Mecanismo que compensa os esforços de conservação em um território, o Redd+ Jurisdicional ganha maior interesse do setor privado, por meio do mercado de carbono voluntário. As comunidades que contribuem para a conservação são remuneradas, mas faltam aperfeiçoamentos no sistema. Estados como Acre, Mato Grosso, Pará e Tocantins relatam experiências, conquistas e desafios, no primeiro webinar deste ano da série Notas Amazônicas
Por Magali Cabral
Você sabe o que é Redd+ Jurisdicional? Sabe como funciona e o quanto pode impactar positivamente o clima, as florestas e as comunidades amazônicas? Para buscar esses esclarecimentos e saber como estão caminhando as experiências com esse mecanismo em estados da Amazônia Legal, a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia e Página22, em parceira com a Coalizão Leaf, realizaram este mês o nono webinar da série Notas Amazônicas, intitulado Caminhos do Redd+ Jurisdicional nas Amazônias (assista na íntegra). O evento foi apresentado pela secretária executiva da Concertação, Livia Pagotto, e mediado pela especialista em Financiamento de Carbono do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Milena Terra.
O Redd+, sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal – o sinal (+) representa o reconhecimento de outros esforços para a conservação das florestas – é um instrumento criado pelas Nações Unidas que prevê o pagamento por resultados de redução de emissões de carbono associadas ao desmatamento e à degradação florestal. Já o Redd+ Jurisdicional é uma abordagem que trabalha com a contabilização da redução das emissões nos limites de um território específico, seja país, seja estado, seja município.
PARA ENTENDER A ESTRUTURA DO REDD+ JURISDICIONAL
A implementação de um programa de Redd+ jurisdicional (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal no nível subnacional ou nacional) requer determinação e muita resiliência. É um trabalho complexo, que envolve grande número de entes atuando em várias frentes de ação, além de salvaguardas, por meio das quais se garante a integridade ambiental, social e financeira do programa.
As frentes de ação do Redd+ Jurisdicional dividem-se em etapas que podem variar dependendo do país ou região. Para implementar um programa eficaz e transparente, que resulte nos benefícios socioambientais esperados, são previstas pelo menos seis etapas: planejamento e preparação; desenvolvimento de sistemas de monitoramento, relato e verificação (MRV); implementação de estratégias de mitigação; estruturação do financiamento; distribuição de benefícios e salvaguardas; e avaliações e melhoria contínua.
Na fase inicial, de preparação e planejamento, a primeira providência é engajar as partes interessadas – governos, comunidades locais, setor privado e ONGs. O movimento seguinte consiste em desenvolver as políticas e regulamentações de implementação. Uma vez definida a abrangência jurisdicional do programa – nacional, estadual ou municipal –, deve-se elaborar uma análise das causas do desmatamento naquela jurisdição e criar as respectivas estratégias de mitigação.
Na fase seguinte, de desenvolvimento de um sistema de MRV, é preciso criar uma referência das emissões históricas de carbono, causadas por desmatamento e degradação, para efeito de comparações futuras. É fundamental fazer o monitoramento da cobertura florestal da área delineada, por meio de imagens de satélite e outros dados. É esperado que haja uma metodologia de cálculo de emissões e remoções de carbono da atmosfera e uma auditoria independente que garanta a transparência e a credibilidade das informações.
Para implementação da etapa de estratégias de mitigação, a coordenação do programa buscará viabilizar instrumentos econômicos, como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), para remunerar populações que fazem manejo florestal sustentável. Outras medidas desta etapa são: estimular programas de incentivo à agropecuária de baixo impacto e à recuperação de áreas degradadas. Fortalecer a governança para melhorar a gestão territorial e aumentar a fiscalização para reduzir crimes ambientais também são iniciativas bem-vindas nesta fase.
A etapa da estruturação do financiamento requer pelo menos três iniciativas: captar recursos buscando parcerias com fundos internacionais (por exemplo, Fundo Verde para o Clima, Banco Mundial, Noruega); estabelecer um mercado de carbono voluntário ou regulado para comercializar créditos de carbono; criar um fundo jurisdicional com mecanismos de distribuição equitativa dos recursos arrecadados pelo programa.
