Sociedade civil avança em articulações locais e nacionais para que a recuperação de ecossistemas possa combater as desigualdades socioeconômicas, para além de promover ganhos ambientais
Por Sérgio Adeodato
No esteio das demandas globais da mudança climática e conservação dos recursos naturais, a restauração florestal é impulsionada no País ao ritmo das alianças e articulações em rede que evidenciam o desafio social como componente cada vez mais relevante da agenda, além da questão econômica e ambiental. “A atividade de recuperar ecossistemas é uma máquina de empregos e pode contribuir nos desafios das desigualdades”, afirma Matheus Couto, representante do Centro de Monitoramento de Conservação Mundial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), durante webinar organizado pelo Diálogo Florestal – iniciativa que reúne cerca de 200 organizações, entre ONGs, empresas e academia, como espaço coletivo na busca de soluções para o setor.
O encontro, realizado em parceria com a Página22, marcou o lançamento da publicação Desafios para Ganhar Escala na Restauração Florestal e o Papel da Sociedade Civil, com o anúncio de casos de sucesso na temática, que se dissemina como alvo de novos investimentos empresariais na agenda de sustentabilidade.
Segundo Couto, evidências científicas comprovam uma tripla crise ambiental: uma originária da mudança climática; outra representada pela perda de espécies com o risco de extinção em massa até 2050; e uma terceira relativa à poluição atmosférica, hídrica e dos solos. “Ao estocar carbono nas plantas, proteger água e solos, e conectar fragmentos florestais, a restauração de ecossistemas endereça soluções para os três pontos”, explica o engenheiro florestal.
Ao fim do primeiro ano da corrida pela Década da Restauração de Ecossistemas, anunciada em junho de 2021 pela ONU, a questão – de acordo com Couto – impõe uma maior capacidade de comunicação, dando visibilidade a políticas que incorporam a restauração como aliada do desenvolvimento socioeconômico, além da necessidade de fortalecer a formação técnica. “O Brasil tem tradição de décadas na ciência da restauração e monitoramento de áreas, e, devido a isso, está em posição de destaque neste atual chamamento da ONU”, avalia.
Na visão de Couto, o desafio exige traduzir o conhecimento técnico-científico para quem precisa e tem interesse em fazer a restauração na prática, como se propõe a nova publicação do Diálogo Florestal – 10º volume de uma série de edições que já abordaram o tema dos recursos hídricos e planejamento de paisagem, e agora dá ênfase aos impactos econômicos e sociais da atividade.
Além da renda como negócios, estima-se que cada 1 mil hectares implantados com mudas ou sementes representa cerca de 200 empregos diretos, podendo atingir 112 mil por ano com base no compromisso climático brasileiro no Acordo de Paris de recuperar 12 milhões hectares até 2030, segundo projeções do Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg).
O debate para aumento da escala ganha força no contexto das agendas ambientais globais e nacionais em 2022, com o movimento em torno dos 30 anos da Rio 92, a histórica Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, além das perspectivas das novas rodadas de negociação nos acordos do clima e da biodiversidade.
“Como essa visibilidade ajuda a atrair investidores e a alcançar um maior patamar?”, pergunta Maria Otávia Crepaldi, presidente da Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre). Em sua análise, a cooperação é um dos elementos-chaves para a recuperação de áreas degradadas se destacar como geradora de emprego e renda em um país como o Brasil, de alto potencial na atividade. “É essencial o engajamento de atores na formação técnica e, dessa forma, a Sobre funciona como ponto de encontro entre instituições”, reforça. Para Crepaldi, também integrante do Instituto Ipê, o dinamismo do setor no momento traz oportunidades, com visão de longo prazo, porque “restaurar floresta não é como plantar cana ou soja, que colhe no ano seguinte”.
“É crucial parar de destruir, mas também precisamos regenerar”, ressalta Daniel Venturi, analista de conservação e restauração do WWF-Brasil. Ele completa: “É tempo de restaurar nossa relação com a natureza e só conseguiremos atingir a escala necessária se tivermos inclusão social desde já”. De acordo com o analista, há necessidade de um novo pacto com a sociedade e ter como premissa a equidade de gênero com escuta ativa para as demandas das comunidades. “Questões como a diversidade de atores e territórios são inegociáveis para proteger e recuperar recursos naturais”, diz Venturi.
