A Amazônia Legal sofre com o acesso a informações que deveriam embasar políticas públicas e investimentos privados, comprometendo o seu desenvolvimento e o do País. O lançamento da plataforma Amazônia Legal em Dados reúne, de forma inédita, dados dispersos e permite correlações que apoiem a tomada de decisão
É pela observação atenta e sensível que Cleudilon de Souza Silveira consegue imitar o som de 37 pássaros diferentes. Mais conhecido como Passarim, o artista sabe quão necessário é ouvir antes de começar a cantar. Assim como ele, todo bom gestor público ou privado sabe que, antes de planejar e executar, é preciso observar atentamente os dados da realidade. Números ajudam a formar diagnósticos, mapear as demandas e calcular as oportunidades. Mas, e quando esses dados não estão disponíveis? É como se fosse um voo cego, com grande chance de não levar a lugar nenhum.
Com sua cantoria, Passarim abre lindamente os trabalhos do webinar Amazônia Legal em Dados, realizado em 24 de fevereiro por Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com a Página22. O evento marca o lançamento da plataforma desenvolvida pela empresa MacroPlan, que vem trazer luz aos dados amazônicos.
Composta por nove estados (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), a Amazônia Legal é das regiões que mais sofrem com o acesso às informações, as quais deveriam embasar políticas públicas e investimentos privados. A carência de dados sistematizados compromete o seu desenvolvimento e, por consequência, o desenvolvimento do País. Mas é preciso voltar os olhares para a Amazônia, que ao mesmo tempo simboliza todo um país, como mostra a arte colagem de Rakel Caminha:
A gestora pública e pesquisadora Tatiana Schor sabe bem disso. Secretária de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas, ela enfrenta as dificuldades causadas pela alta informalidade da economia local, mas também pela escassez de informações da economia formal. “O problema de dados na Amazônia é enorme – em tudo, da saúde à economia. Além disso, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] tem sido cada vez mais podado”. Para ela, a plataforma abre uma porta importante que é monitorar os dados úteis e necessários para o desenvolvimento regional. “Informação é poder, é política e é possibilidade de transformação”, diz.
Schor vê a plataforma também como um instrumento para abrir conversas. Ela dá como exemplo o tema da bioeconomia, tida como uma das apostas para o desenvolvimento da região.
“As pessoas acham que as coisas na Amazônia estão prontas. ‘Ah, eu vou lá investir na bioeconomia’. Mas alguém sabe dizer quanto óleo de andiroba a gente produz? Ninguém. Quanto de pescado sai da Amazônia? Também não. E nem de castanha-do-brasil, que é um produto bem monitorado. Então, vamos começar a conversar de verdade sobre essas coisas”, diz a secretária.
“Números contam apenas uma parte da história, mas ajudam a promover o diálogo com empresários e governantes. É preciso dar números às demandas, aos problemas, às decisões de alocação de recursos, de investimentos e gastos sociais”, afirma Francisco Gaetani. Ele é fellow do Instituto Arapyaú, ex-secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente (2011-2016), professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ebape) e um dos responsáveis diretos pela criação da plataforma de dados – que se concretizou por meio de uma parceria entre a MacroPlan e a Concertação.
Oriundo da área pública, Gaetani avalia a plataforma como uma ferramenta importante para apoiar o Consórcio de Governadores da Amazônia, atualmente presidido por Flávio Dino, governador do Maranhão. “Se no Brasil os dados são um problema, na Amazônia são muito mais. Há dificuldade de capital humano, as distâncias são mais longas, e a precariedade dos estados é maior”, diz. Ele complementa: “A presença do Estado é muito rarefeita na Amazônia, e isso afeta as estatísticas. Por exemplo, ficou muito clara a dificuldade dos órgãos estaduais de proporcionar as estatísticas no caso da Covid-19.”
Schor reitera: “Temos pouco dinheiro, pouco tempo e poucos recursos humanos. Por isso, é necessário saber com mais precisão qual parafuso apertar para obter o melhor resultado.”
