Modelo de investimento que casa com os desafios sociais e ambientais da Amazônia, o financiamento híbrido ganha força na região. O assunto foi debatido em mais um webinar promovido por Uma Concertação pela Amazônia e Página22
Por Magali Cabral
O financiamento híbrido, também conhecido pelo termo em inglês blended finance começa a ganhar robustez no Brasil, em particular na Amazônia. O instrumento atrai capital filantrópico e comercial para alavancarem juntos projetos de impacto socioambiental. Mas, nesse processo, uma série de barreiras, geralmente de natureza jurídica, regulatória ou de lacunas na capacitação técnica, ainda se interpõe entre os recursos e os empreendimentos que poderiam acessá-los.
O Instituto Amazônia+21, uma iniciativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Ação Pró-Amazônia, pode ter encontrado uma solução para reduzir parte desses desafios: a estruturação de uma facility de investimentos para atuar exclusivamente na Amazônia Legal. Trata-se de uma plataforma tecnológica que mobilizará os recursos mistos e os direcionará à promoção de negócios mais sustentáveis em vários segmentos produtivos da região.
“A contribuição dessa facility será a de destravar mecanismos financeiros, garantindo que os recursos ‘pousem’ no território para ações concretas de estruturação de negócios sustentáveis. Seu grande diferencial será a nossa presença no território, conversando com todos os stakeholders, desde o estudante de uma região carente até o grande empresário. É essa conversa que gera engajamento e identifica oportunidades e desafios”, afirma o diretor executivo do Instituto Amazônia+21, Marcelo Thomé.
Ele foi um dos participantes do webinar Investimento para as Amazônias: financiamento híbrido, realizado em 21 de novembro pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia e Página22, para debater o uso do investimento híbrido como instrumento capaz de despertar potencialidades econômicas da Amazônia. O evento contou com apoio do Instituto Amazônia+21 e foi mediado pelas secretárias executivas da Concertação, Fernanda Rennó e Lívia Pagotto.
Para o especialista em sustentabilidade do Amazônia+21, Fernando Penedo, presente ao evento, não é raro encontrar pessoas na região com um ótimo negócio ou projeto, mas que não conseguem acessar recursos mesmo eles estando disponíveis. A facility, que promete atrair esse público, começou a ser estruturada em novembro de 2022 e tem lançamento previsto para março de 2024.
A iniciativa deverá operar quatro plataformas simultaneamente. Segundo Penedo, a primeira se destinará ao engajamento multistakeholder, com o propósito de trazer atores com uma função importante no destrave de capital. A segunda plataforma será voltada à assistência técnica.
“A falta de capacitação técnica na região é um grande gargalo e a ideia aqui é criar uma mecânica para aumentar a originação de projetos financiáveis”, diz Penedo.
A terceira será uma plataforma de conhecimento. “Há muitos estudos na Amazônia, mas também muitos conhecimentos a serem estudados para diminuir os riscos de operação não financeiros”, explica. E, por fim, a quarta plataforma, dedicada aos investimentos, acomodará os diferentes recursos destinados ao blended finance até que cumpram o destino de irrigar bons negócios na Amazônia.
De acordo com Fernando Penedo, a facility trará segurança jurídica para o conjunto das operações. “Haverá uma estabilidade institucional, não só por estar dentro do sistema CNI, mas também porque a estrutura de governança será bastante robusta”, afirma. Além disso, ele diz que será possível operar oferta e demanda ao mesmo tempo, isto é, enquanto se originam ideias e negócios, a facility estará criando estrutura jurídica, atraindo recurso filantrópico, desbloqueando capital, fazendo atração de recursos, oferecendo assistência técnica e realizando doações.
Outro componente importante que a iniciativa apresenta é o da mitigação de risco. Para Penedo, por mais que haja muito apetite por capital comercial para investir em bons negócios, a Amazônia ainda é um território de risco para o pragmatismo do mercado de capitais. “A facility ajudará a deixar a conjuntura desse território com uma menor percepção de risco material e não material, ao trazer conhecimento, mecanismo de compliance [garante que a operação está em conformidade com as normas e as leis], auditoria, investimento em originação de negócios, fortalecimento de capacidade. Isso significa fazer o dinheiro filantrópico destravar a chegada de outros capitais no território”, prevê ele.
