O terceiro episódio da série Notas Amazônicas põe a infância no centro do debate e mostra quão desafiador é traçar políticas que atendam as especificidades na região. Todas as crianças têm em comum, entretanto, a herança de uma crise ambiental para a qual não contribuíram
Por Magali Cabral
O que as crianças das famílias ribeirinhas deslocadas das proximidades do Rio Xingu para dar lugar à Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA) têm em comum com as crianças do povo Wapichana, que seguem a vida em sua aldeia do nordeste de Roraima? Quase nada, exceto por serem todas elas “filhas” da Floresta Amazônica e estarem herdando uma crise ambiental para a qual não contribuíram.
O webinar Infâncias nas Amazônias, promovido pela rede Uma Concertação pela Amazônia e Página22, no dia 27 de setembro, evidencia a complexidade que é planejar, formular e gerir políticas públicas para atender populações infantis com características distintas umas das outras. O evento, mediado pelas secretárias executivas da Concertação, Fernanda Rennó e Lívia Pagotto, contou com o apoio do Unicef e do Instituto Alana.
Em sua apresentação, Carolina Velho, amiga da Rede Nacional da Primeira Infância e especialista em Educação Infantil para o Unicef no Brasil, contabiliza, com base em dados do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, 28 diferentes infâncias na Amazônia:
“Infância indígena, quilombola, cigana, pescadora artesanal, extrativista, caiçara, azeiteira, veredeira, apanhadora de flores sempre-vivas, apanhadora de coco babaçu, pantaneira, ribeirinha, cabocla, raizeira, cipozeira, entre outras”, enumera Velho.
A também painelista Léia do Vale, coordenadora para Assuntos Indígenas do Unicef no Brasil, lembra, por sua vez, que somente a categoria “infância indígena”, citada pela colega do Unicef, engloba mais de 300 etnias em território brasileiro. “Diferentes infâncias estão presentes nessas centenas de povos indígenas e temos que respeitar suas especificidades e suas formas próprias de organização social quando traçamos políticas públicas”, observa.
Por exemplo, o povo de Léia do Vale, os Wapichana, tem as suas características próprias: “Nós, por exemplo, somos mais alma do que corpo”. Ela explica que a alma de uma criança wapichana começa a se formar quando inspira o ar pela primeira vez, e só se completa quando tem o domínio da fala. Até então, os pequenos são chamados de madoronan, que no idioma pertencente à família Aruak, significa sem alma ou sem discernimento. “Madoronan ainda não tem o juízo, motivo para que todas as suas tolices e teimosias sejam perdoadas”.
Do Vale lembra também que em algumas etnias as crianças recebem determinado nome na infância, que é substituído por outro quando chegam a uma fase mais adulta. “Toda essa diversidade causa muita confusão na execução de políticas públicas. Tente imaginar famílias que têm de trocar de nome lidando com registros no CadÚnico (Cadastro Único, sistema criado pelo governo federal para reunir dados da população de baixa renda do País)”.
História de uma ruptura
Daniela Silva é idealizadora do Projeto Aldeias, uma rede de apoio às infâncias e juventudes da Amazônia. O relato dela reforça a complexidade no desenho de políticas públicas para a infância na região, particularmente em Altamira (PA). A condição das crianças e adolescentes das famílias deslocadas por causa de Belo Monte é também incomparável. Elas vivem hoje em um conjunto habitacional a 5 km do Rio Xingu, formado por pequenas casas idênticas umas às outras, sem espaço para nem sequer uma árvore ou uma pequena horta. Essa comunidade experimenta o que a educadora chama de crise de despertencimento.
Segundo ela, antes de Belo Monte, Altamira era uma cidade-floresta ribeirinha, cercada de aldeias indígenas citadinas e de famílias de pescadores cujas casas tinham quintais produtivos e acesso ao Rio Xingu ou aos igarapés.
“Eu mesma cresci brincando nos igarapés de Altamira”, conta Silva. “Havia uma rede de solidariedade e apoio formada por essas comunidades no entorno da cidade. Uns ajudavam os outros, dividindo o resultado das pescarias, da colheita na roça. Ninguém passava fome”.
Com a chegada da hidrelétrica e a transferência das famílias para o conjunto habitacional erguido pela Norte Energia (consórcio responsável pela construção e operação da Usina Belo Monte), essa rede solidária se desfez. Surgiu então uma geração de meninos e meninas não pertencentes a lugar nenhum. A idealizadora do Projeto Alanas relata também que vários deles nunca viram o Rio Xingu, enquanto outros nem sabem o nome do rio. “O nosso trabalho no Aldeias é também refazer essa conexão”, diz.