Na visão de Flávio Dino, valorizar o conhecimento por meio dos dados é um caminho fundamental para superar a ideia de Amazônia como um cenário de devastação e apocalipse. “Não é isso que somos e nem o queremos ser. É preciso que as mentiras e os mitos sejam descontruídos. Uma plataforma como essa nos ajudará para que as várias verdades da Amazônia emerjam e, com isso, consigamos atrair parcerias”, acredita.
“Quando falamos de meio ambiente, não estamos falando de empecilho ao desenvolvimento, mas de ativos, possibilidades, vocações”, afirma Dino.
Simão Jatene, que governou o Pará em três mandatos, diz que historicamente a Amazônia tem sido muito fértil na produção de mitos, povoando o imaginário de gerações e gerações.
“Nós transitamos de inferno verde para celeiro do mundo, de almoxarifado para santuário, dependendo da lente com que nos olham. Mas essa visão bipolar, maniqueísta, certamente nos leva a cair em algumas armadilhas. Espero que a plataforma ajude a dar uma noção mais efetiva do que é a Amazônia”, afirma.
Jatene, que se descreve como alguém que nasceu geneticamente músico, tentou ser intelectual e terminou político, cita Elis Regina, que cantou o verso “o Brazil não conhece o Brasil”, para descrever o desconhecimento que ainda perdura sobre a Amazônia. “Nunca consegui entender por que 60% do território pode ser considerado ‘resto’. Ver a Amazônia como apêndice do País é uma maluquice completa. Vamos fazer da Amazônia uma causa nacional – mas não pelos mitos que a falta de conhecimento produz, como o falso antagonismo entre produzir e preservar”, conclama.
Gaetani, Shor, Jatene e o governador Dino participaram do webinar juntamente com Gustavo Morelli, sócio-diretor da MacroPlan, sob mediação da jornalista Karen de Souza. Coube a Morelli apresentar o funcionamento da plataforma, que é gratuita e traz 113 indicadores econômicos e sociais, de 16 fontes diferentes agrupados em 11 temas (demografia, educação, saúde, segurança, desenvolvimento social, economia, ciência e tecnologia, infraestrutura, saneamento, meio ambiente, institucional).
Com uma visão ampla e integrada dos nove estados, a plataforma abre a possibilidade de cruzar dados, fazer análises comparativas e se aprofundar em números sobre os 808 municípios, considerando, como pano de fundo, a existência de quatro amazônias distintas entre si – a urbana, a região antropizada, a região conservada e a região de transição entre as duas últimas (ver framework).
Hoje, são apresentados 1600 elementos gráficos e 400 mil visualizações possíveis sobre esse território que abriga 30 milhões de pessoas em 60% da área total do Brasil, responde por 72% de área natural e por 9% do PIB. Morelli explica que a plataforma não produz dados novos, mas sim reúne aqueles que estão dispersos, e permite fazer correlações entre eles. Não é voltado aos pesquisadores especializados, acostumados a trabalhar com microdados, mas sim aos tomadores de decisão política e econômica, e também aos integrantes da sociedade civil e ao cidadão comum (saiba mais na entrevista abaixo).
Três critérios guiam a escolha dos dados que entram no site: a utilidade, a confiabilidade (a maior parte vem de fontes reconhecidas e oficiais) e a comparabilidade (para permitir uma visão regional). “Nosso intuito não foi construir um armazém de dados, mas um hub de inteligência estratégica”, afirma o diretor. Embora os biomas não respeitem fronteiras políticas, o recorte da Amazônia Legal foi usado para que se pudesse trabalhar com fontes de ordem administrativa, como estados e municípios.
A importância do conjunto
Gaetani sublinha que a plataforma é um tiro de largada, ou seja, os dados devem ser trabalhados ao longo do tempo, sem conclusões imediatistas. Daí a importância de considerar os indicadores de forma conjunta. Um olhar apressado poderia esconder a complexidade da região, que de forma geral é marcada por discrepâncias e ainda muita pobreza.