O papel do financiamento híbrido
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as transações de blended finance possuem três características principais: impacto (social, ambiental e desenvolvimento econômico sustentável), retorno financeiro para os investidores (em conformidade com as expectativas de mercado) e alavancagem (uso de capital público ou filantrópico para atrair capital privado). Diz a OCDE que, para identificar uma operação de blended finance, basta perguntar se determinado negócio se viabilizaria sem capital catalítico (investimento filantrópico para atrair capital privado). Se a resposta for ‘sim’, não é blended finance. Essa explicação pode ser encontrada neste paper do BNDES sobre o tema.
A Sitawi, uma organização não governamental cuja missão é mobilizar capital para projetos com impacto positivo ambiental ou social, trabalha com financiamento híbrido, e escolheu priorizar projetos com “impacto em primeiro lugar” ou, em inglês, impact first. O desafio adicional no caso é ter de trabalhar com um retorno financeiro menor do que os investimentos tradicionais de mercado, conforme explica Bruno Girardi, diretor de Investimento de Impacto da Sitawi, outro painelista do webinar.
Para Girardi, não resta dúvida de que o investimento híbrido é uma “super solução” para alavancar projetos de impacto. Na última rodada de investimento promovida pela Sitawi, ele conta que participaram cinco organizações da Amazônia, todas com histórico de dificuldade de acessar capital.
Foi usado o modelo de matchfunding (financiamento coletivo no estilo do crowdfunding, mas com apoio de empresas ou institutos). Para cada real colocado por investidores de varejo que acessaram a plataforma, com taxas de retorno em condições de mercado, a Sitawi investiu, por meio de seus parceiros, a mesma quantia a uma taxa de 0% – capital retornável, mas sem juros. “De forma muito simplificada, os investidores receberam uma taxa de retorno de 14% ao ano, enquanto os empreendedores pagaram apenas entre 6% e 7% ao ano”, explica Girardi.
Para chegar a essa interseção – ou trade off no jargão financeiro –, em que é preciso fazer uma escolha partindo do nível de impacto que se quer gerar, o investimento híbrido é fundamental. “Muitas vezes, é a primeira vez que essas organizações acessam capital. O nosso sonho é que daqui a mais duas ou três rodadas de investimento elas se tornem “bancarizáveis”, isto é, adquiram robustez e consigam acessar o mercado tradicional”.
“Os últimos indicadores mostram que 20% das organizações contempladas com investimentos de blended finance já são sustentáveis economicamente”, diz Girardi.
Ele cita ainda exemplos de como os recursos de financiamento híbrido costumam ser aplicados na região amazônica. “Normalmente os recursos vão para formação de capital de giro, compra de equipamentos, ou de caminhão. Podem também ser usados para uma cooperativa adiantar o pagamento da safra para os seus cooperados e, desse modo, evitar a ação de atravessadores”. Girardi acredita que, grosso modo, esse modelo de financiamento ajude a manter pequenos produtores na terra, o que, indiretamente, significa manter a floresta em pé.
A Sitawi faz cerca de 12 empréstimos por ano, com o diferencial de prover também assistência técnica como forma de reduzir o risco do capital. Nas chamadas, a organização candidata ao financiamento é avaliada sob quatro óticas: “capacidade de entrega de quem está à frente do projeto, fibra ética da equipe, capacidade de pagar o financiamento, e que a organização promova um impacto real, profundo e mensurável [os empreendedores recebem capacitação para mensurar impactos]”, revela Girardi.
Trabalho de escuta
O BNDES começou a operar com blended finance recentemente. O gerente no Departamento de Meio Ambiente,Julio Salarini Guiomar, informa no webinar que o banco realizou a primeira chamada pública nesse modelo no ano passado, tendo selecionado 11 projetos.
O edital apresentou 3 vertentes de negócios: bioeconomia florestal, desenvolvimento urbano e economia circular, totalizando R$ 246 milhões em recursos demandados ao banco. A chamada atraiu mais de 50 propostas, sendo a bioeconomia florestal a vertente mais representada, com 26 pedidos. A necessidade de investimento em assistência técnica apareceu em quase todas as propostas.
