O financiamento à restauração florestal requer uma mudança no fluxo de capital. Não basta direcionar recursos para atividades de impacto positivo, é preciso parar de irrigar as atividades que causam degradação
A corrida global pelo financiamento climático – que abrange na agenda o desafio da restauração dos ecossistemas e tem no Brasil um campo promissor frente os ativos florestais, agronegócio e demais demandas de uso da terra – esconde uma realidade que só agora começa a vir à tona, nas negociações da COP 26, a conferência da ONU sobre mudança do clima que se realiza em Glasgow até o dia 12. Em cenário de emergência mundial devido aos impactos desastrosos já em curso nas economias e na qualidade de vida, o jogo diplomático em torno dos US$ 100 bilhões que os países ricos devem transferir aos menos desenvolvidos para mitigação dos gases-estufa, conforme prometido no Acordo de Paris, não mostra o outro lado da moeda: o problema não está exatamente na falta de recursos, mas no uso deles, destinados a atividades que degradam o planeta.
O alerta consta no estudo Financiando a Conservação da Natureza: Eliminando a Lacuna no Financiamento da Conservação da Biodiversidade Global, lançado pela The Nature Conservancy (TNC), Cornell Atkinson Center for Sustainability e Paulson Institute, instituição de intercâmbio entre Estados Unidos e China. Segundo os autores, o gap entre o valor atualmente gasto e o necessário para deter o declínio da biodiversidade até 2030 é estimado entre US$ 598 bilhões e US$ 824 bilhões por ano. Os níveis de financiamento cobrem hoje apenas 19% da demanda.
Ao mesmo tempo, os gastos governamentais anuais com atividades prejudicais à biodiversidade, na forma de subsídios agrícolas, florestais e pesqueiros, giram entre US$ 274 bilhões e US$ 542 bilhões por ano, em 2019 – duas a quatro vezes superiores aos fluxos de capital para a biodiversidade, sem contabilizar os recursos destinados a setores que causam impactos indiretos, como os combustíveis fósseis.
“Diante da lacuna de investimentos em soluções naturais para o clima, a questão não precisa ser resolvida por novos impostos, mas pelo redirecionamento dos recursos hoje destinados à poluição, migrando para infraestrutura verde e capital natural, com potencial de gerar mais empregos do que modus operandi atual”, aponta Rubens Benini, líder de restauração florestal na TNC.
Cientistas estimam que atualmente o planeta perde espécies em velocidade mil vezes mais rápida do que a taxa natural, de uma a cinco espécies por ano. No ritmo atual, entre 30% e 50% da biodiversidade podem desaparecer até a metade do século XXI – e as mudanças climáticas estão acentuando esse processo. No sentido inverso, alerta o estudo, a perda das espécies agrava a crise. “Na Amazônia, alterações hidrológicas causadas pelo desmatamento podem secar permanentemente milhões de hectares de floresta tropical e alterar todo o clima regional. O custo econômico resultante será impressionante”, aponta o documento. “Dada a complexidade e interdependências da natureza, existem muitos riscos ainda desconhecidos”.
Se o valor da tonelada de carbono capturado da atmosfera atingir US$ 600, como preveem analistas, as florestas do planeta poderão valer mais do que US$ 100 trilhões, contando apenas o serviço climático. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, US$ 44 trilhões do PIB global – cerca da metade – depende alta ou moderadamente da natureza.
Nesse cenário, segundo o estudo liderado pela TNC, o mundo precisa de US$ 772 bilhões e US$ 967 bilhões anualmente até 2030, entre 0,7% e 1% do PIB global, para conservar e recuperar a biodiversidade. No tópico específico das Soluções Baseadas na Natureza (SbN), são necessários US$ 39,9 bilhões por ano – quase 30 vezes o valor atual.
