A Cúpula da Amazônia, a ser realizada em agosto, busca retomar o diálogo entre os países amazônicos e definir compromissos para o desenvolvimento da região. Em diálogo promovido pela rede Uma Concertação pela Amazônia, representantes de povos originários, do governo, do empresariado e da sociedade civil propõem aumento da cooperação internacional, maior ambição no desenvolvimento das bioeconomias, segurança e protagonismo dos povos indígenas e das populações tradicionais
Por Amália Safatle
Quais caminhos levam ao desenvolvimento da região amazônica? A ser realizada em 8 e 9 de agosto em Belém do Pará, pelo governo federal, a Cúpula da Amazônia reposiciona o Brasil na arena internacional dos fóruns sobre desenvolvimento. Isso porque o País também sediará a Cúpula do G20, em 2024, e a 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP 30), em 2025, na capital paraense. A Cúpula da Amazônia reunirá chefes de Estado dos oito países integrantes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Do encontro, deve resultar uma declaração conjunta, “focada sobretudo em ação”, nas palavras de Maria Angélica Ikeda, diretora do Departamento de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores.
Ikeda foi uma das participantes do debate online “Diálogo Rumo à Cúpula da Amazônia: uma abordagem integrada de desenvolvimento“, promovido em 15 de junho pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo, para aquecer a pauta em torno desse encontro. A conversa partiu da premissa de que é necessário abraçar a complexidade desse vasto território, compreendendo a interdependência entre todas as variáveis que o compõem.
“A Cúpula é muito importante, pois é necessária uma abordagem integrada da Amazônia continental, tendo como referência a imensa bacia hidrográfica” – José Carlos Carvalho, consultor e ex-ministro do Meio Ambiente, em mensagem no chat do debate
Também participou do debate Lívia Pagotto, secretária executiva da Concertação; Vanda Witoto, liderança indígena e profissional de saúde; e Denis Minev, CEO do Grupo Bemol, sediado em Manaus. Quem conduziu a conversa foi a jornalista Beatriz Bulla, explorando os elementos da agenda integrada para a região, quais os avanços obtidos até o momento, e como superar as falsas dicotomias entre desenvolvimento socioeconômico e conservação ambiental.
Ao serem provocados sobre qual mensagem interessa ao Brasil e à Amazônia brasileira ver na declaração final da Cúpula, os convidados mostraram suas diferentes visões, complementares entre si. Ikeda enfatizou a importância da cooperação internacional, enquanto Witoto chamou atenção para o resguardo do território e a segurança das pessoas que vivem nas Terras Indígenas, em especial na conflituosa região transfronteiriça onde vive. Já Minev ressaltou o papel da Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) para que a Amazônia possa alçar outro nível de prosperidade socioeconômica, e, Pagotto salientou o necessário desenvolvimento de alternativas econômicas, desde as tradicionais até as mais inovadoras, tendo como centralidade o bem-estar das pessoas que lá vivem.
Pensar em uma agenda verdadeiramente integrada para o desenvolvimento da região, segundo Pagotto, começa por reforçar o pilar ambiental de comando e controle, especialmente o combate ao desmatamento e à degradação florestal, e o avanço em monitoramento – mas não se esgota aí. É preciso que essas ações sejam acopladas ao desenvolvimento das mais diversas alternativas que a bioeconomia oferece nas diferentes Amazônias, desde a florestal, na parte conservada, até os centros urbanos, passando por áreas de transição e aquelas já convertidas pela ação antrópica.
“Fundamental esse olhar das diferentes Amazônias, para pensar em estratégias locais diferenciadas nesse território que representa metade do País” – Marcia Soares, do Fundo Vale
A compreensão de que a Amazônia não é homogênea e, portanto, exige uma visão integradora de sua complexidade, já havia partido da geógrafa Bertha Becker [1930-2013], inspirando as atuais iniciativas. O projeto Amazônia 2030, por exemplo, considera cinco Amazônias distintas, enquanto a Concertação fala em quatro. “Mas o fato é que temos de pensar em alternativas econômicas, das tradicionais até as mais recentes, como a da descarbonização, aquelas voltadas à inovação – a chamada Amazônia 4.0 – capazes de fazer o diálogo entre o presente, o registro passado e o futuro que a gente quer”.
