Esforço global das Nações Unidas une agendas da biodiversidade e clima para impulsionar investimentos na reposição da floresta perdida. Na plataforma Restaura Brasil, liderada pela TNC, a meta é recuperar 1 bilhão de árvores até 2030
No ano em que o mundo se volta à corrida da vacinação para livrar-se da Covid-19 e retomar o desenvolvimento, é dada a largada para um outro esforço global com impacto na saúde, qualidade de vida e renda. Na Década da Restauração de Ecossistemas, declarada pela ONU como estratégia de mobilizar lideranças para conserto dos estragos aos ambientais naturais do planeta, reconstruir florestas com plantio de mudas e outras técnicas regenerativas é uma preocupação não mais restrita à bolha ambientalista. O desafio se amplifica no mundo dos negócios, na onda dos investimentos destinados a revitalizar a economia com uma pegada verde e inclusiva, diante do apelo que bate mais forte na porta das empresas: a urgência da mitigação climática.
O objetivo da iniciativa da ONU, desenhada por 71 países, é reforçar planos internacionais como o The Bonn Challenge, que reúne compromissos para recuperar 350 milhões de hectares de floresta, o equivalente a dez Alemanhas, até 2030. A estimativa é a retirada de 13 bilhões a 26 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa da atmosfera, no período.
A conservação, restauração e manejo sustentável de florestas podem criar US$ 230 bilhões em oportunidades de negócios e 16 milhões de empregos em todo o mundo até 2030, segundo o Fórum Econômico Mundial, que criou uma aliança de corporações para conservar e restaurar 1 trilhão de árvores nesta década.
Em paralelo, na Iniciativa 20×20, empresas privadas, doadores e fundos de investimento já se comprometeram a investir mais de US$ 2,6 bilhões para recompor a natureza em 50 milhões de hectares na América Latina – movimentos que refletem o boom da restauração florestal como ferramenta para enfrentar a mudança climática e gerar receita, com benefícios também às grandes cidades.
Engajamento de investidores
Parte expressiva do desafio está no Brasil. O compromisso climático do País no Acordo de Paris prevê o reflorestamento de 12 milhões de hectares até 2030, incluindo uma parcela do passivo a ser restaurado nas propriedades rurais, conforme o Código Florestal: no total, 17,4 milhões de hectares, quase o tamanho do Paraná, segundo a Universidade de São Paulo. Existem ainda 42 milhões de hectares de áreas com severo grau de degradação que poderiam se beneficiar da restauração.
“Falta trazer os produtores rurais para o jogo, por meio de crédito, acesso a tecnologias e retorno econômico”, afirma Rubens Benini, líder de restauração florestal na The Nature Conservancy (TNC), ao lembrar que as oportunidades estão principalmente em terras privadas.
Na plataforma Restaura Brasil, coordenada por Benini, o objetivo é mobilizar pessoas e empresas no esforço de reconstruir floresta com meta de recuperar 1 bilhão de árvores, o equivalente a 400 mil hectares, até 2030, por meio de doações. “A agenda vive um momento bastante favorável, diante dos aprendizados com a pandemia e dos riscos futuros da destruição de hábitats naturais”, analisa Benini, ao lembrar o papel da restauração na captura de carbono da atmosfera pelas árvores em crescimento, além dos benefícios à biodiversidade e água.
A estratégia online aproxima doadores de recursos financeiros (empresas, indivíduos, governos e organizações internacionais), produtores rurais e políticas públicas locais voltadas à recuperação de floresta. Os projetos nas diferentes regiões do País têm acesso a um click no mapa da campanha e são tecnicamente monitorados por um sistema de gerenciamento, com apoio da academia e redes de instituições, como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e a Aliança pela Restauração da Amazônia. “O objetivo é dar escala à atividade, com base científica e viabilidade econômica”, completa o coordenador.
Até o momento, a iniciativa possibilitou devolver 265 milhões de árvores à natureza – parte delas, por exemplo, no projeto Conservador da Mantiqueira, coordenado pela TNC e que integra 425 municípios de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro à restauração de 1,5 milhão de hectares de floresta, em dez anos. “É uma grande articulação de atores, fornecendo suporte a políticas públicas para aumentar a eficiência e reduzir o custo de repor árvores, bem como contribuir à adequação legal das propriedades”, explica Adriana Kfouri, gerente do projeto.
