A fim de entender os pontos em comum entre Mata Atlântica e Amazônia e como estratégias de conservação e uso desses territórios podem ser compartilhados para a melhor governança ambiental no Brasil, Uma Concertação pela Amazônia, Página22 e SOS Mata Atlântica promovem novo webinário
Por Magali Cabral
Houve um período na Pré-História em que o clima muito quente e úmido permitiu que a Mata Atlântica se expandisse tanto a ponto de se juntar à Amazônia, formando uma única e imensa floresta tropical. Indícios de parentesco entre várias espécies de plantas e de animais que ocorrem em ambos os biomas foram pesquisados por cientistas de várias partes do mundo, no projeto Biota da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Biota-Fapesp), e ajudaram a fortalecer essa tese. Hoje, separadas pelo Cerrado e pela Caatinga, surge a proposta de construção de “pontes” que conectem novamente as duas florestas para compartilhar modelos de governança voltados à conservação como forma de reverter a trajetória de destruição que as ameaça.
Essa desejável conversa entre Amazônia e Mata Atlântica foi o tema do mais recente webinário da série Notas Amazônicas, promovido por Uma Concertação pela Amazônia e Página22, em 18 de abril. O evento, com tradução em libras, contou com apoio da Fundação SOS Mata Atlântica e mediação de Georgia Jordão, gestora de Conhecimento da Concertação. A ideia de compartilhar experiências em governança dos biomas surgiu em 2023 em Dubai, durante a Conferência do Clima, COP 28, e agora começa a ganhar contornos.
“A Mata Atlântica já ultrapassou o limiar mínimo para a manutenção da biodiversidade e hoje está em uma rota de extinção, com alguma possibilidade de recuperação por meio de restauração e desmatamento zero. A Amazônia se aproxima do seu ponto de não-retorno, a partir do qual a floresta pode entrar em rota de degradação”, argumenta o engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, sobre a relevância de se promover essa conversa entre os biomas.
Para a geógrafa Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), uma das mais importantes, se não a principal, política pública de conservação brasileira para barrar o desmatamento e, ao mesmo tempo, prover para as comunidades formas de uso mais sustentáveis de seus recursos, são as unidades de conservação (UCs). Elas foram estabelecidas no Brasil pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), em julho de 2000.
“As UCs têm sido uma barreira para o desmatamento, que em boa parte decorre de especulação para aquisição ilegal de terra. Quando o poder público cria uma Unidade de Conservação, está dizendo que aquela área será de gestão governamental. Isso acaba com as expectativas de especulação de terras”, explica a geógrafa.
Outra participante do evento, Anna Carolina Lobo, líder de Inovação e Especialista em Conservação do WWF-Brasil e membro do time global de inovação da rede WWF, faz coro com Ane Alencar e vai além. Em sua opinião, as Unidades de Conservação se revertem em tantos benefícios que representam uma das principais estratégias de proteção da biodiversidade já criadas pelo ser humano. Ela lembra que o preservacionista John Muir, um proprietário rural e escritor escocês-americano, foi o grande responsável pela criação das primeiras áreas protegidas nos Estados Unidos, ainda em 1872, que depois foram replicadas por várias partes do mundo.
A ponte
Para dar um panorama de como as Unidades de Conservação se acomodam dentro bioma que ocupa quase metade (49%) do território nacional, Ane Alencar conta que, das 2.185 unidades de conservação existentes no País, 301 estão na Amazônia, cobrindo cerca de 125 milhões de hectares, (75% de toda a área ocupada pelo total de UCs no Brasil) No território amazônico, elas representam uma fatia de 35% das terras e estão categorizadas em reservas extrativistas (Resex), florestas públicas e parques nacionais ou estaduais.
Feito o retrato, Alencar aborda a existência de uma “rede de governança invisível” nas UCs amazônicas. Segundo ela, são mais de 3 mil organizações atuando de modo concatenado com os entes dessas unidades de conservação. “O fortalecimento dessa rede de governança invisibilizada é uma grande oportunidade”, acredita a geógrafa. “Muitas delas têm gestão integrada e várias cadeias produtivas estabelecidas”.
