Arte: Karoline Barros
O debate sobre educação e segurança pública é essencial a uma nova agenda de políticas públicas para a região, com ações de curto prazo para a transição de governo pós-eleições
Por Sérgio Adeodato
Por trás dos indicadores crescentes de desmatamento existe o combustível da complexa realidade amazônica em duas agendas que muitas vezes estão desconectadas e precisam ganhar espaço nas estratégias de governo para a região: a educação e a segurança pública. O encontro promovido em 28 de março pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia teve como objetivo debater propostas de curto prazo nessas temáticas para a pauta pós-eleições 2022. No pano de fundo do debate, está a desigualdade de direitos entre uma minoria que faz parte da elite e a maioria da população fragilizada – situação que na Amazônia adquire complexas dimensões, pelas características da região.
Uma das idiossincracias está na diversidade das várias Amazônias, conforme destaca Karla Martins, gestora da Casa Ninja Amazônia e moderadora do debate, ilustrado pelas criações do jovem artista plástico Antônio Gomes Segundo, de Manaus. Para ele, a arte é uma forma de abordar um assunto importante para o mundo, como a Amazônia, que – pela influência do pai – considera sagrada. “Tinha que cantá-la alto”, conta o artista, cuja obra tem referência nas reflexões do Modernismo, oriundas da Semana de Arte Moderna 1922, que neste ano celebra o centenário.
A atual vivência dele como estudante remete para os desafios da educação na região. Segundo Katia Smole, diretora executiva do Instituto Reúna, os estados amazônicos, como ocorre no restante do País, têm se mobilizado na perspectiva do desenvolvimento do novo modelo do Ensino Médio, alicerçado em aspirações e projetos de vida. No total, 22 estados brasileiros já aprovaram formalmente essas mudanças na arquitetura dos currículos escolares, em cenário que na Amazônia Legal possui peculiaridades.
Ainda que a região tenha seus diferenciais socioculturais, por exemplo, na forma de criar e educar as crianças, são visíveis os descompassos em relação ao indicadores usados como padrão nacional. O estudo Educação na Amazônia Legal – Diagnósticos e Pontos Críticos, produzido por Tássia Cruz e Juliana Portella no âmbito do projeto Amazônia 2030, mostra diversos gaps da educação nos estados da Amazônia Legal, especialmente quando comparados com os índices nacionais (média dos outros estados que não os da Amazônia Legal).
O Ensino Superior e o Ensino Médio pouco alcançam o interior da Amazônia, povos indígenas não têm acesso à formação superior, e apenas 51% da população de 0 a 5 anos está matriculada na Educação Infantil, abaixo da média brasileira de 66,4%. Na educação profissional, apenas 2,4% da população amazônica está matriculada, frente a 4,7% no Brasil. Em relação a crianças em creches, a diferença é significativa: 25,6% na Amazônia Legal e 44,8% nos demais estados – sendo que a maior razão apontada é a falta de oferta.
No estado do Amazonas, ⅓ dos professores do Ensino Médio não possui computador nem internet. O estudo também mostra grande heterogeneidade entre estados, com destaques para a taxa de reprovação no Acre e Amapá, a taxa de evasão no Pará e em Mato Grosso e taxa de abandono escolar em Tocantins e Maranhão.
O acesso à conectividade por fibra ótica para o ensino à distância, a aprendizagem dentro de comunidades ribeirinhas, novas métricas para avaliação da educação amazônica e marcos legais que garantam financiamento são propostas para o debate da agenda para educação pós-eleições.
Entre as inspirações, destaca-se a ampla reforma educacional liderada entre 1999 e 2010 pelo ex- governador e ex-secretário de Educação do Acre, Binho Marques, apresentada no encontro. Segundo ele, a reforma mexeu com o sistema inteiro, em todas as dimensões, desde a estrutura curricular até o plano de carreira: “Tínhamos os piores indicadores do País, em contexto desfavorável com falta de recursos e gestão precária”.
Após o trabalho inicial de geolocalização das 1,5 mil escolas municipais e estaduais, algumas inclusive em território fora das divisas e fronteiras do Acre, o plano teve o diferencial de realizar o recadastramento dos profissionais de educação. “Havia excesso de profissionais e baixa qualidade, sendo que, no Ensino Fundamental, apenas 26% dos professores tinham formação superior”, revela Marques. Além disso, estudantes da 8ª Série tinham padrão de proficiência equivalente aos da 4ª Série, no Paraná.
A mudança veio por meio de um planejamento estratégico baseado em objetivos como a modernização da gestão, a valorização dos profissionais e a garantia de padrões mínimos de qualidade, com maior presença do gestor público nas escolas para construção de currículo e acompanhamento pedagógico, por exemplo. O estado matriculou 100% dos professores em cursos universitários e priorizou a estratégia de escolas multisseriadas. Além de levar a rede escolar a comunidades mais isoladas, a educação indígena, antes realizada por ONGs de maneira piloto, foi universalizada. Após dez anos, os indicadores evoluíram com destaque no ranking nacional: em 2009, o Acre já ocupava o 4º lugar no Ensino Fundamental II e 7º no Ensino Médio, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
O cenário de avanços resulta de uma estratégia política mais ampla do Acre, com a criação do conceito de Florestania – o que significa ter acesso a serviços básicos, com cidadania e identidade cultural próprias, vivendo na Amazônia. Devido às muitas particularidades da região, há o desafio de conceitos que deem conta do conjunto, mas sem desvalorizar as diferenças. Nesse cenário, o desenho de serviços públicos, normalmente voltado para as cidades nas demais regiões brasileiras, na Amazônia precisa adquirir outras feições porque a população se encontra dispersa em pequenas comunidades – além dos centros urbanos, onde está a maior parte dos alunos.
