[Áreas de desmatamento em Careiro da Várzea -AM, próximas às Terras Indígenas do povo Mura – Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/ Fotos Públicas]
Resultado da disputa presidencial pode aprofundar isolamento do País na cúpula ou dar início a seu realinhamento com comunidade internacional, dizem especialistas
Esta reportagem integra a série Na Rota da COP 27, com a cobertura dos principais temas da Conferência do Clima no Egito
Por Renato Grandelle*
Tradicionalmente conhecido por seu poder de articulação e de liderança diplomática na seara ambiental, o Brasil viu sua reputação definhar nas últimas edições da Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a COP do Clima. A menos de dois meses do novo encontro global, em Sharm El Sheikh, no Egito, pouco se sabe sobre a postura que o País apresentará frente à comunidade internacional. Boa parte da incerteza é atribuída aos rumos da eleição presidencial, cujo resultado poderá ser conhecido apenas na semana anterior ao evento, caso a disputa vá para o segundo turno, que é a hipótese mais provável.
A COP 27 será a terceira desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, o País abriu mão de sediar o evento e firmar-se como protagonista nas discussões – a conferência ocorreu em Madri, de onde a delegação brasileira saiu laureada com o antiprêmio Fóssil do Ano, concedido por ONGs internacionais à nação que mais atrapalha as negociações climáticas. Após o vácuo de 2020, quando o evento foi cancelado devido à pandemia do coronavírus, o Brasil optou pela discrição na COP 26, ocorrida no ano passado em Glasgow, e aderiu a acordos para reverter a degradação florestal e reduzir as emissões de metano.
Os elogios ao engajamento brasileiro, porém, duraram pouco. Semanas após o encontro, o governo federal divulgou uma nova alta na taxa de desmatamento da Amazônia. O ofício apresentava uma data anterior à convenção, demonstrando que as autoridades do País foram à Escócia munidas da má notícia, mas optaram por ocultá-la.
Para Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, o corpo técnico do Itamaraty, responsável pela condução das negociações, reorientará seus posicionamentos caso Bolsonaro não seja reeleito, mesmo com sua permanência no Palácio do Planalto até o dia 1º de janeiro de 2023.
“Se a oposição vencer, podemos esperar uma diplomacia mais ousada, mesmo que não tenha recebido orientação para isso, dando início ao nosso realinhamento com a comunidade internacional”, avalia Unterstell.
“No entanto, se Bolsonaro conseguir um novo mandato, veremos um aprofundamento de nossas atuais posições e da imagem de um país que destrói a Amazônia e sua biodiversidade sem pensar nas consequências. É a postura de um pária, que será chamado para conversar apenas sobre assuntos específicos, e que provavelmente não será beneficiado com financiamentos climáticos, o que pode ocorrer com outras nações em desenvolvimento”, diz ela.
Secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini também se preocupa com o isolamento brasileiro nas discussões da COP 27, que poderia ser agravado pela possível elevação, pelo quinto ano consecutivo, da taxa de desmatamento da Amazônia. Entre as consequências da devastação da floresta está o descumprimento das metas climáticas apresentados pelo Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU).
“Os dados do desmatamento sempre têm um grande impacto internacional. É um símbolo da falência de nossa relação com o meio ambiente”, alerta Astrini. “Ver uma Amazônia perdida significa jogar fora o Acordo de Paris. Algumas áreas do bioma já emitem mais carbono do que absorvem.”
Astrini recomenda que, caso Bolsonaro não conquiste um novo mandato, o presidente eleito envie representantes a Sharm El Sheikh, onde acompanharão o debate da cúpula climática. Do contrário, adverte, o Brasil poderá sofrer um “vácuo de representação”.
Carlos Rittl, especialista em Política Internacional da Rainforest Foundation Norway, considera que o Brasil chegará pressionado à COP. Além do desmatamento, o governo pode ser cobrado por outras ações que mostrariam descaso com a preservação dos ecossistemas e o combate à mudança climática, como a disseminação da criminalidade na Amazônia e a hostilidade a populações nativas.