Nessa primeira experiência com financiamento híbrido, em que se procurou fazer uma escuta das demandas desse ecossistema, Guiomar afirma que o banco percebeu o grande gargalo de recursos para assistência técnica na região. “Um gargalo não só de recursos financeiros, mas uma dificuldade também de formação”, avalia. Ele acredita, no entanto, que a iniciativa de itinerários formativos do novo Ensino Médio – na qual o estudante poderá optar por uma formação profissional e técnica dentro da carga horária regular – ajudará a formar profissionais qualificados para prestar essa assistência técnica tão necessária, sobretudo na área de bioeconomia.
Entre os demais desafios identificados a partir do edital, o gerente do BNDES inclui a dificuldade de lidar com a complexidade dos instrumentos financeiros híbridos e de mercado de capitais; e a dificuldade também de o investimento híbrido concorrer, no campo da agricultura familiar, com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Mesmo com toda a elaboração do investimento híbrido, a taxa final para o agricultor ainda é maior do que a taxa final se ele conseguir acessar o Pronaf. “Evidentemente oferecemos taxa muito melhor do que o sistema bancário tradicional, mas o ideal é que o agricultor familiar consiga acessar os recursos do crédito rural oficial, muito incentivados e atrativos”, sugere.
Mensurar é preciso
Por que é tão importante trazer a mensuração de impacto para essa pauta? Para Bruno Girardi é a forma para se chegar ao real valor das mercadorias que embutem um impacto socioambiental positivo. Segundo ele, o preço do produto final na prateleira costuma ficar aquém do valor real para a sociedade. “Quando se faz um manejo sustentável da floresta, respeitando o ciclo de produção da cadeia, isso tem um valor que vai além do preço de prateleira. Como endereçar isso?”, pergunta.
Girardi lembra que a Sitawi está desenvolvendo um estudo sobre a cadeia do pirarucu com essa lógica. “Esperamos que esse trabalho venha a ser usado como uma ferramenta para injetar dinheiro público para remunerar as atividades que consideramos social e ambientalmente desejáveis”, afirma.
Durante os debates no webinar, Julio Guiomar alerta para o risco de a mensuração se tornar um fim em si mesma. “Queremos causar impacto, mudar a vida das pessoas, então temos que pensar em modelos de governança e de mensuração factíveis ao público com o qual estamos lidando”, afirma.
Muitas das dificuldades de implementação de projetos das chamadas públicas, na sua opinião, devem-se ao fato de se colocar nos editais o estado da arte da mensuração de impacto e da governança. “O mundo real está muito distante desse estado da arte”, ressalta.
O que falta para ganhar escala
Em 2021, a Sitawi fez uma rodada de investimento usando uma taxa anual de apenas 6,5% e não foi preciso fazer blended finance, uma vez que a taxa de juros básica na ocasião estava muito baixa – começou aquele ano em 1,9%. Então, no caso de a taxa Selic voltar a cair, o esse modelo perderá sua função? “Talvez ela seja importante menos para calibrar o retorno do investimento e mais para reduzir o risco”, analisa Girardi. Ele defende a criação de fundos garantidores como forma de aumentar a base de investidores.
Para Guiomar, do BNDES, na medida em que a taxa Selic cair, será importante de fato migrar para instrumentos de ajuste do risco, como os fundos garantidores. Adicionalmente, outro desafio para dar escala ao financiamento híbrido é adequar a regulação e os normativos do instrumento. Ele dá um exemplo: “Mesmo quando o BNDES coloca recursos não reembolsáveis, que é dado como fundo perdido na origem, a regulação do Bacen [Banco Central] exige que o banco faça uma reserva de 12,5 vezes o capital colocado. Isso não faz o menor sentido”, critica. Segundo ele, para esses instrumentos escalarem e se desenvolverem, será fundamental abrir uma discussão sobre normativos mais adequados com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e com o Banco Central.
Quando se olha para o tamanho da Amazônia e seus desafios, vê-se logo que o blended finance, apesar de seu potencial de dar uma contribuição importante para a região, não é uma panaceia. “Ainda há muito conhecimento para ser produzido, muito fortalecimento de capacidade local para ser desenvolvido, muita política pública para ser criada, muito advocacy para ser feito e muitos desafios sociais para se combater até a Amazônia chegar de fato ao século 21”, enumera Fernando Penedo.
E sobre o papel da sociedade civil dentro desse contexto, Bruno Girardi faz uma analogia com o jogo de quebra-cabeça: “Cada um de nós tem uma peça na mão e, como já disse Chico Science, ‘um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar’”.
Assista ao evento na íntegra no YouTube da Página22 e inscreva-se no canal.