônicas, que garantam hoje, como garantiram ao longo da história, a biodiversidade, a soberania alimentar, a saúde e a dignidade humana.
*João Meirelles Filho, escritor e diretor-geral do Instituto Peabiru; Flora Bittencourt, bióloga; Manoel Potiguar, sociólogo; Mariana Buoro, internacionalista; Mariana Faro, comunicóloga.
Todos os colaboradores compõem o Comitê de Crise para Covid-19, constituído pelo Instituto Peabiru
[Foto: Instituto Peabiru/ Alan Kardec]