“Considerando a atual marcha do desmatamento, terminaremos o governo Bolsonaro com a perda de até 70 mil km² de vegetação na Amazônia e no Cerrado nos últimos quatro anos”, sublinha Rittl. “Também há uma intolerância mundial com a violência contra populações locais e a condescendência com criminosos ambientais. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips [em junho, no Vale do Javari, no Amazonas] reforçou a imagem de que o governo brasileiro deixou o crime tomar conta da floresta”, diz ele.
Em um momento em que a descarbonização se tornou a palavra de ordem, o Brasil corre o risco de sofrer cada vez mais represálias econômicas diante da devastação ambiental. O atraso para a ratificação de um acordo comercial entre União Europeia e Mercosul, segundo Rittl, ilustra o descontentamento com a política ambiental e climática do País.
“O Brasil passou a ser um parceiro de risco para muitas empresas. Moro na Alemanha e já vi várias mobilizações de consumidores reivindicando que as cadeias de supermercados não coloquem em suas prateleiras produtos associados ao desmatamento”, destaca Rittl.
Rittl acrescenta que os Estados Unidos, assim como a União Europeia, poderão reforçar o coro pela cobrança de medidas concretas do governo brasileiro para combater a mudança climática. O Itamaraty, no entanto, terá menos dificuldades em dialogar com China e Índia, que integram, junto com Brasil e África do Sul, o bloco Basic – países emergentes que estão entre os principais emissores de gases de efeito estufa do mundo, mas que têm condicionado o estabelecimento de metas climáticas ambiciosas à concessão de financiamentos pelas nações desenvolvidas.
Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente, acredita que o Brasil sofre uma “perda de espaço sem precedentes” na COP, justamente em um momento onde teria um papel crucial a exercer, dada a polarização geopolítica entre EUA e China e a insegurança energética na Europa.
“O Brasil é um ator importante para algumas discussões, como a segurança alimentar, e para equacionamento de crises. Só 15 países têm relações diplomáticas com todas as nações do mundo, e o Brasil é um deles. Temos uma voz construtiva”, analisa Teixeira, que também é senior fellow do Instituto Arapyaú.
“No entanto, vivemos um processo de erosão das instituições públicas do País, que inclui uma visão tola e ultrapassada do meio ambiente como uma agenda de esquerda, como se ela não tivesse relação com investimentos. Perdemos brilho no cenário político internacional e hoje somos vistos com ceticismo”, diz ela.
A ex-ministra, no entanto, ressalta que o Brasil não se resume a seu governo. Portanto, embora o País tenha encolhido na seara política, ainda tem lugar cativo em outras rodas. A produção científica sobre a Amazônia assinada por pesquisadores brasileiros é observada com interesse no círculo acadêmico internacional. A incorporação de conceitos de sustentabilidade pelo empresariado brasileiro abre portas para investimentos estrangeiros. Os governos subnacionais têm ampliado espaço na COP, em contraposição ao Palácio do Planalto, e angariado elogios por assumir mais compromissos relacionados à conservação ambiental.
Segundo ela, a sociedade civil, por sua vez, conquistou os holofotes da cúpula climática ao denunciar medidas patrocinadas por Bolsonaro, como a paralisação da cobrança de multas ambientais, a suspensão de ações de fiscalização no campo e a perseguição a servidores que insistem em executá-las. Lideranças indígenas despontam entre os opositores do governo federal e ganharam canal aberto com diplomatas de outros países. No ano passado, por exemplo, a jovem Txai Suruí, de 24 anos, discursou na abertura da COP de Glasgow, onde denunciou a morte de um indígena que registrava extrações ilegais de madeira dentro de sua Terra Indígena, em Rondônia.
“O Brasil não pode ser refém de seu governo. A sociedade civil, a ciência e o setor privado podem exercer um papel global. Os atores subnacionais têm autonomia para fazer suas políticas. Há vários canais para interlocução, que nos levarão à liderança do século XXI”, assegura Teixeira.
*Renato Grandelle, jornalista, cobre a COP 27 no Egito para a Página22