Um dos grandes impactos negativos causados pelo modo como se deu a instalação de Belo Monte – sem a preocupação de levar um projeto de desenvolvimento local prévio que preparasse a população para lidar com as consequências socioambientais da obra – foi identificada em 2017, quando Altamira despontou como a cidade mais violenta do País. Em seguida, os pouco mais de 100 mil altamirenses testemunharam o crescimento abrupto de um novo e indesejado índice: o de suicídio de adolescentes e jovens. Nos quatro primeiros meses de 2020, o número de pessoas que tiraram a própria vida em Altamira, a maioria adolescentes entre 11 e 19 anos, beirou o triplo da média anual brasileira, conforme dados da Secretaria de Segurança do Pará.
Daniela Silva ressalta que, quando se anuncia a chegada de um grande empreendimento, as pessoas são levadas a crer em algo que pode melhorar as suas vidas e não empobrecê-las. O mais grave, na opinião da educadora, é que a pobreza instalada de Altamira não é apenas material. “É também uma pobreza da alma, bem mais difícil de resolver”. Ela explica que o projeto Aldeias é um chamado para que o Estado entenda o que de fato aconteceu em Altamira em toda a sua complexidade e, a partir disso, elabore políticas que possam melhorar a condição de vida das crianças, adolescentes e jovens.
Por sua origem indígena, Watatakalu Yawalapiti, coordenadora do Movimento Mulheres do Território Indígena do Xingu (Atix-Mulher), em Mato Grosso, é uma autoridade nata em vínculos com a natureza. Na sua opinião, é sem tamanho a violência praticada ao se tirar o direito de uma criança amazônida acessar um rio ou um igarapé.
“Para nós, não existe infância sem rio, não existe vida sem rio”, diz Yawalapiti. Em sua participação no webinar, ela conta que as crianças em sua aldeia aprendem desde o nascimento que seu primeiro desafio na vida será o de entender-se com o rio. Com 3 anos de idade, no máximo, os pequenos já saberão nadar e criarão ali um vínculo de toda uma vida, o que inclui o lazer, a subsistência, a cultura e a espiritualidade.
O depoimento de Watatakalu e os dados da SSP-PA ajudam a dimensionar o trauma que uma ruptura de povos e comunidades tradicionais com o seu território pode causar. A crise de despertencimento da população de Altamira guarda uma conexão com a teoria do Transtorno de Déficit de Natureza, desenvolvida por Richard Louv, jornalista americano e estudioso da infância.
Paula Mendonça, coordenadora das áreas de cidade e educação do Programa Criança e Natureza do Instituto Alana, em seu painel no webinar, explica a tese de Louv: “Um conjunto sistêmico de aspectos vem afastando as crianças da natureza e elas perdem a oportunidade de criar vínculos. Com isso, não criam o afeto necessário para que depois possam amar e respeitar a natureza”. Segundo ela, atualmente cerca de 80% da população vive em cidades hostis às crianças, em parte pela perda de contato com áreas verdes.
Riscos para a infância
Paula Mendonça reuniu e apresentou uma série de dados pinçados dos estudos recentes para retratar a infância no Brasil e na Amazônia. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) de 2021 aponta os riscos climáticos para as crianças. Segundo o documento, quase metade delas está exposta a pelo menos um risco climático e ambiental, como inundações, escassez de água, ondas de calor e poluição. O documento classifica a crise climática como uma crise dos direitos das crianças.
“O principal questionamento do Pnuma”, afirma Mendonça, “é o quanto a Terra está perdendo a capacidade de manter o bem-viver.”
O relatório Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil, do Unicef, reforça essa questão climática. Mostra que quase 60% das crianças estão sob risco de sofrer com alguma das consequências dos impactos da mudança climática: alterações nas temperaturas, nos padrões de seca e de chuva, e na frequência e intensidade das queimadas. Crianças e adolescentes indígenas e quilombolas e povos tradicionais estão entre os grupos mais expostos aos riscos diretos e indiretos, pois dependem totalmente dos seus territórios para sobrevivência e garantia da sua dignidade.
