A pandemia e a invasão na Ucrânia sinalizam que o arranjo multilateral está sendo redesenhado. O desafio da emergência climática, agenda que veio para ficar, foi antecipado. Com isso, a gestão de risco tornou-se ainda mais central para governos e empresas
Por Francisco Gaetani* e Roberto S. Waack**
O mundo mal estava saindo de uma das maiores pandemias de sua história quando a eclodiu a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Não há nada que capitalize a atenção das sociedades de todos os países como um conflito com potencial para escalar em escala mundial. A cacofonia dominante de uma aldeia global cada vez mais monotemática foi desestabilizada por um evento que desarrumou tudo. Todos os países canalizam suas atenções para o impacto dos novos eventos sobre suas economias. O futuro está em risco, imediato. Um efeito colateral importante é justamente este: a gestão de risco tornou-se central para governos e empresas. O desafio da sustentabilidade embutido na emergência climática tornou-se agudo e foi antecipado.
No Brasil infantilizado pelos anos de desgoverno, coreografias regressivas e desmanche institucional, a interpretação ecoada dos eventos recentes não poderia ser mais reducionista e equivocada. A preocupação é com a possível escassez de fertilizantes. Pertinente, sem dúvida, especialmente se considerarmos nossas opções em relação ao setor anos atrás quando o Estado se desvencilhou de seus ativos minerais estratégicos. Mas não se pode eclipsar as reais mensagens que estão emergindo de um planeta desestabilizado por uma guerra regional com consequências imprevisíveis.
O chamado New Green Deal (o novo pacto verde) é o quadro de referências da agenda dos países que buscam o desenvolvimento. É o conjunto das premissas que iluminarão as próximas décadas, que incluem a transição energética com o abandono dos combustíveis fósseis e a massiva disseminação de alternativas como solar e eólica, transformação digital dos processos produtivos e a promoção da inclusão e da diversidade.
A Governança do Desenvolvimento está ancorada em um sistema financeiro integrado globalmente regulado pelo BIS em Basiléia, onde nasceu o cisne verde – a matriz genética do ESG. As soluções buscadas requerem escala, logística e retornos competitivos em sintonia com os princípios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030.
O Brasil não terá lugar no futuro como provedor de produtos primários, sujeitos a flutuações periódicas, condenados a terem sua importância econômica relativizada, no longo prazo, pelos avanços da tecnologia. Em vez de manejar seus mais importantes trunfos – os inigualáveis recursos naturais de que o país dispõe – o Brasil pode rever a exploração desses recursos, em alguns casos, de forma imediatista e predatória para uso mais eficiente e rentável. A reversão da espiral na qual o País se encontra se dá por meio da combinação de duas agendas: uma positiva e outra negativa.
Nos anos recentes, mudanças ocorreram na percepção da sociedade brasileira sobre a importância de se buscar novas formas de produção de riqueza. Esta é a agenda positiva adiante.
A reestruturação produtiva rumo a uma economia de baixo carbono é inexorável. A transição energética demanda uma gestão estratégica das possibilidades nacionais. A agenda de ESG já foi internalizada pela iniciativa privada. A rastreabilidade de produtos associados ao desmatamento – notadamente carne e ouro de garimpo – tornou-se desafio público, recepcionado pelas grandes empresas do setor. A combinação destes quatro vetores colocou o setor privado em uma nova trajetória, consistente com as tendências do mundo contemporâneo.
Ao mesmo tempo, e na contramão da História, o fato de em dez anos as taxas de desmatamento na Amazônia terem triplicado deixou o Brasil exposto a boicotes estimulados pelos interesses estrangeiros protecionistas, em especial devido ao apoio tácito de autoridades governamentais aos perpetradores dessas práticas. O negacionismo climático, combinado com a deliberada desestruturação do sistema nacional de meio ambiente, resultou na transformação de um país outrora líder da agenda ambiental internacional em um pária, participante relutante de negociações destinadas a prover um novo ordenamento climático global.
Empresas, movimentos sociais, organizações não governamentais, doadores, bancos, meios de comunicação e uma parcela dos dirigentes políticos (nacionais e da região) estão engajados em promover um tipo de desenvolvimento da região que é sustentável e inclusivo, e não predatório e excludente.
A agenda da Amazônia não deveria ser a agenda do futuro. É a agenda do presente e é uma agenda do Brasil. É também uma agenda global e isto não significa considerar teorias conspiratórias em torno da soberania brasileira. As maiores ameaças à segurança nacional na Amazônia são a pobreza, o desmatamento, o crime, a violência, a grilagem, o contrabando e a corrupção.
As lideranças econômicas do País estão reorganizando seus negócios em torno de modelagens de gestão de risco. Não existirão negócios do mundo com a Amazônia sem rastreabilidade máxima dos produtos oriundos das cadeias produtivas regionais. O fluxo de recursos de investidores internacionais, e nacionais relevantes vale dizer, está condicionado ao engajamento das autoridades no combate ao desmatamento. O acesso ao crédito estará cada vez mais condicionado a práticas transparentes e auditáveis que assegurem a credibilidade e conformidade dos tomadores.
Mecanismos não-tarifários
Acima de tudo, o acesso a mercados internacionais, incluindo asiáticos, estará crescentemente condicionado à rastreabilidade. O novo ordenamento geopolítico e multilateral decorrente da guerra em curso, assim como mencionado no que tange à transição energética, deve gerar a imposição de mecanismos não-tarifários voltados para cadeias de negócios com baixo impacto climático relacionados ao uso da terra.
Não se trata de submeter o esforço de produção sustentável a padrões de controle de qualidade europeus. O Brasil tem, historicamente, autoridade e lugar da fala na agenda ambiental global. O País reúne um conjunto único de características naturais – florestas tropicais, água doce, costa, iluminação solar, tradição pacifista, entre outras – que sempre o credenciaram nas negociações internacionais.
O multilateralismo, sempre uma aspiração frágil, ainda não se recuperou dos anos Trump. Dez anos após a Rio+20, a partir da qual nasceram os ODS, a governança global está em frangalhos, as cadeias produtivas globais desarrumadas, o nacionalismo está de volta, o populismo autoritário disseminou-se. No entanto, a agenda climática veio para ficar, pautando especialmente a transição energética e o uso do solo. A pandemia e a guerra na Ucrânia estão sinalizando fortemente que alguma forma de arranjo multilateral está sendo redesenhada.
As novas demandas de governança no Brasil são muitas: climática, amazônica, urbana, biodiversa, energética, alimentar, hídrica, inclusiva, sustentável e, em especial, democrática, muitas vezes ambígua e conflitiva. No momento em que o espelho se desembaçar, poderemos dizer a nós mesmos e ao mundo o que somos, o que aspiramos nos tornar e como pretendemos chegar lá.
*Francisco Gaetani é professor da Ebape/FGV e fellow do Instituto Arapyaú
**Roberto S. Waack é membro dos conselhos do Instituto Arapyaú, Wise Plásticos e Marfrig e visiting fellow na Chatham House
[Foto: Protesto em Berlim contra a guerra na Ucrânia/ Lewin Bormann/ Flickr]