Para que a agenda indigenista perdure, as conquistas inéditas no campo institucional terão de ser acompanhadas por um sentimento de orgulho pela sociedade brasileira. O crescente protagonismo indígena, em especial o feminino, envolve essencialmente um debate sobre a identidade do País, a valorização da diversidade, e o reconhecimento da ancestralidade como passo para um Brasil melhor no futuro
Por Amália Safatle
A criação do primeiro ministério dedicado aos povos indígenas exemplifica o patamar inédito que essa agenda alcançou no Brasil, lançando bases para corrigir injustiças históricas e impulsionar um novo modelo de desenvolvimento com proteção do clima, da biodiversidade e dos modos de vida dos povos da floresta. Mas o protagonismo desses povos não será garantido somente por ritos institucionais e políticas públicas: será preciso também que a sociedade como um todo reconheça a importância dessa agenda, valorize-a e se orgulhe dela. Para perdurar, a pauta indigenista terá, antes de tudo, que se apoderar da narrativa, historicamente dominada pelo passado colonizador.
Estas são algumas conclusões do primeiro encontro realizado neste ano pela rede Uma Concertação pela Amazônia, que reavivou o recado da ministra Sônia Guajajara em seu discurso de posse: “Nunca mais um Brasil sem nós”. Com o objetivo de identificar as temáticas prioritárias para a política indigenista à luz do novo contexto político e as formas de colaboração dos diversos setores da sociedade, a plenária repercutiu outras falas da ministra: “Nós não somos o que muitos livros de História costumam retratar. É importante saberem que existimos de muitas e diferentes formas”.
O encontro da Concertação, realizado em 27 de fevereiro, reuniu mais de 150 participantes online, com presença de lideranças indígenas de diversas partes do País, notadamente mulheres. O protagonismo feminino não vem por acaso: a mulher é reconhecida entre povos indígenas como o território primordial onde a vida se origina, floresce e reproduz.
Essa nova força política, em especial da mulher indígena, foi simbolicamente representada no encontro pelo fotógrafo e cineasta Genilson Guajajara por meio de sua obra “Festa da menina-moça”. São imagens que retratam a passagem das meninas para a fase adulta de mulher, na qual conquistam a potência de gerar vida.
Rituais sagrados como o da menina-moça são registrados pelas lentes de Genilson, que se aperfeiçoou na técnica audiovisual em 2017 e em seguida passou a transformar em memória o dia a dia em sua comunidade, Terra Indígena Rio Pindaré, Aldeia Piçarra Preta, no Maranhão.
Atualmente, o fotógrafo promove oficinas para que mais indígenas possam transmitir sua realidade a partir das próprias vivências. “Meu trabalho mostra como o corpo se expressa em um espaço sagrado que é o nosso território”, diz. “Todos os instrumentos usados nos rituais têm um significado e o corpo é preparado para receber o toque do espírito do povo Guajajara. Tento passar através da imagem aquilo que não se pode ver.”
Para que a sociedade se orgulhe dessa riqueza imaterial que o Brasil possui, será preciso trabalhar aspectos educacionais e culturais que levem à compreensão da própria identidade nacional e dos traços ancestrais que a compõem, acredita o economista Francisco Gaetani. Integrante da Concertação, Gaetani hoje está à frente da Secretaria Extraordinária para a Transformação do Estado do Ministério da Gestão e da Inovação.
Segundo ele, essa nova compreensão deve partir de lugares de formação, como as escolas. “É preciso que a sociedade valorize a atuação dos povos indígenas e tenha consciência do que isso significa para nós, enquanto brasileiros, e também da sua importância do ponto de vista internacional”, afirma.
“Temos de aproveitar este momento de compromissos assumidos pelo governo Lula com os povos indígenas para institucionalizar essa agenda. Mas o principal é a mudança de entendimento por parte da sociedade”, reforça Gaetani. Caso contrário, há riscos de retrocessos na política indigenista durante a alternância de poder.
Perpetuar os avanços recém-conquistados também é uma preocupação de Ceiça Pitaguary, secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do Ministério dos Povos Indígenas. “O ministério é uma inovação e uma ousadia, após anos de retrocesso e desmonte na política indígena”, diz. E para que esse avanço não seja transitório, ela afirma a necessidade de haver articulação do ministério dos Povos Indígenas com as demais pastas, garantindo diálogo e transversalidade.
Um desafio em especial é a diversidade entre os povos. “Não existe um modelo de gestão igual para todos, cada um tem sua forma própria de entendimento sobre como deve se dar o desenvolvimento sustentável”, diz Pitaguary. Diante disso, ela afirma que o ministério pretende consultar os diversos representantes indígenas, ouvindo-os sobre questões como a demarcação e a gestão de Terras Indígenas.
