Sob as luzes da COP 30 em Belém, no próximo ano, a preocupação com os resíduos mobiliza comunidades e busca dados científicos para subsidiar políticas públicas
Por Sérgio Adeodato
As atividades do World Cleanup Day, data em que populações de várias partes do mundo se voltam ao desafio do lixo, mobilizaram comunidades extrativistas da costa amazônica, no Pará, em setembro. Na região que integra a maior faixa contínua de manguezais do planeta, ações de limpeza coletaram resíduos presentes na natureza e encontraram uma preocupante realidade: a ameaça dos plásticos. A poluição coloca em risco a biodiversidade, os meios de sustento e a qualidade de vida nesse ecossistema costeiro em bom estado de conservação, importante para o controle da mudança climática.
“A limpeza de praias e manguezais está associada à importância de trabalhar a educação ambiental não só nas salas de aula, mas ir a campo e envolver atores e parceiros nas localidades”, explica a bióloga Dayene Mendes, integrante do projeto Mangues das Amazônia.
A iniciativa, voltada à conservação e uso sustentável desse ecossistema, é realizada pelo Instituto Peabiru e Associação Sarambuí, com apoio do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Bragança (PA).
Desde 2021, o projeto conta com o patrocínio da Petrobras através do Programa Petrobras Socioambiental e mobilizou quase mil pessoas em mutirões de limpeza, com mais de 5,5 toneladas de resíduos recolhidos. Após a coleta por grupos de voluntários em pontos estratégicos da zona costeira, os materiais são separados para classificação e pesagem, e uma parte é destinada a cooperativas de reciclagem. Só em 2024, foram realizadas dez ações desse tipo em diferentes municípios do Pará, no total de 741 participantes.
“Com a sensibilização ambiental, há uma maior percepção pública para a necessidade de mudar atitudes em relação ao lixo, evitando a degradação”, afirma Marcus Fernandes, coordenador do LAMA e Mangues da Amazônia. “Na região, o desafio maior é a prevenção de impactos – e não a remediação”.
A preocupação faz todo sentido, quando se busca aliar conservação, uso sustentável dos recursos naturais e melhor qualidade de vida. Em 2022, segundo dados da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), a Região Norte produziu 5,6 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, das quais 82,8% foram coletadas. Dessas, 63,4% se destinaram a áreas inadequadas, como lixões, com riscos à saúde humana e à biodiversidade, além da emissão de carbono que agrava a mudança climática global.
No Pará, apenas seis dos 144 municípios levam o lixo corretamente para aterros sanitários. Descartados nas cidades ribeirinhas, levados até o litoral pelos rios ou trazidos de outras partes do mundo pelas correntes oceânicas, os resíduos representam um dos principais desafios socioambientais na costa amazônica.
A questão motivou a criação do Observatório do Lixo Antropogênico Marinho (Olamar), coordenado pelo professor Marcus Fernandes, e que reúne mais de 30 pesquisadores de 11 instituições nos três estados costeiros amazônicos (AP, PA e MA), para a realização de pesquisas científicas, mapeamento dos resíduos e educação ambiental. O objetivo é oferecer subsídios à políticas públicas e gestão dos resíduos urbanos na região.
Um ponto de atenção está nas cordas, redes e outros apetrechos da chamada “pesca fantasma”, na qual esses materiais fora de uso – descartados no mar pelos barcos – acabam atingindo e matando caranguejos nos manguezais, além de peixes, tartarugas e outros animais nos estuários e no mar.
Apoiada pelo Olamar, uma recente expedição de canoagem na costa amazônica, no Pará, de cunho científico, flagrou restos de isopor e espuma na entrada de um ninho de coruja-buraqueira. Em outra excursão de campo, no Amapá, foram encontrados ninhos de japiim e bem-te-vi construídos com material de pesca, como linhas e cordas, tema de artigo científico publicado pelos pesquisadores do Olamar no Marine Pollution Bulletin, incluindo outros registros no Pará e Maranhão. Os resultados evidenciam que o lixo antropogênico marinho afeta diretamente não só a fauna marinha, mas também a terrestre.