Arranjo público-privado
Um desafio é criar espaços para que a sociedade civil consiga ampliar a restauração dos ecossistemas, associada à segurança alimentar, hídrica e energética e, ao mesmo tempo, assegurar direitos a povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Para Venturi, “os caminhos com vistas à escala social pedem arranjos integrados entre setores público e privado para catalisar políticas públicas, investimentos e inovações”.
Nesse cenário, proliferam iniciativas coletivas de múltiplos setores de interesse, com o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, estabelecido em 2009 com o objetivo de restaurar 15 milhões de hectares até o ano de 2050. Após mapear áreas prioritárias e construir um referencial teórico e padrões de monitoramento dos plantios, a iniciativa tem apostado atualmente na regeneração natural como forma de ganhar escala de maneira custo-efetiva no bioma. Entre 1996-2015, foram identificados 740 mil hectares em processos de recuperação de vegetação nativa, o que traz esperança à meta de 1 milhão de hectares comprometidos pelo Pacto com as metas globais do The Bonn Challenge.
Com objetivo de restaurar 1 milhão de hectares até 2025 na Mata Atlântica, potencializando a mitigação da mudança climática e outros benefícios para a sociedade, o Pacto é visto como modelo inspirador para iniciativas em rede criadas recentemente no País, em destaque na nova publicação do Diálogo Florestal. Entre elas, estão a Aliança pela Restauração da Amazônia e a Articulação pela Restauração do Cerrado (Araticum), que por sua vez conecta coletivos locais a exemplo da Associação Cerrado de Pé – iniciativa atuante no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, com produção de seis toneladas de sementes por mais de 100 famílias, em 2021.
“O desafio da restauração precisa estar conectado com realidades e demandas dos diferentes territórios e paisagens, para além de compromissos e metas setoriais das empresas”, enfatiza Beto Mesquita, representante da BVRio e coautor de um dos capítulos da publicação. Neste caminho, diz ele, soma-se a busca por uma maior capacidade de atrair e organizar recursos em larga escala, com articulação de cadeias produtivas. “A sociedade civil tem sido crucial no aperfeiçoamento de mecanismos financeiros”, aponta Mesquita, ao citar iniciativas recentes como o Floresta Viva, do BNDES, e o Fundo Ambiental Sul-Baiano, que tem £ 3 milhões para investimentos na região.
O potencial do mercado voluntário de carbono turbina novos arranjos de capital, como a iniciativa do Mercado Brasileiro de Serviços Ambientais, liderada pela The Nature Conservancy (TNC) na região da Mantiqueira – plataforma que aproxima produtores e investidores, inicialmente no campo dos negócios climáticos, mas com perspectiva de abranger o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) também para conservação da água e biodiversidade. “O momento requer novos investidores e modelos de capital paciente, dentro de uma lógica de larga escala”, afirma Mesquita.
Ele lembra o nascimento de negócios inovadores, como a startup de reflorestamento Momback, além da Re.green com meta de restaurar 1 milhão de hectares em 10 anos – ambas lideradas por pesquisadores e empreendedores originários da articulação em rede que hoje marca a atividade. “É estratégica a chegada de investidores de fora da bolha que olham para a restauração como um business, lastreado na ciência, com potencial de desenvolvimento local”, observa Mesquita.
No entanto, segundo analistas, uma maior escala depende de avanços em questões macroeconômicas, como a necessidade de incorporar os recursos naturais nas contas nacionais.
“O desafio está em redirecionar o capital hoje investido em atividades prejudiciais, como fontes fósseis de energia, aumentando o volume de recursos aplicados de forma mais racional em benefício da humanidade”, ressalta Rubens Benini, líder da estratégia de restauração de florestas da TNC no Brasil. “Como organizar a economia de uma casa, sem olhar para a horta e o jardim?”, ilustra o engenheiro florestal.