A agenda indigenista desdobra-se entre ações estruturais, com olho no futuro, e ações emergenciais, que sejam capazes de reconstruir agora o que foi perdido durante os anos de desmonte do governo Bolsonaro. A questão Yanomami, que já sofria de déficit histórico de atenção, agudizou-se nos últimos anos. Transformou-se em uma tragédia nacional e tem exigido especial atenção dos governos.
Puyr Tembé, secretária dos Povos Originários do Estado do Pará, ressalta a necessidade emergencial de refazer o que foi desconstruído, enquanto se deve avançar em outras agendas. Ela defende o fortalecimento de secretarias indígenas dentro dos estados, e cita entre as ações necessárias neste momento a emissão de documentos civis, para que os povos tenham acesso a políticas públicas, e a ampliação de escolas.
Tendo em vista que muitas crianças indígenas estão fora da escola, a professora e ativista Vanda Ortega Witoto chama atenção para o desafio da educação indígena nos territórios. Ela defende que se crie uma secretaria específica para essa agenda dentro da estrutura do ministério da Educação. “Na Amazônia, existem comunidades sem acesso à educação indígena e à educação regular. Quando ampliamos a discussão sobre justiça climática, isso inclui acesso à escola. Educação é prioridade, pois significa manter vivos nossos direitos, culturas e territórios”, afirma.
A secretária Tembé faz um apelo especial às mulheres parceiras para que, vencido o processo de resistência contra as políticas anti-indigenistas do governo passado, as novas ações sejam colocadas em prática. “Não é hora de largar a mão de ninguém. O mais difícil já fizemos: lutamos por quatro anos com muita perseverança e vencemos. Só não imaginávamos estar dentro [do governo]. Agora que estamos, precisamos da fortaleza de todas vocês para construir não uma Amazônia em pé, mas uma Amazônia viva”, conclama.
A ativista e comunicadora Samela Sateré-Mawé lembra que, passado o período mais crítico, o momento agora é de reconstrução. “Além de deputadas federais eleitas e da ministra [Guajajara], esperamos ter ainda mais representantes, como secretárias de estado. Precisamos também das empresas e das entidades filantrópicas para garantir esse protagonismo e alcançar a justiça climática”, diz Sateré-Mawé. Ela tem participado ativamente das Conferências das Partes sobre clima e biodiversidade, faz parte da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e integra o time de fellows do Instituto Arapyaú.
A essas vozes guerreiras soma-se a de Kaianaku Kamaiurá, mobilizadora indígena da campanha Amazônia de Pé. “Não podemos perder de vista nossa ancestralidade e o mundo espiritual. Quando falamos de floresta, estamos falando de vida. Tudo está conectado. Não dá para falar em destruir florestas sem destruir vidas”.
Bioeconomia indígena e conectividade digital
Uma vertente que vem justamente aliar a vida à produção nas florestas é a bioeconomia, que tem sido desenvolvida também pelos povos indígenas, aumentando o protagonismo dos povos inclusive na seara econômica. Uma pesquisa do World Resources Institute (WRI) junto a 42 lideranças indígenas em nove estados da Amazônia Legal já levantou 40 produtos e serviços sendo desenvolvidos nos territórios, segundo Iara Vicente, pesquisadora na iniciativa Nova Economia da Amazônia. A publicação do levantamento está prevista para maio.
Para que a pauta indigenista possa se fortalecer nas mais variadas frentes, a conectividade será primordial, uma vez que a dimensão e a falta de infraestrutura do território amazônico impõem diversos obstáculos para a comunicação digital. Isso vem sendo trabalhado pela rede Conexão Povos da Floresta. Segundo o coordenador Tasso Azevedo, a expectativa é estabelecer 50 novas instalações de equipamentos até o fim de março e de 800 a 1 mil até o fim do ano, conectando regiões remotas, como aldeias indígenas.
Com isso, a rede espera ampliar programas de educação digital, telemedicina, proteção territorial, cultura e ancestralidade, e inclusão financeira. Por meio da participação de diversos parceiros e apoiadores, a iniciativa já captou US$ 3 milhões e está buscando mais recursos para expandir as operações (mais sobre conectividade na Amazônia aqui).
A conectividade permite interligar a ancestralidade indígena ao desenvolvimento que o Brasil almeja alcançar. Como diz Sônia Guajajara, “o Brasil do futuro precisa dos povos indígenas”.