“A Concertação tem promovido reflexões sobre bioeconomia, cultura e clima, resumindo o tripé dessa agenda integrada”, explica a secretária executiva. Por cultura, para além da arte e do entretenimento, entende-se os modos de fazer, de viver e de produzir, elementos que são capazes de criar laços entre os países no contexto pan-amazônico.
A agenda integrada busca, portanto, uma visão de prosperidade, de melhoria de vida das pessoas, de conservação ambiental e uso sustentável de recursos naturais. “Como fazer isso junto é uma mensagem importante não só para a Cúpula, como para essa rota de eventos políticos importantes que teremos pela frente, como o G20 e a COP 30”, diz Pagotto.
Na esfera internacional, espera-se do Brasil um protagonismo no combate à mudança do clima – o que faz da Amazônia uma agenda tão fundamental –, além de ações inovadoras em transição energética e no mercado de carbono.
“Temos o potencial de pautar o mundo e fazê-lo nos seguir, neste novo modelo de negócio sustentável de fato” – Joanna Martins, empresária na Manioca
Aumentar a ambição
Mas, na visão de Minev, o Brasil ainda mostra baixa ambição no que diz respeito à Amazônia. “Reduzir o desmatamento não é uma grande ambição. Ambição é imaginar o que o futuro pode trazer. O empresário lembra que, no passado, o Brasil já teve ambição quando pensou, por exemplo no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), fazendo surgir a Embraer e toda uma indústria aeroespacial. Depois, com o surgimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o País se tornou uma potência agrícola – com todas as implicações que isso gerou. “Hoje, quais serviços vamos prestar ao mundo enquanto nós também nos beneficiamos?”, questiona.
Ele mesmo traz a resposta: é preciso pactuar uma visão de prosperidade. O entendimento sobre o que é prosperidade varia a depender do ponto de vista de povos indígenas, populações urbanas e agricultores, mas ele acredita em pontos de consenso. Um deles é o tema da CT&I, a fim de se descobrir mais sobre a Amazônia e, nesse processo, permitir que suas populações avancem em termos de conhecimento. “Já começam a surgir casos de doutoras indígenas, mas são exemplos isolados. Deveria haver centenas, milhares delas e, aí sim, teríamos uma sociedade transformada”, diz.
A outra frente de consenso, a seu ver, é a recuperação de terras degradadas e de baixa produtividade, para que voltem a ser florestas ou se tornem Sistemas Agroflorestais com alta produtividade. “Temos 70 milhões de hectares de terra mal utilizados, e essa [transformação] é a maior oportunidade da sociedade brasileira, com impactos ambientais, sociais e econômicos positivos.”
“A janela de oportunidades é agora. Investimentos que se movem rapidamente e que querem vir para a Amazônia não devem ser perdidos. O valor já é percebido, há de se ter pressa” – Horácio Lafer Piva, empresário e ex-presidente da Fiesp
Entretanto, Minev considera tímido o aporte do governo em iniciativas verdadeiramente transformadoras. Ele dá como exemplo a alocação de orçamento de R$12 milhões por ano para o Centro de Biotecnologia da Amazônia. “Isso não é dinheiro para construir uma transformação na região”, critica. A título de comparação, o governo destinou R$ 1,5 bilhão para a indústria automobilística retomar o carro popular e produção de ônibus e caminhões, um programa amparado em combustíveis fósseis, como a gasolina e o diesel. “O Brasil tem um belo discurso [sobre o desenvolvimento sustentável], mas as ações precisam estar casadas com esse discurso”, diz.