Ele cita os resultados do estudo Financiando a Conservação da Natureza: Eliminando a Lacuna no Financiamento da Conservação da Biodiversidade Global, coordenado por TNC, Cornell Atkinson Center for Sustainability e Paulson Institute, indicando o gap entre o valor gasto e o necessário para deter o declínio da biodiversidade até 2030. O déficit é estimado entre US$ 598 bilhões e US$ 824 bilhões por ano, com níveis de financiamento que cobrem hoje apenas 19% da demanda. “Isso representa menos de 1% do PIB global e o realinhamento de recursos poderia alavancar soluções baseadas na natureza, que representam 40% do necessário para manter o aumento da temperatura global nos níveis de segurança até o fim do século”, explica Benini.
Segundo ele, “a hora é agora, porque até 2030 o cenário pode ser ainda mais difícil e obscuro, com a perspectiva de situações irreversíveis, de acordo com o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC)”.
Estudos comprovam o retorno econômico-social desses investimentos. No plano internacional, pesquisadores americanos já mostravam, em 2014, que o aporte anual de US$ 9,5 bilhões em recuperação ambiental nos EUA, incluindo restauração florestal, gerou 126 mil empregos diretos e 100 mil indiretos – proporcionalmente seis vezes mais do que os setores de petróleo, gás e mineração.
No Brasil, pesquisas do World Resources Institute (WRI) voltadas a fomentar a reflorestamento de espécies nativas com viés econômico indicam que cada R$ 1 investido gera R$ 2,4 de retorno. “Precisamos executar o que já construímos, a exemplo do Planaveg, de modo que a mão invisível do mercado possa agir e gerar demanda, com um desafio: “Se não trouxermos o produtor rural, um dos mais importantes elos da cadeia, a restauração não acontece”.
Cases de referência ajudam na maior escala
Nos diferentes territórios e realidades do País, o trabalho em rede tem proporcionado maior aproximação entre oferta e demanda por restauração. “Juntamos diversidade de coletores e diferentes visões de mundo, construindo pontes”, revela Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu, que promove a recuperação de ecossistemas com inclusão socioeconômica.
Após 15 anos, a iniciativa atinge 7 mil hectares recuperados pelo método da dispersão de sementes, com participação de produtores rurais em região do Mato Grosso que é reduto do agronegócio. São distribuídas por ano cerca de 32 toneladas de sementes, obtidas em 19 municípios com renda total de R$ 1 milhão para os grupos de coletores da agricultura familiar ou indígenas, hoje com 600 integrantes. Segundo Ferreira, a expectativa é multiplicar esses grupos, inspirando outras redes de sementes na demanda da Década da Restauração. “É um trabalho formiguinha de valorização do conhecimento tradicional”, diz.
A iniciativa está entre os casos de sucesso presentes na publicação e anunciados no webinar do Diálogo Florestal, após chamada pública e seleção por um comitê de especialistas. “Mostramos que é possível restaurar o semiárido mais biodiverso e populoso do mundo”, afirma Renato Garcia, coordenador do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Ele lidera os trabalhos de pesquisa da flora e recuperação de áreas degradadas de Caatinga, associadas às obras do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (Pisf) – case também vencedor do processo de seleção, na categoria “grande escala”.
“O reconhecimento é um aditivo para continuar o trabalho no esforço de recuperar a Caatinga, inclusive em núcleos de desertificação”, observa o pesquisador. Segundo ele, os resultados comprovam o potencial do licenciamento de uma grande obra como investimento, e não custo, resultado de um processo de ações articuladas entre órgãos ambientais, empreiteiras, universidades e Ministério do Desenvolvimento Regional – responsável pela transposição do São Francisco.
Após dois anos de testes, foi consolidado um modelo adequado às características das áreas degradadas no bioma. Basicamente, abrange ações de semeadura direta de uma a três espécies de herbáceas nativas para cobertura do solo exposto pela obra e a implantação de núcleos de espécies arbustivas e arbóreas. E o monitoramento é realizado por sistema automatizado via smartphones. Entre 2017 e 2021, foram implementados mais de 770 hectares de floresta na Caatinga, no total de 78 mil mudas de espécies nativas e mais de 5 toneladas de sementes para cobertura do solo.