Projetos econômicos localizados podem promover distorções. O município de Vitória do Xingu, por exemplo, com R$ 292 mil de PIB per capita, está na primeira colocação entre os municípios do Pará, que se explica pelo elevado valor gerado pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte e pela reduzida população. O mesmo se dá em outros municípios com grandes empreendimentos de extração mineral e população de pequeno ou médio porte, como Canaã dos Carajás (R$ 197 mil) e Parauapebas (R$ 79 mil). Em contraste, os indicadores dos municípios de Terra Alta (R$ 6,1 mil) e Cachoeira do Piriá (R$ 5,4 mil) ficam bem abaixo da média do estado (R$ 19 mil).
“Embora os dados econômicos possam traduzir algumas receitas importantes, a Amazônia ainda é uma região paupérrima do ponto de vista da população”, diz Gaetani. “A região está gerando cada vez mais produto, mais exportação, mas não necessariamente riquezas distribuídas, qualidade de vida e bons indicadores sociais. Os dados são uma aproximação da realidade, mas você precisa das histórias, dos dados locais e do seu aprofundamento.”
Jatene também chama atenção para as nuances do mundo real. Por exemplo, o PIB da Amazônia cresceu mais que o brasileiro na última década, mas o do estado do Amazonas caiu, justamente um dos estados mais relevantes da região, e que foi objeto de um experiência histórica importante: a tentativa de criação de um padrão de desenvolvimento fortemente centrado na indústria e com caráter urbano. Outro exemplo: o Pará cresceu, mas o PIB per capita caiu. “Se não olharmos para isso, faremos mal as perguntas. Pior que uma resposta errada é uma pergunta errada”, diz o ex-governador.
Por conta de tantas peculiaridades da Amazônia, Jatene defende tirar conceito de produção dos manuais de Economia e trazer para o que chama de manual da vida. “Preservar florestas e rios da Amazônia é uma forma de produzir condições para a vida”. Segundo ele, a visão maniqueísta que contrapõe produção e preservação faz com que não se compreenda o duplo papel da Amazônia: atuar como a grande prestadora de serviços ambientais em escala planetária, e usar essa base material para conceder uma vida digna a quem ali nasce e sonha. “A Amazônia não realizará esse segundo papel se não cumprir o primeiro, afirma.
Jatene continua: “Sou de um tempo em que se dizia que, como a Amazônia não tem nada, o que viesse era bem-vindo. Mas alguma coisa pode ser pior do que nada. Isso nos empurrou a trocar, em 50 anos, um fantástico ativo por muito pouco ou quase nada.”
Portanto, rever conceitos de produção, em seu entendimento, é uma das pernas do que propõe como tripla revolução para Amazônia. As outras duas são o conhecimento – puxar e ciência e dar universalidade ao saber amazônico – e exercer novas formas de gestão e governança, o que significa “valorizar o que nos une e não o que divide”, diz. Segundo o ex-governador, é preciso compreender que a desigualdade dói, mas as diferenças temperam, ou seja, aprender a conviver com quem não pensa como você. “A sabedoria está em unir as diferenças como caminho para a redução das desigualdades”.
Desafios de concertação
Como promover a concertação entre quem pensa diferente se apresenta como o grande desafio, em especial no Brasil dividido em que se vive hoje, como assinala Dino. “O papel da política, diferente do pesquisa, é a construção de maiorias, se possível de consensos. É isso que falta em país tão fraturado”, afirma.
O governador chama atenção também para a necessária confluência do empresariado brasileiro, citando a importância do fluxo de investimentos privados e “para não acharmos que os U$ 20 bilhões do Fundo Biden vão resolver os nossos problemas”, diz, em referência ao fundo proposto pelo presidente americano, Joe Biden, para proteger a Floresta Amazônica.
Nessa tentativa de concertação de atores, o Consórcio de Governadores e outras iniciativas de escopo interestadual ganham relevância, notadamente diante da ausência de uma coordenação federal mais efetiva. Para Dino, os mecanismos de cooperação horizontal ganharam mais relevância visando suprir os vários desacertos no plano federal.
