Startups apoiadas pela Aceleradora 100+ apresentam soluções para os dois maiores problemas relacionados à oferta de água de qualidade: poluição e desperdício
Por Magali Cabral
Atividades produtivas, bem como a própria vida, dependem de uma certa quantidade permanente de água de qualidade para seguir em frente. Como a tendência futura pende muito mais para escassez de oferta do que para fartura de recursos hídricos, o risco de desabastecimento é uma constante na rotina das indústrias, sobretudo as hidrointensivas. De acordo com dados da organização Water Resilience Coalition (WRC), 45% das empresas globais relatam exposição a riscos de insegurança hídrica, hoje estimados em US$ 425 bilhões.
Em uma tentativa de mitigar o risco, a indústria de bebidas Ambev, signatária da WRC, havia anunciado em 2017 que todas as bacias hidrográficas de alto risco nas quais atua apresentariam melhorias mensuráveis na qualidade e na disponibilidade de água até 2025. Além disso, reduziu em 55% o seu consumo de água nos últimos 20 anos e agora busca inovações capazes de impactar positivamente toda sua cadeia de valor, segundo informações da gerente de sustentabilidade da Ambev na América do Sul, Mariana Orichio Mello Appel.
Para dar suporte a tais metas, a Aceleradora 100+, mantida pela indústria de bebida e seus parceiros, está em campo desde 2018 selecionando e apoiando startups nos vários setores da sustentabilidade (ver box). Entre as diversas que atuam no eixo água, a TRC Sustentável teve seu projeto de redução de desperdício selecionado em 2021, testado e finalizado em março de 2022; enquanto a O2Eco foi recentemente selecionada para realizar projeto-piloto de tratamento de água sem uso de químicos ou bactérias exóticas, ao longo de 2023, em Sete Lagoas (MG).
À caça de vazamentos
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 40% das águas captadas e tratadas se perdem em vazamentos nas redes de distribuição e nos imóveis. Em 2004, o goiano Anderson Silva decidiu dedicar sua vida profissional ao combate desse desperdício escandaloso. Ele enxergou na missão uma oportunidade de negócio em que só haveria ganhadores. De quebra, futuramente ainda contribuiria com as metas do ODS 6 (Água Potável e Saneamento) e com as agendas ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança) de seus clientes.
Silva, então, fundou a TRC Sustentável, que desenvolve soluções, produtos e tecnologias para reduzir o consumo de água e a fatura decorrente. “Acreditamos tanto no que fazemos, que a nossa receita provém da economia que geramos para o cliente. Ou seja, não há custo de contratação. Recebemos um fee [taxa] mensal sobre os resultados alcançados no projeto”, revela o empreendedor.
A TRC participou da 3a turma da Aceleradora 100+ e foi selecionada para executar um projeto-piloto de gestão de água junto a cinco locais: três pontos de venda clientes da Ambev – um bar, uma pizzaria e um restaurante – e dois centros de distribuição (CDD), sendo um no Rio de Janeiro e o outro em Joinville (SC).
O desafio maior estava nesse último estabelecimento. “O CDD de Joinville era modelo em tecnologias sustentáveis. Tinha o menor consumo de água entre todos os CDDs da Ambev”, conta Silva. “Ainda assim conseguimos alcançar quase 20% de economia naquela unidade”. Nos estabelecimentos sem tanto investimento em sustentabilidade, a TRC alcançou, em média, 40% de redução de consumo, para uma meta de 35%.
Para reduzir o consumo nos imóveis, a startup começa sua operação mexendo no encanamento – instala restritores de vazão, controladores de fluxo, estabilizadores de pressão da água da rua, válvulas e registros, alguns dotados de Inteligência Artificial. A maioria das peças usadas é patenteada pela TRC. Concluída a etapa inicial, os técnicos desenham o que consideram ser o cenário ideal para o cliente, com recomendações que podem reduzir ainda mais o consumo, como aproveitamento de água de chuva, mictórios à base de gel etc.
A etapa seguinte é começar a usar o PGA – um software, ou aplicativo, no qual o cliente insere dados básicos do negócio, como informações sobre as últimas faturas, o tipo de segmento, número de trabalhadores, horário de funcionamento etc. Alimentado, o software faz a análise de viabilidade e traça um modelo de consumo ideal para aquele determinado estabelecimento.
“Via de regra, o consumo ideal é sempre muito abaixo do consumo real”, diz.
Sensores instalados no encanamento permitem monitorar o consumo de água em tempo real e à distância. No aplicativo, o cliente recebe alertas de vazamento e dados sobre a performance em economia de água, tanto em metros cúbicos como em reais. Os hidrômetros são observados e o sistema emite um aviso caso se movimentem em horários de não funcionamento. Os registros podem ser acionados, também remotamente, para travar a entrada de água da rua.
Ao fim de um período, por meio de um dashboard (painel visual usado com ferramenta de gestão, que apresenta informações sobre evolução de resultados e alcance de metas), o PGA apura o resultado obtido pelo conjunto de clientes. “Saberemos exatamente quanto impactamos positivamente os parceiros da Ambev em economia de água e de dinheiro”, conclui Silva.
A natureza dá o exemplo
O “ex-futuro” engenheiro agrônomo Luís Fernando Magalhães estava no terceiro ano da faculdade, no Rio de Janeiro, quando surgiu a oportunidade de passar dois meses na Austrália. Era um sonho de infância, que teve um desfecho inesperado: os dois meses se prolongaram por 14 anos.