“Vamos avançar com a ideia do Instituto de Tecnologias da Amazônia-AmIT, Pan-Amazônico e padrão MIT” – Carlos Nobre, cientista na Academia Brasileira de Ciências
Ikeda, do Ministério das Relações Exteriores, reafirma o compromisso deste novo governo com desafios comuns, como o combate a desmatamento, degradação e crimes ambientais, e a necessidade de proteção da vida, em todas as suas formas. “Por isso que esta Cúpula está sendo realizada. Não por outro motivo, o governo revitalizou o PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], e a metade dos primeiros atos legislativos que assinou ao assumir tem a ver com proteção ambiental”, diz. “Este governo não vê a proteção ambiental como algo isolado, e sim no contexto do desenvolvimento sustentável, por isso está criando e implementando políticas nesse sentido.”
Segundo ela, a declaração da Cúpula dará muita atenção a temas como CT&I, educação e a união entre universidades e instituições de ensino, com reconhecimento dos saberes tradicionais dos povos indígenas. “Tudo isso está no radar. Estamos em uma grande concertação interna no Brasil e com os outros países para chegar nesses resultados”, garante.
“Fundamental retomar e fortalecer a cooperação entre universidades e centros de pesquisa pan-amazônicos, evitando uma posição hierárquica brasileira sobre os demais países” – Roberto Porro, pesquisador na Embrapa
Segurança em primeiro lugar
Witoto, mulher indígena que convive diariamente com a violência e insegurança em seu território, localizado na fronteira entre Brasil, Peru, Colômbia, defende como centralidade do debate na Cúpula a proteção dos povos indígenas. Para ela, a Cúpula precisa primeiramente pensar em dar garantia de vida às pessoas que, de forma milenar, ancestral e espiritual, protegem as florestas, a terra, os rios e a sociobiodiversidade. Ela advoga uma política de Estado que avance efetivamente no resguardo e proteção da vida das pessoas indígenas, ribeirinhas e tradicionais, como condição para se avançar em outros temas, como o acesso à educação, saúde e CT&I.
“É necessário construir políticas transfronteiriças para diminuir conflitos e resguardar os territórios e as pessoas que ali vivem. A Cúpula surge como oportunidade de construir novos rumos para quem vive na Amazônia e para os países que têm a Floresta Amazônica em seus territórios”, diz.
Ela entende que hoje já se reconhece a contribuição dos Territórios Indígenas no enfrentamento da mudança climática, mas é necessário ir além do reconhecimento. Embora prestem serviços ambientais valiosíssimos, ao atuarem desde sempre como guardiãs das florestas, protegendo o clima, a água e a biodiversidade, essas populações ainda estão alijadas da prosperidade. “A dicotomia entre a riqueza da Amazônia e a pobreza em que essas pessoas estão imersas é um dos grandes problemas a resolver”, aponta a líder indígena.
Força política
Ao repetir a frase “Nada sobre nós sem nós” – que exalta o protagonismo dos povos indígenas e populações tradicionais na construção do desenvolvimento amazônico, em oposição a soluções imposta de fora–, Maria Angélica Ikeda conclama a sociedade civil a se engajar nos preparativos para a Cúpula. Nos dias 5, 6 e 7 de agosto, que antecedem a agenda oficial, está prevista a realização dos Diálogos Amazônicos. “Resgatamos um modelo de ponte entre sociedade civil e governo, que foi usado na Rio+20 em 2012. Nos dias que precederam aquela cúpula, os porta-vozes dos diálogos sobre desenvolvimento sustentável fizeram relatórios com as conclusões do que foi debatido e os encaminharam para os chefes de Estado”, diz ela, esperando que esse formato dê resultados também na Cúpula da Amazônia.
