Uma análise dos 210 monumentos que homenageiam pessoas na cidade de São Paulo mostra o tamanho da distorção de representatividade social
Por Magali Cabral
Dos 210 monumentos erguidos nos espaços públicos da maior metrópole brasileira para homenagear figuras humanas, apenas 5,5% delas representam pessoas negras e 2%, pessoas indígenas. Essas e outras distorções na memória da cidade estão no estudo Patrimônio, Memória e Diversidade: um olhar antirracista sobre os monumentos da cidade de São Paulo, realizado pelo Instituto Pólis, no decorrer dos últimos dois anos.
A coordenadora de projetos do instituto, Cássia Caneco, explica que a pesquisa tem o objetivo de mapear, refletir e ajudar na construção de cidades mais justas e sem homenagem a símbolos de violência. Segundo ela, a pesquisa é também uma provocação que pode ser resumida em uma pergunta: que histórias as cidades nos contam?
Existem 377 monumentos na cidade de São Paulo, que retratam diferentes tipos de figuras. Do total, 53 são símbolos (14%), 50 são objetos (13%), 26 representam figuras religiosas e mitológicas (7%), 16 são datas comemorativas (4%), 9 são de outros tipos de figuras (2%), 13 não foram identificados (3%) e 210 (56%) são monumentos a pessoas.
Até 1980, eram somente três os monumentos a pessoas pretas – a estátua da “Mãe Preta”, a escultura “Contando a Féria” e o busto do abolicionista “Luiz Gama”. De lá para cá, com a intensificação dos debates sobre representatividade e memória coletiva, seis novos monumentos foram construídos na cidade. Ainda assim, a predominância de figuras brancas (74%) e de personagens que tiveram um papel central na exploração e opressão de povos negros e originários (48%) continua marcando os espaços da cidade, conforme mostra o estudo – a população preta da capital paulista, segundo o Censo do IBGE de 2010, representa cerca de 37% do total.
Além dos bandeirantes, a pesquisa inclui entre os personagens históricos controversos homenageados pela cidade os padres jesuítas, que “operaram expedições de evangelização e aculturação dos povos originários e defenderam a escravização de indígenas como forma de domesticação”; e militares, como Duque de Caxias e Almirante Tamandaré, “glorificados por campanhas violentas confundidas com ações de pacificação”.
Escravocratas e genocidas
Outras representações enaltecidas por grandes monumentos logo nas primeiras décadas do século XX são as de “escravocratas e genocidas” do período colonial, do Brasil imperial, ou do período republicano. Essas obras expostas pela cidade, segundo a pesquisa, enaltecem supostos atos de bravura, ignoram atrocidades pelas quais tais personagens foram responsáveis e invisibilizam os povos atacados ao longo de suas histórias. Entre esses, o estudo cita o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, patrono da Polícia Militar de São Paulo, o jornalista Ibrahim Nobre e o engenheiro Joaquim Eugênio de Lima.
Gênero
Discrepância ainda maior aparece quando as figuras dos monumentos são comparadas por critério de gênero. Homens correspondem a 83% do total das obras expostas pela cidade. Mulheres são homenageadas em 9,5% delas. Nas demais (7,5%), os dois gêneros estão presentes. A desproporcionalidade também está presente no gênero das autorias dos monumentos: cerca de 65% das obras foram concebidas por artistas homens e 9,5% por artistas mulheres – alguns autores não foram identificados.
Diferentemente dos homenageados masculinos, a maioria dos monumentos a mulheres representa figuras femininas genéricas, como nas obras “Ninando a Boneca”, “Mãe Preta” e “Depois do Banho”. Até 1980, duas únicas mulheres foram nominalmente homenageadas com monumentos: a pianista Antonieta Rudge, exibida na Praça Portugal, no bairro de Pinheiros, e a tenista Maria Esther Bueno, no Estádio do Pacaembu.
Tamanho e espaço
As dimensões físicas dos monumentos também apresentam um elemento de desigualdade quanto à representação de diferentes grupos sociais. Enquanto as obras que prestam homenagem a pessoas brancas atingem uma altura média de 3,3 metros, as que retratam pessoas negras têm em média 2,2 metros e as de indígenas, 2,8 metros. Crescem de tamanho as estátuas de personagens controversos, como os bandeirantes, chegando a 5,3 metros, em média.
Quanto ao tipo de espaço, 135 (64%) monumentos estão em praças, 27 (13%) estão em canteiros de vias, 23 (11%) estão em parques, 11 (5%) estão em calçadas e 14 (7%) localizam-se em outros tipos de espaço. Os parques da cidade, por exemplo, são dedicados quase exclusivamente à memória de pessoas brancas. Dentre os 23 monumentos localizados nesses espaços, 20 são homenagens a pessoas brancas (87%), apenas um deles compila mais de uma raça e outros dois não tiveram sua raça determinada.
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. A primeira, em 2020, partiu da base de dados da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), com 367 monumentos georreferenciados. Porém, não havia informação sobre gênero ou raça/cor das figuras retratadas. A segunda etapa, desenvolvida em 2022, incluiu novos monumentos, totalizando 377, e detalhou o banco com a identificação de obras que retratam figuras históricas controversas. Além disso, foram introduzidas variáveis que caracterizam o espaço do entorno no monumento para dimensionar seu impacto na paisagem urbana.