“Negacionismo, incompetências, desvarios, tudo isso faz com que o papel dos estados ganhe nota de emergência. A apologia da ignorância como norteadora das políticas publicas é uma impossibilidade lógica. Como pode dar certo sem que analisem dados, sem uma reflexão cuidadosa?”, questiona Dino.
Para Jatene, “se tivermos mais sabedoria que esperteza, será possível construir uma trilha, um novo sonho de país e de Amazônia”. E Gaetani pondera: “Costumo dizer que, se todo mundo fizer a sua parte, não será suficiente. Precisamos de mais do que a parte de cada um. O trabalho está só começando.”
Entrevista: Gustavo Morelli, sócio-diretor da MacroPlan
A MacroPlan já tinha feito algo similar a essa plataforma? Conte um pouco sobre a empresa.
A MacroPlan é uma empresa brasileira de análise prospectiva que tem 30 anos e foi uma das pioneiras no País em elaboração de cenários e planos estratégicos. A maior parte dos nossos clientes é constituída de governos estaduais, municipais, federais, entidades do terceiro setor, organizações empresariais. Isso tem tem a ver com o uso de uma gestão baseada em evidências, ou seja, o uso de dados na gestão pública para melhorar a qualidade das políticas e a efetividade do resultado. Estruturamos há quase 10 anos uma área de análise de dados e, ao longo do tempo, produzimos alguns estudos gratuitos sobre melhoria da gestão pública com base na análise dos dados dos entes nacionais, dos estados e das 100 maiores cidades. Um que acabamos de atualizar é o Desafios dos Municípios. É uma plataforma que trata dos 100 maiores municípios brasileiros e faz uma análise dos últimos 10 anos, permitindo comparações, avaliações para a tomada de decisões mais embasadas.
Como a plataforma Amazônia Legal em Dados pode ser útil também para o cidadão comum?
Ela pode ser um instrumento importante tanto do ponto de vista da cobrança dos governos, por maior efetividade e transparência pública, quanto pode apoiar as decisões de investimento privado.
A atualização será feita como e com que periodicidade?
Os dados que usamos são atualizados em periodicidades distintas. A ideia é atualizarmos na medida que forem sendo atualizados pelas instituições que os produzem. Para isso, contamos com uma equipe especializada e ferramentas robustas de ciência de dados.
O quanto a informalidade pode afetar a qualidade dos dados que existem na plataforma?
Os elevados níveis de informalidade e a dificuldade de captar de modo adequado a economia informal são problemas da economia brasileira. O conceito que adotamos na plataforma foi o de fazer uma primeira versão, com a maior quantidade de dados disponíveis – úteis, confiáveis e comparáveis. Todos os dados que estão ali tem série histórica, são produzidos por entidades reconhecidas naquilo que fazem. A ideia é que a plataforma seja um projeto em aprimoramento. Sabemos que tem muitos outros dados que não estão lá, que são muito interessantes, mas que existem em um estado e não no outro. São dados que pretendemos captar melhor e, sendo possível, incorporar nas próximas fases.
Vocês manterão esses três critérios [utilidade, confiabilidade e credibilidade] para as próximas versões?
A ideia é manter. Uma das possibilidades é ter uma abertura de dados incorporando aqueles que eventualmente estejam disponíveis em um estado, mas não em outros. Há muitas possibilidades. Estamos certos que tem muita informação na plataforma e informação de qualidade, mas também sabemos que nem todas estão lá. Houve um desafio junto à Concertação para colocar uma primeira versão de qualidade no ar que representasse o ineditismo e também o tamanho do desafio que a Amazônia representa, com seus dois terços do território nacional.
Colocar no ar foi bom para testar e ver o que pode melhorar?
Isso. Em vez de tentar fazer algo completamente perfeito, preferimos disponibilizar uma primeira versão robusta e gerar um debate. E, a partir desse debate, mobilizar os atores da região. Vamos melhorá-la. Uma das nossas intenções, por exemplo, é , criar uma versão mobile.
Já há previsão de um lançamento de uma versão 2.0?
Ainda não. Estamos discutindo isso com o pessoal da Concertação. Por enquanto, estamos focados em mantê-la atualizada.