A distribuição de benefícios e salvaguardas deve seguir critérios rígidos e transparentes. Para garantir que o programa trará benefícios de fato, é importante que os impactos socioambientais obtidos pelo programa sejam continuamente apresentados. As comunidades locais devem necessariamente participar das tomadas de decisão, sempre respeitando os direitos indígenas e quilombolas. Participam da repartição de benefícios governo, comunidades e outros setores envolvidos.
A última fase, de avaliação e melhoria contínua, requer a revisão periódica do programa, contemplando ajustes com base em dados de monitoramento e mudanças nas condições locais. Prevê também relatórios de desempenho para prestação de contas aos financiadores e à sociedade. As políticas públicas devem ser aprimoradas, com ajuste de regulamentações, conforme as lições aprendidas ao longo do programa.
O Brasil não é um estreante nessa área, conforme explica Fernanda Ferreira, líder da área de mercados de carbono no Brasil na Emergent, organização que coordena a Coalizão Leaf. “De um lado, existe o esforço subnacional de construir esses sistemas que já vem de um tempo. É o caso dos estados do Acre e de Mato Grosso, que têm aplicações bem sucedidas de pagamento por resultados [ambos os estados participam do Programa REDD+ for Early Movers, financiado pelos governos da Alemanha e do Reino Unido]. De outro lado, estão as iniciativas semelhantes de âmbito nacional, entre as quais a do Fundo Amazônia”, diz.
A principal novidade na trajetória dos sistemas jurisdicionais, segundo ela, é o interesse crescente do setor privado pela iniciativa, em especial, pelo mercado de carbono voluntário. Aqui vale uma explicação: há empresas que estão submetidas a ambientes regulados e são obrigadas, por meio de regulamentos ou legislação, a comprar créditos carbono; outras compram os créditos voluntariamente para cumprir suas metas de sustentabilidade corporativa.
O mercado voluntário de carbono tornou-se uma ferramenta importante no mundo corporativo e já canaliza milhões de dólares em projetos que reduzem ou eliminam emissões de gases de efeito estufa. Um fator de atração das empresas para os programas jurisdicionais é a sua integridade, uma vez que precisam cumprir com uma série de salvaguardas socioambientais para poderem gerar créditos de compensação voluntária.
“Por exemplo, pelo sistema jurisdicional uma empresa não consegue comprar crédito de carbono certificado se suas emissões estiverem além do indispensável à realização de suas operações internas”, explica Fernanda Ferreira.
Como o mercado se estrutura
Empresas e governos comprometem-se a financiar a redução de emissão por desmatamento e degradação ambiental e a canalizar esse financiamento por meio de um sistema de pagamento por resultado. Isso significa que, quando há comprovação de que houve uma redução do desmatamento em uma jurisdição, as comunidades envolvidas no processo recebem um pagamento por isso.
Mas essa redução precisa ser validada e verificada por auditorias que aplicam metodologias adequadas. Por suas rigorosas salvaguardas sociais, a mais adotada é a Art-Trees, sigla em inglês para Arquitetura para Transações, Redd+ (Art) e Padrão de Excelência Ambiental Redd+ (Trees).
Quando esse pagamento por serviços ambientais aterrissa na jurisdição, segue um fluxo de repartição de benefícios acordados com as partes relevantes daquele território. Ferreira explica que os benefícios que chegam na ponta devem ser reinvestidos em desenvolvimento socioeconômico sustentável para a proteção do território.
“Mas ainda falta um arcabouço de soluções de financiamento climático capaz realmente de remunerar e de recompensar em escala todos os esforços feitos pelos governos, pelas populações locais e por todos os atores do território na redução do desmatamento”, afirma Fernanda Ferreira.
A superintendente de Gestão e Políticas Públicas Ambientais da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Tocantins (Semarh), Marli Santos, endossa a fala da colega de webinar sobre essa incompletude do sistema. Para ela, é preciso, inclusive, desmistificar a ideia de que o Redd+ Jurisdicional é uma panaceia que resolverá todas as carências amazônicas.
“O sistema jurisdicional não enriquecerá comunidades, nem resolverá os problemas crônicos de falta de água potável, de esgoto, de internet, de mobilidade… É apenas uma compensação mínima pelas iniciativas que fizeram um esforço para reduzir desmatamento e degradação florestal”, explica Marli Santos.