O ativismo da sociedade civil organizada ganha importância na medida em que persistem desafios na representação de lideranças indígenas na política – ainda que avanços importantes tenham sido obtidos desde 2019, com a primeira eleição de uma mulher indígena, a deputada federal Joênia Wapichana, seguida por Célia Xakriabá, e a criação do primeiro ministério indígena da História do País em 2023, com Sonia Guajajara à frente. Mas a tese do Marco Temporal, defendida pela maioria dos deputados federais, acaba por fragilizar o discurso brasileiro em fóruns internacionais. Como cobrar respeito à causa indígena dos demais países se internamente há tanto dissenso?
“A Amazônia elegeu a maior bancada de extrema direita, que é contra os direitos dos povos e preservação da floresta. Quando se enfraquecem as políticas, com a defesa do Marco Temporal, o País perde a credibilidade de pautar outros países sobre estratégias de como fazer uma fronteira segura no Brasil”, diz Vanda Witoto. Ela frisa que essa é uma questão de vida ou morte, ao falar de uma região do Amazonas em que não só foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, mas onde diariamente jovens anônimos são mortos ou capturados pelas facções do crime organizado, e crianças são raptadas.
“Necessitamos da integração das autoridades de segurança pública dos países amazônicos na busca de ações coordenadas para combate aos ilícitos ambientais” – Mauro Luis Ruffino, da OCTA
No entendimento de Minev, a Amazônia vive um momento extraordinário de polarização política, até mais que no restante do País, o que ele credita, em parte, à falta de uma visão de futuro. “O que queremos para a Amazônia? Quando ninguém tem uma visão, cada um puxa para o seu lado e seja lá o que Deus quiser”.
Segundo o empresário, a Amazônia está presa ainda a uma visão desenvolvimentista e de defesa da soberania, fomentada no período da ditadura militar, que incluiu abrir estradas, hidrelétricas e grandes mineradoras, ocupar territórios e criar a Zona Franca de Manaus. “Talvez essa fosse uma visão adequada para os anos 1970, mas não é a visão adequada para o século 21”, diz. “Entretanto, nenhum governo seguinte construiu a visão do que é prosperidade na Amazônia, que precisa levar em conta os direitos indígenas e como vamos construir uma sociedade com um grau de riqueza mais elevado do que temos hoje, que são baixíssimos. A expectativa de vida na região é similar à da África subsaariana”.
Conjunto de soluções
Diante desse quadro, não há uma solução única para uma região tão diversa e com desafios profundos, como frisa Ikeda, do Itamaraty. Mas ela vê caminhos possíveis por meio da cooperação internacional entre países amazônicos e advinda também de outros países que podem ser importantes na provisão de recursos financeiros e tecnológicos.
A solução, segundo Witoto, partirá das pessoas, por isso a líder indígena defende trazê-las para o centro desse debate. “Acredito no poder ancestral e no diálogo que se complementam para a garantia da vida não só dos humanos como dos não-humanos.”
Já Minev chama atenção para a importância da economia nessa equação. Ele observa que a vasta economia da Amazônia vive de forma dependente do governo federal, por meio de mecanismos de transferência de renda como o Fundo de Participação dos Municípios, do Bolsa Família e da aposentadoria rural. “Essa não é a Amazônia desejável, mas é a que temos. Não existe uma base econômica próspera, por isso a urgência de encontrar novas formas de fazer economia na região”, diz.
“Creio que precisamos colocar a Amazônia de modo sério e na direção correta, nos orçamentos público federal e privados do Brasil” – Paulo Bellotti, fundador da MOV Investimentos
Nesse sentido, Pagotto, da Concertação, julga importante avançar na agregação de valor e na inovação, conectando o conhecimento das Amazônias, a cultura produtiva local e o mercado, para que novas economias possam se tornar vantajosas já no curto prazo. E acrescenta: “Se quisermos colocar a Amazônia nos nossos corações e no centro do nosso debate enquanto País, será preciso ir até lá, conversar com as pessoas locais e também reunir quem está interessado em debater o futuro da região. Esse é o espírito da Concertação: colocar todas as pessoas que se interessam e se importam com a Amazônia juntas para pensar em formas para o futuro”.