Já o estudo Mudança Climática 2022 – Impacto, Adaptação e Vulnerabilidade, do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), aponta os riscos que as crianças da América do Sul vêm enfrentando em um cenário de escassez hídrica, de indisponibilidade de alimentos, de danos à saúde e ao desenvolvimento integral.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que a poluição do ar está provocando a morte de 7 milhões de pessoas por ano, das quais meio milhão são crianças de até 15 anos. “A poluição é especialmente danosa na infância, porque a criança está em estágio de desenvolvimento, portanto mais vulnerável às doenças pulmonares. Na Amazônia, as queimadas de agosto a outubro são especialmente prejudiciais para as crianças”, lembra Mendonça.
A Constituição Federal do Brasil institui a proteção e o cuidado com as crianças como uma prioridade por estarem em fase peculiar de desenvolvimento. No Xingu, porém, as crianças estão submetidas a uma série de impactos por diferentes ordens: “obras de infraestrutura, uso de agrotóxicos, mineração e garimpo, desmatamento e queimadas, confinamento territorial, insegurança alimentar e falta de acesso aos serviços de saúde”, enumera a coordenadora do Instituto Alana.
Ela cita ainda um estudo da Fiocruz segundo o qual seis entre cada 10 pessoas na Terra Indígena Munduruku, em Jacareacanga, na margem direita do Rio Tapajós, no sudoeste do Pará, estão com níveis de mercúrio acima dos limites seguros estabelecidos pela OMS. Paula Mendonça finaliza destacando a crise humanitária que o povo Yanomami vem passando, que impacta gravemente as crianças, com exploração sexual, casamentos forçados, impactos na economia de subsistência e desnutrição. “Como alerta o Pnuma, é urgente que a atual geração faça as pazes com a natureza”, afirma.
CEP da pobreza
“A pobreza multidimensional infelizmente tem cor, raça e CEP como marcadores. Sabemos que ela impacta mais fortemente pessoas negras e indígenas, nas regiões Norte e Nordeste”, afirma Carolina Velho ao apresentar o estudo As Múltiplas Dimensões da Pobreza, do Unicef.
O conceito de “pobreza multidimensional”, desenvolvido pelo Unicef, mapeia sete dimensões de pobreza relacionadas com a dificuldade de acesso a educação, água, alimentação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, informação e renda. Se uma entre cada três crianças brasileiras vive em situação de pobreza ou de extrema pobreza, como aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, por quantas privações de direitos ela estará passando? Carolina Velho explica que pobreza multidimensional significa crianças impactadas por mais de uma privação do direito.
Distinguir essas privações e localizá-las pode ajudar a endereçar políticas públicas com mais assertividade. A Pnad traz informações difíceis de “digerir”, mas importantes para fazer esse mapeamento.
Por exemplo, segundo a Pnad, 75% das crianças de zero a três anos em situação de pobreza não frequentam creche, nem estão matriculadas na educação infantil; oito em cada 10 crianças Yanomami menores de cinco anos têm desnutrição crônica; crianças negras e indígenas são as mais atingidas por exclusão escolar desde a pré-escola. “Como olhar para a gravidade desse cenário e não pensar na urgência em priorizar as políticas públicas para infância, mesmo em um contexto de crise econômica?”, indaga Carolina Velho.
Nesse sentido, Léia do Vale reitera a importância de não se traçar políticas universais, como se todas as crianças estivessem passando pelas mesmas privações. “Para alcançar as especificidades, precisamos fazer um movimento de escuta, e isso significa ouvir também a criança e compreender o seu mundo social. Essas diferenças nos obrigam, enquanto gestores e servidores que buscam melhor o contexto do bem-viver das crianças e jovens, a contribuir na elaboração das políticas públicas”, diz.
Segundo ela, o ponto de partida é o aprimoramento da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, e outros instrumentos legais que resguardam os direitos dos povos indígenas.
A proposta de Do Vale, de abrir um canal de escuta das crianças para compreender suas reais necessidades, dialoga com o conceito filosófico e espiritual da cosmovisão, que é uma maneira de perceber o mundo como se o enxergássemos pela primeira vez. A tese, introduzida por Carolina Velho, pertence a Renato Nogueira, professor de filosofia e pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (Leafro), da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para ele, pessoas jovens e adultas são capazes de experimentar um estado de infância para encontrar o sentido da vida. “O professor Renato Nogueira crê que só mesmo no reencontro com a nossa infância, recuperando a atividade brincante, potente e investigadora, conseguiremos reinventar o mundo”, diz.