Só isso já pavimenta um caminho para se conhecer melhor essas cadeias, com todas as suas sub diversidades, seus desafios de infraestrutura – algumas delas, por exemplo, estão a até 96 horas de deslocamento até o principal centro de mercado – e também suas oportunidades. Segundo Alencar, conhecer o tamanho da economia oriunda da sociobiodiversidade amazônica é um objetivo do Ipam. Trata-se de uma economia muitas vezes informal e invisível, mas é preciso conhecê-la para poder apoiar a criação de políticas públicas voltadas aos mini negócios e empreendedorismos e aos investimentos em infraestrutura, tecnologia e capacitação em gestão para a região.
“Estamos sempre falando que a floresta gera renda e que as comunidades conseguem tirar dela o seu sustento, mas precisamos de indicadores”, afirma ela. Para obtê-los sem precisar de um censo, o Ipam busca entender as redes de governança das UCs. “Se essas instituições se organizarem entre si, teremos como enxergar a economia da floresta. Poderemos oferecer ao ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] um panorama das cadeias produtivas no bioma, de modo que essas áreas possam ser vistas também pelo seu real valor econômico”.
Ainda para a diretora de Ciência do Ipam, outras ações fundamentais são a adoção de instrumentos como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) às comunidades que mantêm suas cadeias produtivas sem prejudicar o ecossistema; e o engajamento da sociedade para a importância das Unidades de Conservação, incentivando-as a conhecer suas belezas e os povos que lá vivem. Assim, elas serão reconhecidas pelo que são: um grande patrimônio ambiental, econômico e cultural do nosso país, e não um peso, como fazem crer alguns políticos.
Ecoturismo
Incentivar pessoas a conhecerem as Unidades de Conservação na Mata Atlântica e na Amazônia é uma atividade que Anna Lobo passou a conhecer muito bem no WWF-Brasil. Ela lidera a estratégia de valorização de áreas protegidas por meio do uso público, desenvolvendo e implementando projetos com comunidades e equipes de UCs na Amazônia, na Mata Atlântica e em ecossistemas marinhos e costeiros no Sul da Bahia.
Bacharel em Turismo, Lobo conta que, durante a pandemia, mais pessoas passaram a perceber a importância do verde para a sua saúde física e mental. A partir dessa constatação, o WWF-Brasil traçou um modelo de experiências de visitação nas áreas de conservação no Sul da Bahia, com metodologia Design Thinking, cujo pressuposto é o processo de escuta para construção conjunta de soluções com os habitantes do território.
“Os primeiros pilotos realizados no sul da Bahia foram testados, revisados e ganharam escala. Atualmente, estamos replicando a experiência na Amazônia”, diz Lobo.
No Sul da Bahia, a proposta de ecoturismo do WWF encampa três parques nacionais terrestres, três reservas extrativistas, um refúgio de vida silvestre, e o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos. O projeto selecionou uma atividade em destaque para cada área protegida. O visitante pode ter uma experiência de remada e stand up pelos manguezais de Canavieiras, fazer mergulho em Abrolhos, subir o Monte Pascoal com guias pataxós, ou fazer cicloturismo no Parque Nacional do Pau Brasil, entre outras atividades, inclusive gastronômicas.
A replicação desse modelo na Amazônia está sendo testada na Resex Tapajós-Arapiuns, no Parque Nacional da Amazônia e no Parque Nacional do Jamanxim, no Pará. São várias atividades que conectam turistas a nove comunidades por meio de trilhas, de passeios em canoas ou caiaques. Nas comunidades, há a experiência com a gastronomia local, a dança do carimbó, as atividades produtivas das comunidades, o trabalho de conservação de tartarugas e abelhas nativas, as trilhas em meio a árvores centenárias. Tudo isso gerido pelas comunidades. “A ideia é os visitantes enxergarem o valor das Unidades de Conservação para toda a sociedade”, resume Anna Lobo.