O estudo recomenda reduzir ao menos pela metade o fluxo de recursos relativos a políticas fiscais agrícolas, florestais e de pesca danosos, até 2030. Enquanto os subsídios agrícolas com práticas não sustentáveis recebem US$ 451 bilhões, o investimento em infraestrutura natural é de somente US$ 27 bilhões. No total, o potencial dessas atividades mais diretamente relacionadas à restauração florestal, inclusive o mercado de carbono, é de US$ 347 bilhões por ano até 2030, o que representa 12 vezes o patamar de hoje.
Com base no mapeamento financeiro, os pesquisadores identificaram um conjunto de reformas de subsídios e mecanismos financeiros que podem mobilizar recursos à biodiversidade em grande escala e eliminar a atual lacuna de investimentos, diminuindo riscos e, por tabela, induzindo aportes privados. “Um planeta saudável é bom para os negócios; e é muito mais barato evitar danos ambientais do que limpá-los depois”, destaca o estudo.
Os governos devem desempenhar um papel de liderança com políticas públicas, mas sozinhos não podem fornecer o financiamento necessário à biodiversidade. A estimativa é a expansão de títulos verdes e outros produtos financeiros voltados à conservação e restauração de ambientes naturais, passando globalmente dos atuais US$ 6,3 bilhões para US$ 92,5 bilhões, no fim da década.
Crédito de carbono: o valor da qualidade
No rastro da demanda climática, a consultoria WayCarbon avalia em US$ 100 bilhões o potencial do mercado de carbono até 2030 no Brasil, com alguns diferenciais. Créditos de carbono para projetos de restauração florestal são de longo prazo, mas agregam maior valor. Se envolverem pegada socioambiental consistente, a tendência é valerem mais ainda. Dessa forma, a oferta do chamado “crédito de carbono de qualidade” inspira a parceria da multinacional de tecnologia Amazon com a TNC, para investimento na Amazônia brasileira visando aumentar a escala da restauração de floresta em áreas sob pressão de desmatamento.
A inovação está no modelo do negócio, que conecta dois mundos bem diferentes: o da agricultura familiar e populações tradicionais ao dos investidores climáticos. “Entre as duas pontas, está a demanda de empresas que buscam desenvolver cadeias de suprimento mais sustentáveis e monitoradas”, afirma Rodrigo Freire, gerente da estratégia de restauração florestal da TNC, coordenador das ações na Amazônia.
No primeiro ciclo, durante três anos, o projeto abrange 3 mil pequenos produtores em três regiões do Pará (ver mapa abaixo), totalizando 18 mil hectares de Sistemas Agroflorestais (SAF) que têm o cacau como carro-chefe. Em contratos de 30 anos, o que já representa uma novidade diante dos riscos inerentes à região, os agricultores familiares recebem apoio de insumos e assistência técnica para implantação e gestão das áreas, com adequação legal, acesso a mercados e perspectiva de aumento de renda, além da segurança alimentar e compartilhamento de benefícios.
De outro lado, o investidor, que faz o aporte antecipado e assume riscos para viabilizar o início do projeto, tem o retorno no mercado de carbono. Como a área total do projeto tem potencial de sequestrar 9,6 milhões de toneladas de carbono em 30 anos, metade a ser transformada em créditos, estima-se um ganho em torno de US$ 48 milhões no período, considerando-se uma cotação do carbono duas vezes maior que a atual. O objetivo, segundo explica Freire, não é lucrar com a revenda dos créditos no mercado, mas viabilizar as áreas e neutralizar emissões de gases-estufa da empresa na agricultura familiar, com ganhos socioambientais e possibilidade de virar negócio e atrair novos investidores após os três primeiros anos de testes.
“Para a restauração na Amazônia sair do piloto e ganhar escala é necessário investimento, construção de capacidades, acesso a insumos e tecnologias como sensoriamento remoto e inteligência artificial, e isso exige um outro nível de governança, infraestrutura e planejamento das organizações locais”, observa Freire.
Segundo ele, “o mundo precisa de soluções climáticas urgentes ou perde o jogo; e a virada da economia está no baixo carbono, com recuperação de área degradada e substituição de pastagens por floresta, para obter maior renda”.
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