Desta forma, importante ao abastecimento hídrico das duas principais metrópoles brasileiras, a região da Serra da Mantiqueira atrai um novo ciclo econômico depois do café e do gado: o mercado de carbono, aquecido pelos investimentos de empresas na neutralização de gases de efeito estufa por meio de árvores, facilitados pelas oportunidades de parcerias e pelo potencial de áreas aptas à recuperação na Mata Atlântica, hoje reduzida à 12,4% da original.
Vínculo com a segurança alimentar e mudança climática
No mundo, a Década da Restauração dos Ecossistemas olhará para 2 bilhões de hectares de áreas degradadas, o dobro do território de toda a Europa. “O movimento interage com o desafio de aumentar a produção de alimentos e fortalece agendas multilaterais já em curso, como a da biodiversidade, clima, agricultura familiar e combate à desertificação”, observa Matheus Couto, representante do Centro de Monitoramento da Conservação Mundial, da ONU, no Brasil.
Ele explica que a mobilização global em torno da iniciativa pretende levar o tema às escolas, jornais e redes sociais, além de reforçar a troca de informações e a capacidade de restauração, em sinergia com o setor privado. “O esforço deve ser compartilhado por todos, sem depender apenas de governo”, afirma Couto, ao lembrar que a questão vai além do carbono e da segurança hídrica e tem “relação direta com a saúde dos ecossistemas e da população”.
Desde 1950, o planeta perdeu cerca de 500 milhões de hectares de florestas tropicais, área 20 vezes maior que a do Reino Unido – perda impulsionada pela demanda de commodities como madeira, óleo de palma, soja, carne bovina e minérios, entre outros exemplos. De acordo com a ONU, 23% dos habitats naturais da terra podem desaparecer até 2100. “Os próximos dez anos serão marcantes para o resto do século na necessidade de manter o aquecimento global abaixo dos 2 graus”, enfatiza Couto.
As pressões para repor florestas e incorporar a biodiversidade às contas nacionais e à pauta empresarial vêm de várias partes. A tendência, segundo analistas, é de influenciar o comércio exterior, diante da virada de chave da política ambiental dos Estados Unidos e das sucessivas diretivas da União Europeia no propósito de liderar a luta contra o desmatamento global, não mais como uma preocupação de nicho para o bloco.
No One Planet Summit, realizado em março, em Paris, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, foi enfática ao descrever um mundo com declínio da saúde física e mental e mais pobreza, guerras e pandemias:
“Quando perdemos florestas, não perdemos apenas espaço verde ou hábitat natural, mas também um aliado fundamental contra a mudança climática. Quando as temperaturas sobem e a natureza desaparece, sofremos mais desastres naturais e doenças zoonóticas e, se não agirmos com urgência, podemos já estar no início de uma era de pandemias”.
Importância para a economia
Novo relatório da ONU, divulgado em fevereiro, reforça que a degradação ambiental impede erradicar a pobreza e a fome, reduzir as desigualdades e promover o crescimento econômico sustentável, com trabalho para todos e sociedades pacíficas e inclusivas. O documento apela para uma ação conjunta de empresas, comunidades, indivíduos e governos, com inclusão do capital natural nas métricas de desempenho econômico, precificação do carbono e transferência de trilhões de dólares em subsídios de combustíveis fósseis e agricultura não sustentável para alternativas limpas.
O encontro da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) previsto para o fim de outubro, na China, fará eco à valorização dos serviços ambientais prestados pelos ecossistemas, como a provisão de água e a captura de carbono. Mais do que a extinção ou não das espécies, o foco estará nos impactos aos benefícios que elas prestam. Dados da ONU indicam que as Soluções baseadas na Natureza (SbN), entre as quais a restauração florestal está incluída, podem entregar 37% dos esforços de mitigação climática, com potencial de marcar investimentos em infraestrutura e produção na retomada econômica pós-pandemia (saiba mais sobre SbN aqui).