Marli Santos argumenta ainda que o sistema jurisdicional está inconcluso porque segue em construção. E ressalta o “gigantesco” esforço que a implementação de Redd exige – redução de desmatamento, geração de créditos de carbono certificados, venda dos créditos de carbono, recebimento dos recursos, repartição dos benefícios e, fechando o círculo, reinvestimento em novos projetos redução de desmatamento. Além disso, Santos lembra que a cada momento a governança precisa de aperfeiçoamentos e adaptações.
Muitos desses aperfeiçoamentos regulatórios são conduzidos pela Comissão Nacional de Redd+ (ConaRedd). Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), a comissão é uma instância de governança que monitora e revisa a Estratégia Nacional para Redd+ do Brasil e coordena a elaboração dos requisitos para o acesso a pagamentos por resultados de políticas e ações do tema no Brasil.
A coordenadora-geral de Instrumentos Econômicos para o Controle do Desmatamento do MMA, Mariane Nardi, que conduz a comissão, ressalta no webinar a complexidade do tema, mas resume que o objetivo principal do instrumento é a mitigação.
“Quando falamos em Redd+, estamos tratando de estoque de carbono florestal. Quando se desmata ou se degrada uma floresta, emite-se carbono. O nosso trabalho é recuperar esses estoques por meio da regeneração florestal, via o instrumento Redd+ Jurisdicional. Trata-se de uma contribuição para a diminuição das emissões de carbono brasileiras que estão se refletindo nesse grande desafio planetário das mudanças climáticas”, explana.
Segundo Nardi, o Brasil conta com a Estratégia Nacional de Redd+ desde 2016. Esse instrumento já deveria ter sido atualizado, mas só agora essa providência está sendo tomada. A partir de 2023, foram criados três grupos de trabalhos técnicos (GTT) que realizam debates para a construção de novas regulamentações. As três áreas de atuação desses GTT são: salvaguardas para proteção dos povos e comunidades tradicionais da floresta; mensuração, relatoria e verificação (MRV); e formas de repartição de benefícios.
Repartição de benefícios
Apesar de todas as dificuldades para a implementação do sistema, a superintendente do Semarh do Tocantins, Marli Santos, agradece aos “espíritos da floresta” pelos programas jurisdicionais estarem encaminhados, principalmente no Acre, Mato Grosso, Pará.
Para ela, a integridade inerente ao Redd+ Jurisdicional muda a forma como se conduz a gestão ambiental nos territórios e a forma de se relacionar com as comunidades tradicionais. “Isso tem mudado a realidade no Tocantins”, diz. Uma das condições estabelecidas pelas salvaguardas que regem o Redd+ Jurisdicional é a governança participativa, que inclui todas as comunidades que vivem e dependem da floresta.
Ainda sobre o Tocantins, Milena Terra, do Pnud, destaca que o estado encara bravamente os desafios da conservação no bioma Amazônia e Cerrado, um local de transição extremamente difícil: “O estado apostou em uma estratégia de desenvolvimento de baixas emissões e tem construído de forma participativa seu programa de Redd+ Jurisdicional. Criou uma secretaria inovadora, a Secretaria de Povos Indígenas, que acolhe também os povos tradicionais, os quilombolas, e os agricultores familiares.”
No Pará, o Redd+ Jurisdicional encontra-se em estágio semelhante ao do Tocantins, segundo Milena Terra. O estado criou a Política Estadual de Mudança do Clima, “guarda-chuva” sob o qual o Redd+ paraense se insere. “Essa política está atualmente em processo de estruturação do seu programa jurisdicional de Redd+”, conta. O programa é liderado pelo governo estadual, tendo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) à frente das operações, mas é cocriado pelas comunidades indígenas.
A minuta de lei que oficializa o Redd+ Jurisdicional no Pará faz parte de um conjunto de documentos que estão sendo encaminhados para retificação do Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI), um princípio que protege os direitos dos povos indígenas à autodeterminação, participação e tomada de decisão. O maior desafio do Pará é abarcar a sua dimensão territorial e a sua diversidade de povos, o que impacta diretamente nos recursos humanos e financeiros do estado.