Tanto o projeto Mangues da Amazônia e como o Olamar se originaram nos laboratórios científicos do LAMA, na UFPA, e hoje se apresentam como referência na temática do lixo marinho e costeiro, diante do cenário regional e global de desafios. No mundo, o custo social e ambiental da poluição por plástico é de US$ 1,3 trilhões por ano, segundo a ONU. A estimativa é o problema triplicar nos oceanos até 2060 se os hábitos de hoje não mudarem. O Brasil atualmente é responsável por 3,44 milhões de toneladas de plástico que chegam aos mares todos os anos.
Expansão das atividades socioambientais nos manguezais
A Amazônia estará sob os holofotes do planeta na COP 30 – a conferência do clima da ONU, no próximo ano, em Belém. No cenário, a costa atlântica da região, no Pará, é vitrine de soluções que buscam conciliar uso sustentável da biodiversidade, geração de renda e mitigação climática. “O reconhecimento desse trabalho chega em momento oportuno para dar visibilidade aos manguezais, normalmente esquecidos nas agendas”, pondera John Gomes, gestor do Mangues da Amazônia.
Em 2024, em seu segundo ciclo de atividades, o projeto expandiu a abrangência para quatro municípios paraenses – Bragança, Tracuateua, Augusto Corrêa e Viseu. As ações ambientais, sociais e culturais beneficiam direta e indiretamente cerca de 15 mil pessoas na região, com estratégia de maior aproximação com a sociedade.
No aspecto ambiental, o trabalho dá continuidade à recuperação de manguezais em áreas degradadas, totalizando 16 hectares até o momento, com uso de tecnologias inovadoras. Além do mapeamento participativo dos locais para plantio de mudas, com apoio das comunidades extrativistas, o trabalho monitora o retorno dos caranguejos às áreas já restauradas no passado. Amostras de árvores são coletadas em diferentes áreas de pesquisa dos manguezais para o estudo de variabilidade genética, indicando onde estão as sementes que podem apresentar maior resiliência e sucesso no reflorestamento.
Há ainda, estudos sobre o potencial do carbono nas demandas da mudança climática. Sabe-se que a costa amazônica representa uma das maiores florestas de manguezais do mundo, com árvores superiores a 40 metros de altura – exuberância proporcionada, entre outros fatores, pela grande carga de matéria orgânica levada pelo Rio Amazonas até a foz. Cientistas estimam que os manguezais da região produzem duas a três vezes mais carbono do que a floresta de terra firme, e novas pesquisas estão em desenvolvimento no LAMA para a obtenção de dados precisos sobre o tema.
Região mobiliza jovens e guarda referências da riqueza cultural
No campo social, além dos mutirões contra a poluição por resíduos, o Mangues da Amazônia realiza atividades educativas que envolvem mais de mil estudantes de diferentes faixas etárias: o Clube do Recreio (crianças de 4 a 6 anos), o Clube de Ciências (10 a 12 anos), o Protetores do Mangue (13 a 15 anos) e o AlfaMangue, voltado à alfabetização de crianças entre 7 e 9 anos.
A agenda inclui excursões para visita a outras cidades, inclusive a capital, visando à troca de experiências e à abertura de novos horizontes. De igual modo, estudantes das maiores cidades chegam às comunidades e conhecem um novo mundo por meio da iniciativa “Escola Vai ao Mangue”. “É essencial envolver as novas gerações no debate sobre desenvolvimento sustentável”, afirma Gomes.
Segundo ele, o desafio envolve a preservação do patrimônio cultural, como a riqueza da gastronomia à base de peixes, caranguejo e frutos do mar. “Além da alimentação e da renda, os manguezais interferem diretamente na dinâmica das comunidades próximas, seja na navegação com o sobe-desce da maré, seja na retirada de madeira para fazer cercas e casas ou nas letras e ritmos da cultura musical”, diz Gomes. Nativo da região, com experiência na assistência técnica à pesca e mestrado na economia da cadeia produtiva do caranguejo-uçá, o gestor enfatiza: “o trabalho do Mangues da Amazônia é manter o que está preservado e garantir a relação das famílias com esse ecossistema no futuro”.