“A meta agora é terminar de cobrir o passivo ambiental da obra como um marco importante para a Caatinga e levar a metodologia para áreas privadas”, revela Garcia. Um dos exemplos é a restauração florestal na propriedade onde são desenvolvidas pesquisas para soltura de ararinhas-azuis na natureza, em Curaçá (BA). “Precisamos devolver capacidade hídrica e preparar áreas para o retorno da biodiversidade”, completa.
Novas referências, como as reconhecidas na publicação do Diálogo Florestal, inspiram o crescimento da atividade nas várias regiões, indo além da questão ambiental. “A diversidade de perfil das iniciativas em curso no País retrata o viés social da restauração”, diz Daniel Piotto, pesquisador da Universidade Federal do Sul da Bahia, integrante do comitê de avaliação ao lado dos professores Ricardo Rodrigues (Esalq/Universidade de São Paulo) e Fátima Piña-Rodrigues (Universidade Federal de São Carlos).
No Rio de Janeiro, o destaque está no projeto que une restauração florestal e perspectivas de trabalho para pessoas privadas de liberdade. “O objetivo é recuperar áreas, proteger mananciais hídricos e, ao mesmo tempo, beneficiar socialmente pessoas no cumprimento de pena”, explica Alan Henrique de Abreu, engenheiro florestal da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae).
O Programa Replantando Vidas aborda desde a coleta de sementes e produção de mudas florestais em sete viveiros instalados em presídios até o plantio e a manutenção de áreas de interesse hídrico, com geração de renda. No total, são 100 participantes – tanto indivíduos com autorização da Justiça para sair diariamente para trabalhar, quanto pessoas em prisão domiciliar e liberdade condicional. Entre 2015 e 2020, foram produzidas cerca de 1,3 milhões de mudas, abrangendo a diversidade de 249 espécies nativas da Mata Atlântica, utilizadas para proteger nascentes e fornecidas para outros projetos de restauração no estado.
“No Brasil, dono da terceira maior população carcerária do planeta, segurança pública e restauração florestal são grandes desafios nacionais”, afirma Abreu, na expectativa de ganhar escala com construção de dois novos viveiros em unidades prisionais, em Resende e Paraibuna (RJ), e replicar o modelo para outros projetos voluntários em áreas de mananciais do Rio de Janeiro. Recursos estão sendo reivindicados junto ao BNDES para dobrar os investimentos nos próximos anos.
Já no Espírito Santo, referência em política pública estadual de restauração com o Programa Reflorestar, o destaque está na tecnologia de certificação via sistema de gestão de qualidade. “A ideia é garantir a rastreabilidade do processo, com transparência na aplicação dos recursos”, revela Marcelo Meneguelli, diretor da empresa MV Gestão Integrada. A iniciativa reúne 600 produtores em 26 municípios, com 1,2 mil hectares sob restauração na Mata Atlântica e o repasse total de R$ 9 milhões em PSA. “Tradicional pela predominância da produção de café e leite, a região se abre para novas culturas com o uso econômico das espécies nativas de restauração”, diz Meneguelli.
Para Edilaine Dick, coordenadora de projetos da Apremavi, em Santa Catarina, a soma dos pequenos tem papel estratégico no aumento de escala da restauração, como na iniciativa Restaura Vale. “O diferencial está em pequenas propriedades somadas para o alcance de uma grande área, com restauração de nascentes e conexão de remanescentes florestais, formando corredores para a fauna”, explica Dick.
Iniciado em janeiro de 2018, o projeto recuperou 320 ha de Áreas de Preservação Permanente (APP) degradadas. Até o momento, envolveu 700 imóveis rurais, com benefícios para 1,1 mil agricultores familiares, aumentando localmente o entendimento da responsabilidade sobre o uso dos recursos naturais. “A meta agora é identificar novas áreas e ampliar o monitoramento participativo da restauração, com ajuda da internet e vídeos”, diz.