Onde tudo começou
As mudanças que o Tocantins e o Pará veem acontecer, o Acre já experimenta há pelo menos 15 anos, quando abraçou o Programa Jurisdicional de Redd+ do Sistema de Incentivos ao Serviço Ambiental do Carbono (ISA Carbono).
Milena Terra celebra esse pioneirismo: “Os seringais acreanos tiveram um papel central na história da conservação das florestas no País. Foram o berço da criação das reservas extrativistas e da luta pela floresta em pé travada pelos povos da floresta. Isso culminou em um movimento social extremamente forte, que fez com que as políticas acreanas fossem construídas de forma muito participativa e acabassem esbarrando no programa jurisdicional de Redd+”.
Para o presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e ex-prefeito de Xapuri (AC), Julio Barbosa de Aquino, o estado conta, de fato, com uma governança muito bem desenhada e estruturada.
Na opinião de Aquino, o objetivo do programa é, não só proteger as florestas, mas também garantir uma melhor qualidade de vida às populações que nelas habitam. “É muito importante que essas populações tenham oportunidade de discutir e elencar as suas principais necessidades”.
Segundo o ex-prefeito, as discussões atualmente giram em torno da definição dos modelos de repartição dos benefícios. O mais comum é a repartição se dar por meio de políticas públicas estaduais voltadas às comunidades da floresta. Para ele, seja qual for o modelo, o estado precisa de investimentos em saúde e educação de qualidade, e precisa sair do isolamento, por meio de um bom sistema de comunicação e informação. “Precisamos investir também em tecnologia para que os produtos da nossa sociobiodiversidade sejam valorizados e tenham competitividade nos mercados local, nacional e internacional”, completa.
Expectativas e realidade
Assim como outras unidades federativas da Amazônia Legal, o Acre passa por essa fase de debates com as comunidades locais para atualização de aspectos relacionados à governança, em especial sobre repartição de benefícios e aspectos do MRV.
Nesse processo, o secretário de Meio Ambiente do Acre, Leonardo Carvalho, destaca o apoio que o estado recebe do governo da Noruega e de parceiros, como o Pnud, o Instituto World Innovation e a Coalizão Leaf.
Localmente, o estado conta com instituições como a Comissão Estadual de Validação e Acompanhamento (Ceva), do Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais (Sisa), e câmaras temáticas indígenas e de mulheres. Ele afirma que o sistema jurisdicional está ganhando corpo no estado e que “estamos na expectativa de alcançar escala e recursos para mitigar os impactos da mudança do clima e fazer investimentos nos territórios”.
Para Mariane Nardi, essa expectativa é comum a todos os estados. A questão é a dimensão do desafio. A agenda poderia ter caminhado mais ou melhor? Sim. Mas só o fato de caminhar, de estabelecer novas governanças, de verificar que os povos da floresta estão mudando suas realidades, é um alento. “Às vezes a gente quer ver os resultados finais, mas ao longo do caminho também vão surgindo muitas conquistas”, diz.
Sobre expectativas, Fernanda Ferreira afirma que nessa caminhada surgem outros modelos de financiamento. “Juntos, eles compõem uma cesta de opções para dar a escala necessária e remunerar de forma justa e equilibrada aqueles que preservam e conservam as florestas no território”. Segundo ela, a contribuição do setor privado é também muito importante para atingir o tão desejado ganho de escala.
Marli Santos reage, lembrando do desafio que é convencer o mercado de que, frente a um esforço tão gigantesco para reverter a degradação florestal, uma unidade de crédito de carbono – que equivale a uma tonelada de CO2 – não pode valer apenas cinco dólares. “Idealmente deveria custar 100 dólares ou, no mínimo, 50 dólares”, defende.
Apesar de toda a complexidade e dificuldade para implementar um programa de Redd+, Milena Terra, do Pnud, reforça que o engajamento de todos os envolvidos nos vários projetos jurisdicionais é tão consistente que não há outra perspectiva diferente de seguir adiante.
“Nós acreditamos muito no Redd+ Jurisdicional como forma de trazer um financiamento para mudar essa realidade que tem assolado a Amazônia com o desmatamento. Temos esse controle e vamos fazer com que esse dinheiro efetivamente chegue naqueles que estão promovendo os serviços ambientais”, conclui Milena Terra.