Segundo especialistas, é preciso desenvolver métricas para a realidade diferenciada, mas sem deixar de responder aos padrões nacionais: são frentes simultâneas que se somam e têm o mesmo peso, e não que se excluem. Entre os pontos mais sensíveis, está a necessidade de olhar para as expectativas dos jovens amazônidas, hoje atraídos pela renda de atividades degradantes, como o garimpo. Com 3 gramas de ouro valendo R$ 1,5 mil, as famílias incentivam o abandono escolar em troca de renda rápida.
A solução passa por uma escola mais efetiva e atrativa. Neste sentido, a construção de um currículo escolar amazônico não deveria se restringir a trabalhar palavras e matemática da realidade local, mas incorporar a discussão, por exemplo, da bioeconomia, destacando essa possibilidade econômica para o aluno desde criança, na educação infantil.
Interface entre desenvolvimento e segurança
A permanência de jovens na Amazônia tem ligação direta com educação e segurança. Em dez anos, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes aumentou 9,8% na Amazônia Legal, segundo indicadores da plataforma Amazônia Legal em Dados. A taxa de violência doméstica contra criança e adolescentes cresceu 252% no mesmo período.
De acordo com Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estão presentes na Amazônia 24 facções de base prisional. Há taxas crescentes de mortes na Amazônia, ao contrário do restante do País. Além disso, é expressivo o nexo com as temáticas ambientais, conforme classificação do Imazon (2007) citada por Lima, no debate de propostas ao próximo governo. A taxa de mortes por violência intencional é maior nos territórios sob pressão de desmatamento (37,1), seguida pelas áreas já desmatadas (34,6), pelas não florestais (29,7) e, por fim, pelas florestais (24,9), onde o problema é menor.
“É preciso separar a Amazônia urbana da florestal para conversar com a população, principalmente no cenário eleitoral”, recomenda Lima, para quem é necessário levar justiça para todos. Os caminhos, segundo ele, exigem reformar a ideia de segurança para além da escala penal e criminal, trazendo-a para a esfera constitucional, dos direitos civis.
“O descontrole da segurança é o grande risco à soberania nacional, com a perda da Amazônia para a criminalidade e violência, e também para o desmatamento”, adverte o especialista. Ele sugere repensar a governança no tema, com a necessidade de entrelaçar políticas públicas e reequilibrar as agendas de prioridades.
Segundo dados do estudo Cartografia das Violências na Região Amazônica, realizado pelo Fórum, os estados da Amazônia Legal apresentaram taxas de violência letal mais altas que a média nacional, em 2020. Enquanto no Sudeste a taxa de mortalidade por homicídio caiu 19,2% entre 1980 e 2019, no Norte houve crescimento de 260,3%. “Não é mais factível falar isoladamente de ameaças à soberania nacional ou militarização da região sem antes conectar tais aspectos às dinâmicas da governança criminal do seu território e às premissas de articulação de esferas de governo e de políticas públicas para a construção de justiça social e ambiental”, aponta o estudo.
A agenda de transição de governo e os 100 primeiros dias da nova gestão nas áreas de educação e segurança pública, na Amazônia, passam por um importante ponto de preocupação: a realidade dos garimpos de ouro, em que o tradicional ativo do mercado financeiro está associado a ilegalidades, impactos ambientais e à saúde, e violência de vários tipos. “Nos garimpos, a liderança geral está normalmente no campo político, mas o crime organizado controla os meios de operação, com financiamento de máquinas e pistolagem”, explica Lima. Ele adverte: “Há uma relação simbiótica entre economia ilegal e violência, e o problema não é apenas criminal”.
Sem fiscalização ou controle mais rígido da cadeia produtiva do ouro, a atividade cresceu 500% em terras indígenas, desde 2019, durante a atual gestão do governo federal, segundo reforça o subprocurador-geral da República, Alexandre Camanho. “Devemos mudar a ideia romântica do garimpeiro usando bateias nos rios, porque a atividade é industrial e de larga escala, com uso de máquinas pesadas”, diz. O documento de exploração se resume a uma autodeclaração, dentro de um sistema permissivo que, segundo ele, tem resultado na abertura abusiva de lavras. “Pelo menos 20% do ouro extraído da Amazônia é ilegal”, estima o subprocurador.