Segundo dados do WWF, cerca de US$ 44 trilhões da produção econômica mundial, ou pouco mais da metade do PIB global, depende diretamente do que a natureza fornece e os impactos à biodiversidade causam perdas que em breve poderão superar US$ 479 bilhões anuais. De acordo com a organização, a transição das economias mundiais por meio de uma combinação de restauração de ecossistemas, agricultura regenerativa e economia circular tem custo estimado em US$ 2,7 trilhões ao ano, com criação de 395 milhões de novos empregos e receita anual na casa dos US$ 10 trilhões em negócios.
A estimativa da ONU é de que as ações em torno da Década da Restauração de Ecossistemas possam gerar US$ 9 trilhões em serviços ambientais e retirar de 13 bilhões a 26 bilhões de toneladas de gases do efeito estufa da atmosfera, no período.
Brasil, fronteira da restauração
O contexto global é favorável a oportunidades no Brasil. “Não existe país mais preparado para entrega de larga escala neste desafio, com alto nível de conhecimento científico”, observa Miguel Calmon, consultor do programa de florestas do World Resources Institute (WRI Brasil).
Para ele, o atual momento é fruto do aprendizado na década anterior, após o marco do Global Partnership on Forest and Landscape Restoration, primeira iniciativa a trazer o conceito mais amplo de restauração de paisagem, em 2003.
“Devemos agora trazer os compromissos do limbo para o chão”, ressalta Calmon, ao lembrar que a Década da Restauração tem como motor as políticas de ESG das empresas compelidas a reduzir e neutralizar emissões de carbono. Além dos avanços da ciência, o trabalho em rede tem sido fundamental no cenário dos diferentes biomas, ecossistemas e paisagens do País. Um exemplo é o lançamento do Observatório da Restauração e Reflorestamento, nesta terça-feira, dia 9 de março, pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Pela primeira vez, o País saberá onde, como e quanto repõe de árvores como suporte ao alcance de suas metas.
O monitoramento abrange não somente o plantio de árvores como as áreas em regeneração natural, aquelas já anteriormente degradadas e abandonadas por atividades como a extração de madeira e pecuária. De acordo com o Mapbiomas, a vegetação secundária que se recupera por si só cobre 9% do País e, em alguns casos, como em regiões da Amazônia, pode ser alvo de projetos que potencializam essa regeneração sem a necessidade de mudas ou sementes, com menor custo.
Da produção agroflorestal à venda de créditos de carbono, o uso econômico e sustentável dessas áreas, como fonte de novos negócios e geração de renda, incluindo a monetização de serviços prestados pela floresta ao planeta e a quem compartilha localmente o território, é visto como atrativo-chave ao engajamento. “A Década da Restauração traz uma nova abordagem positiva à questão ambiental, tradicionalmente restrita à conservação da natureza sem considerar as pessoas”, aponta Pedro Brancalion, pesquisador do Laboratório de Silvicultura Tropical da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (SP).
Para Brancalion, a mensagem desse esforço global “deve ser muito clara, pois dele dependerá o futuro da humanidade”. Em sua análise, para a agenda da ONU avançar serão necessários três pontos: “Realçar o papel das florestas tropicais como poderosa ferramenta na mitigação climática, promover a agricultura sustentável de modo a influenciar relações comerciais das commodities, e fisgar o público geral com visibilidade de mídia”.
No Brasil, lamenta o pesquisador, a percepção da sociedade para a restauração das florestas é como no saneamento básico, “serviço de importância mais do que evidente, mas de baixo acesso pelos brasileiros”. A mudança da realidade, diz ele, passa pelas empresas. Muitas superam o marketing de fornecer mudas como brinde e começam a buscar parcerias para estratégias de larga escala, com a visão de que restaurar dá lucro. “A iniciativa privada quer fazer, mas com eficiência operacional, baixo custo e envolvimento de comunidades locais”, afirma Brancalion.
No pós-pandemia, o cenário de riscos à vida influenciará, cada vez mais, as decisões. Restaurar entra para o centro da agenda, diante do que já foi destruído no planeta e do potencial dessas áreas para o crescimento de novas florestas como sumidouros de carbono. É bom para o clima, mas apenas recobrir com árvores não é suficiente, e os pesquisadores alertam: é preciso cultivar a cultura de conservar e proteger, até porque sem ela o que está sendo recuperado hoje corre o risco de não existir amanhã.