Ele estudou Administração de Empresas, montou um negócio de intercâmbio para estudantes brasileiros e um dia conheceu o produtor de ostras e pérolas Robert Morgan, na região de Shark Bay, próximo a Perth, na costa oeste australiana. Esse encontro traria Magalhães de volta para casa, com um novo negócio na bagagem.
Na tentativa tornar o criatório das ostras mais saudável, o australiano Robert Morgan, inspirado na natureza, desenvolveu uma tecnologia que tem feito diferença na despoluição de águas degradadas por acúmulo de matéria orgânica. Trata-se de uma placa feita de parafina, que libera nano-minerais – os mesmos encontrados junto aos corais nos oceanos – quando colocada dentro d’água. Esses nanominerais provocam a bioestimulação de um tipo de microorganismo capazes de consumidor grandes quantidades de nitrogênio e fósforo, os vilões causadores do crescimento descontrolado de algas e plantas aquáticas. “O método provoca uma autorregeneração do meio, dispensando o uso de bactérias exóticas ou produtos químicos”, explica Magalhães.
Seis meses depois que o australiano colocou as placas em seu criatório, não só suas ostras pareciam mais saudáveis, como permaneceram incólumes a uma infestação pelo vírus “herpes de ostras” que, em 2014, afetou toda a cadeia de produção da Austrália e de outros países, com exceção de duas: a dele e a de um amigo produtor que também usou o experimento.
Pela inovação, Morgan recebeu prêmios da Curtin University of Technology e da Western Australian Institute of Technology. Quando leu a notícia, o espírito empreendedor de Magalhães o deixou inquieto. Ele sabia dos 84 mil quilômetros de rios brasileiros poluídos, uma extensão superior a algumas idas e vindas entre o Brasil e a Austrália.
“Vi ali uma oportunidade de trazer algo bom para o Brasil”, afirma.
Depois de acertar um modelo de negócios com o Robert Morgan, que lhe possibilitaria fabricar as placas no Brasil, em vez de importá-las, Magalhães fundou com outros dois sócios – Nivaldo Friol e Nilton Ferraro – a O2Eco. Mas a hora não era boa. Veio a pandemia de Covid-19 e por dois anos pouco aconteceu. “Como estávamos sem receita, uma das formas que encontrei foi responder editais de grandes empresas, como Sabesp (empresa de abastecimento de água de São Paulo) e Ambev”, conta.
O resultado é calculado por área e não por metro cúbico, pois as cianobactérias, responsáveis pela carga poluidora, proliferam-se na superfície da água. No caso de Sete Lagoas, ele afirma que a proposta com a Ambev, a rigor, é melhorar o que não está tão ruim. “Os efluentes devolvidos pela Ambev à natureza já são mais limpos do que a água captada no córrego”, diz Magalhães.
Selecionada pela Aceleradora 100+, na 4a chamada do Programa de Aceleração de Startups de Impacto Social e Ambiental, a O2Eco iniciará em 2023 um trabalho de despoluição no córrego Vargem dos Tropeiros, em Sete Lagoas (MG). As placas já estão dentro d’água – existem dois modelos, a de 1 quilo, que consegue tratar 100m2 e a de 5 quilos, capaz de tratar 500 m2 de superfície de água.
Essa não é a primeira intervenção da O2Eco no Brasil. Em 2018, a startup chegou a receber um prêmio, na categoria Empreendedorismo Sustentável da Amcham-Brasil (Câmara do Comércio Americana), pelos resultados obtidos no tratamento do Lago do Parque da Cidade, em São José dos Campos (SP). Em quatro semanas, as placas eliminaram 82% das cianobactérias do lago.
Ao selecionar as duas startups para atuar no setor de água da empresa, a Aceleradora 100+ foi estratégica: enquanto a TRC produz impactos positivos dentro dos muros da indústria e comércio, a O2Eco, atua do lado de fora, impactando positivamente as bacias hidrográficas. “A água é essencial à vida. Cobre 70% da Terra e compõe 70% do nosso corpo. Além disso, representa mais de 95% da composição dos produtos da Ambev”, diz Mariana Appel. “Para nós, cada gota conta”, arremata.
Sobre a Aceleradora 100+
O programa Aceleradora 100+ surgiu em 2018, alinhado à iniciativa global da Ambev e aos seus compromissos de sustentabilidade para 2025 (mais informações: aceleradora.ambev.com.br). A partir disso, são mais de 60 startups aceleradas e R$ 15 milhões investidos nos negócios parceiros. Em 2021, a Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e o Quintessa uniram-se a essa jornada e, agora, PepsiCo, Valgroup, Ball Corporation e Machado Meyer chegaram para integrar a quarta edição e ampliar a escalabilidade dos projetos apresentados.
As startups implementam as soluções de impacto por um período e mensuram os resultados gerados. A implementação pode ser de uma solução pronta, mas também é possível adaptar uma solução existente e até cocriar algo novo entre executivos e empreendedores. O foco do programa é garantir o êxito dessa implementação, corrigir a rota, se necessário, e orientar as duas partes a partir de boas práticas.
Destinado a negócios que estão em fase inicial no mercado, com clientes e vendas já realizadas, o programa está dividido em duas etapas, incluindo aulas teóricas sobre gestão de negócios; workshops realizados pelo Quintessa para desenvolvimento do piloto, implementação de piloto durante um processo de quatro meses; e apresentação no evento de encerramento, com premiação em dinheiro. Algumas startups se beneficiam pela contratação de serviços pela Ambev e por parceiros posteriormente, além disso, podem apresentar propostas de investimentos para a empresa e parceiros do programa.
Leia aqui a terceira reportagem desta série.