Entre os problemas, além do desmatamento e da violência de cunho sexual e do tráfico de drogas e armas, está a poluição dos rios, com impactos à biodiversidade e à saúde humana. “São despejadas 150 toneladas de mercúrio por ano na Amazônia Legal, com entrada via Guiana e Bolívia”, informa Camanho. Ele revela ser alto o índice de contaminação de indígenas Mundurukus e Inanomamis: “Em Santarém, 300 quilômetros a jusante de garimpos do Rio Tapajós, 70% da população está contaminada”.
Uma das formas de combater o problema, em sua análise, é um salto qualitativo em leis e normas, como o Projeto de Lei nº 836/2021, do senador Fabiano Contarato (PT/ES), criando mecanismos de compliance para a cadeia produtiva do ouro, com lastro ambiental e econômico, junto a responsabilidades associadas às lavras. “É também preciso incrementar a fiscalização, a inteligência e a pressão”, enfatiza Camanho, lembrando que junto a isso deve-se apresentar alternativas sustentáveis de subsistência capaz de substituir o atrativo do garimpo.
“O que vale mais: a ganância de poucos ou a vida de muitos, inclusive crianças?”, pergunta a indígena Samela Sateré-Mawé, estudante de Biologia e ativista ambiental que desde 2018 se dedica ao enfrentamento de agendas hostis aos indígenas no Congresso Nacional. Entre os exemplos, está o Projeto de Lei nº 490 sobre o marco temporal das Terras Indígenas e o atual Projeto de Lei nº 191, que autoriza mineração nessas áreas protegidas. “A sociedade é contra mas, mesmo assim, essas agendas andam”, lamenta.
“Os povos indígenas, como principais defensores da floresta e vítimas das ações humanas, precisam estar dentro do debate sobre Amazônia que queremos para 2030”, afirma a liderança, sinalizando a importância do tema na transição de governo.
O assunto é sensível a movimentos empresariais conectados com compromissos de sustentabilidade. Na análise de Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), “não faz sentido o PL 191 acontecer sem discussão pela sociedade civil”. A organização, que hoje reúne mais de 80 grupos empresariais com atuação no Brasil, responsáveis por 47% do PIB brasileiro e 1,1 milhão de empregos, anunciou recente posicionamento contrário ao Projeto de Lei. “Isso demonstra um novo e histórico momento que predomina no meio empresarial, sem retrocessos após a adoção de compromissos climáticos”, ressalta Grossi.
“Trata-se de uma discussão rica, em ano bastante especial”, completa. Em sua análise, “o ambiente regulatório é essencial para trazer recursos ao País, e o setor empresarial avançado sabe que precisa oferecer um novo padrão de serviços à sociedade, inclusive no sentido de resolver o passivo social, representado na Amazônia”.
Raul Jungmann, ex-ministro e atual presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), concorda. “O Brasil nunca teve um projeto para a Amazônia, no cenário em que segurança pública é multifuncional [diante do quadro de degradação]”, afirma. Além disso, em sua análise, “o País precisa de uma política nacional de segurança, considerando as peculiaridades da região e as questões nacionais que rebatem na Amazônia”. Entre os pontos críticos, diz Jungmann, preocupa a grande dimensão da juventude vulnerável.
O ex-ministro revela que o sistema prisional do País possui 1,5 mil unidades, com 440 mil apenados – população privada de liberdade que cresce 8,5% ao ano, “principalmente jovens negros que vivem na periferia, em famílias desestruturadas, sob o controle de facções criminosas. “Ou olhamos para isso ou não terá jogo”, enfatiza.
Como contribuição à agenda inicial de governo após as eleições, a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, copresidente do International Resource Panel da ONU, ressalta que “tratar a questão da desigualdade é essencial contra o desmatamento”, e que, embora seja necessário trazer esses temas para a realidade amazônica, o cenário regional é fruto do contexto do País. “É necessário inserir o crime organizado no contexto do crime ambiental”, recomenda.
Para Roberto Waack, presidente do conselho do Instituto Arapyaú, os desafios da educação e segurança pública retratam o nível de complexidade em torno da construção de uma agenda com ações prioritárias para os primeiros 100 dias do novo governo eleito. “A questão está na mão das próximas gerações que vão conduzir os desafios da Amazônia, e daí a importância do componente ‘cultura’ e ‘arte’, além do mergulho na ciência, com a conexão entre elementos emocionais e racionais neste mosaico”, diz.
Um depoimento da artista Karoline Barros sobre sua ilustração:
“Já foi feito o esforço de proteger a Floresta Amazônica sem envolver de fato as pessoas que nela vivem. A discussão sobre educação e segurança pública deixou o convite para não repetirmos esse erro. São as pessoas amazônidas que conectam todas as dimensões, sabedorias e ações nos/com seus territórios. É a partir delas, da educação de qualidade, das oportunidades, da cidadania e da construção conjunta, que teremos a possibilidade de territorializar o desenvolvimento sustentável constantemente sonhado para a Amazônia – crescer as raízes de tantos planos, políticas, instituições e sonhos.”
Karoline Barros é arquiteta e urbanista formada pela FAU-USP. Atua profissionalmente na transversal entre as artes e as ciências, sempre pautada pelos territórios e suas (r)existências. Natural de Minas Gerais, reside atualmente em Manaus, trabalha na capital e no interior do estado pela Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas.