O fenômeno de bloqueio das estradas que marcou os primeiros dias após a derrota do presidente Bolsonaro nas urnas é a metáfora eloquente para o legado de seu governo. Foram quatro anos de perturbação dos fluxos de cuidado na saúde pública e de aprendizagem na educação, entre outros. É urgente estimular um modo mais focado na formação integrada de seres humanos, a partir de fluxos e trocas no coletivo
Por Ricardo Barretto*
Um elemento fundamental para a manutenção da vitalidade em qualquer sistema complexo é o movimento. Sem fluxo, sem troca, definham as possibilidades de nutrição, transformação e adaptação que garantem a perpetuação da vida. E a inércia se torna condição para o adoecimento, seja em um ecossistema, seja no corpo humano, seja na sociedade. O fenômeno de bloqueio das estradas que marcou os primeiros dias após a derrota do presidente Bolsonaro nas urnas é a metáfora eloquente para o legado de seu governo.
Foram quatro anos de perturbação dos fluxos de cuidado na saúde pública, de aprendizagem na educação, de direitos para os grupos minorizados da população, de criação nas artes e na cultura, de informação por toda parte. E, claro, a ação violenta contra a propagação dos fluxos da diversidade biológica e humana nas inúmeras áreas em que houve desmatamento e atentados à vida dos povos originários.
Esse fenômeno em múltiplas frentes combina com a pauta prioritária do governo de armar a população, exacerbando o culto à morte e à interrupção dos fluxos livres da vida no País. A mesma estratégia se alastrou pelos ambientes da vida privada, com o acirramento de discursos de ódio e de polarização, que barram a possibilidade do comum, da construção de entendimentos e da troca, até mesmo nos núcleos familiares.
O período de transição que se inicia agora – e que não acontecerá sem ruídos, como já visto – abre espaço para se observar esse princípio simples que conecta natureza, sociedade e corpo humano às suas potências de vitalidade. Reconhecer onde os fluxos foram bloqueados e como abrir passagem para que voltem a acontecer as trocas e transformações será um grande desafio para os próximos anos.
Nesse exercício, será fundamental uma perspectiva histórica sobre as dinâmicas que culminaram na situação de afronta à vida que foram impactantes nos últimos quatro anos, porém cuja origem muitas vezes remonta a elementos pregressos. O racismo, o patriarcado, a aporofobia (aversão aos pobres), a misoginia, o negacionismo científico e a noção da floresta em pé como símbolo de atraso são alguns exemplos de modelos mentais que se perpetuam na sociedade brasileira há séculos e que encontraram terreno propício para vicejar nos últimos anos.
Esse conjunto de desafios se liga a um outro que foi escancarado nas pesquisas eleitorais: o fato de um projeto fortemente ligado à necropolítica e a orientações autoritárias ter sido preferido pela parcela mais escolarizada da sociedade. Essa preferência ou falta de perspectiva crítica aponta, entre outros fatores, para uma deficiência grave na qualidade da educação no Brasil.
Deficiências nessa área são muitas vezes associadas à educação pública ou àquela voltada à população mais carente. Mas o fenômeno do bolsonarismo ressalta uma questão de essência da educação. O modelo conteudista, que continua imperando nas escolas públicas e privadas, do ensino fundamental ao superior, é incapaz de estimular empatia e espírito crítico – especialmente em uma parcela grande do grupo tido como mais escolarizado, que tende a viver realidades sociais mais isoladas, menos diversas e pouco conectadas com desafios complexos do País.
Que fique claro, não está em debate aqui a defesa de perspectivas de esquerda ou direita. Mas o estímulo a um olhar humanizado para a realidade de um país desigual; o entendimento das dinâmicas integradas da natureza e de interdependência entre ela e a sociedade; uma formação capaz de promover diálogo e oferecer condições ao equilíbrio emocional das pessoas; entre outros aspectos que poderiam estar associados ao campo da educação, mas que frequentemente são deixados de lado.
O modelo educacional fundamentado em retenção de informação, como no século XIX, desempenho competitivo em provas e projetos, como no século XX, e em geral apoiado em corpos sem fluxo nas cadeiras enfileiradas ainda é preponderante nas escolas. E insuficiente para apoiar a formação de seres humanos com espírito crítico, empatia e perspectiva integrada. Daí que mentalidades políticas e visões de mundo arcaicas tenham muito mais chance de prosperar entre pessoas formadas nesse contexto.
Neste sentido, o famoso gap educacional no Brasil não é apenas de desigualdade de oportunidades e condições básicas nos diferentes níveis de ensino. É também do modelo educacional.
Políticas de educação e projetos pedagógicos atentos para os sinais das urnas devem estar preocupados não apenas em sanar as perdas da pandemia ou as questões de acesso. É urgente estimular um novo modo de conceber educação pública e privada, menos centrado em conteúdo e mais focado na formação integrada de seres humanos. Que devem ter total liberdade para se alinhar a ideologias mais à direita, ao centro, à esquerda… Mas que não podem negligenciar princípios basilares de que a sociedade se sustenta a partir de fluxos e trocas no coletivo, e na relação constante com o ambiente do qual é parte.
*Ricardo Barretto é comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)