Cacau lá e cá
A atividade cacaueira é outra vocação comum aos dois biomas. O cacau, embora com presença muito mais relevante no Sul da Bahia, é um fruto amazônico. Conforme explica o gerente de Desenvolvimento Regional no Instituto Arapyaú, Ricardo Gomes, apesar de sua origem, a hegemonia da produção está concentrada na África – Costa do Marfim e Gana concentram cerca de 60% da produção mundial. Mas, diferentemente do Brasil, cujo cultivo se dá em sistema cabruca – um método agroflorestal, de produção em consórcio com florestas nativas, que permite o sombreamento –, o cacau africano ocorre em detrimento do desmatamento. No último ano, eventos climáticos extremos provocaram uma quebra da safra africana como não se via há muitas décadas.
No Brasil, o Sul da Bahia é o líder da produção nacional de cacau, grande parte oriunda de lavouras em sistema cabruca, que tem uma relevância fortíssima na manutenção da Mata Atlântica naquela região. Na Amazônia, o Pará desponta como o principal estado produtor, mas, apesar da predominância do sistema agroflorestal de cultivo, Ricardo Gomes lamenta o surgimento de várias manchas de cacau cultivadas a pleno sol.
Com experiência de atuação com cacauicultores em território baiano, Ricardo Gomes enumera três valores estratégicos e três desafios para a Amazônia. Os valores estratégicos são a ampliação da inclusão socioprodutiva das comunidades rurais, a geração de riqueza para os territórios e a criação de oportunidade de conectar a atividade à agenda climática, principalmente no aspecto da restauração produtiva.
No âmbito dos desafios, Gomes cita a necessidade de um modelo de reconhecimento do valor agregado do cacau produzido em consórcio com a floresta para garantir uma remuneração diferenciada; a implementação de instrumentos, como o PSA, que ajudarão a manter o agricultor no campo; e a assistência técnica adaptada ao modelo de produção agroflorestal, juntamente com acesso a crédito. “Todos esses arranjos são importantes para garantir que a produção de cacau se mantenha nesse modelo sustentável de sistemas agroflorestais”, diz.
Sobre como superar o desafio logístico de infraestrutura na Amazônia, Ricardo Gomes explica que nenhuma iniciativa naquele bioma é trivial, dado o território gigantesco e a deficiência em infraestrutura. A solução é atrair governos estaduais e municipais, além de players do cacau para participar dessa cooperação, juntamente com o Terceiro Setor.
“A partir dessa construção de estratégias em rede, alinhadas à agenda climática, à geração de renda e à oportunidade de inclusão produtiva, é possível viabilizar a atividade não só em comunidades mais favoráveis do ponto de vista logístico”, acredita Ricardo Gomes.
A ponte de cooperação que se procura erguer entre os dois biomas a partir dessa edição do Notas Amazônicas é uma forma, segundo Georgia Jordão, de democratizar o acesso a certas atividades que ainda não fazem parte da realidade de muitas comunidades amazônidas. Mas atividades econômicas, mesmo quando conectadas à manutenção do bioma, como a cabruca, devem ser planejadas com muita atenção à já combalida biodiversidade.
O conjunto de países da América Latina e Caribe acumula um declínio de nada menos que 94% na saúde das populações de fauna e flora monitoradas desde 1970 pelo Índice Planeta Vivo do WWF, frente a um decréscimo de 69% no âmbito global. A organização ambiental afirma que, “embora os esforços de conservação estejam ajudando, é preciso agir com urgência se quisermos reverter a perda da natureza e adotar soluções integradas”.
Mais um motivo para revisitar John Muir que, em um tempo tão distante, antecipou os problemas ambientais e lutou pela criação de áreas protegidas em seu país. Apaixonado pela natureza, ele dizia: “em cada caminhada com a natureza recebemos muito mais do que procuramos”.