O Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), a ser lançado na COP 30, é um instrumento inédito de financiamento para remunerar todos os países tropicais do mundo por suas florestas em pé. O Brasil poderá ser beneficiado com R$ 6 bilhões anuais, dos quais 20% serão direcionados aos povos indígenas e comunidades tradicionais
Por Magali Cabral
Mais de 70 países do Sul Global detentores de florestas tropicais e subtropicais úmidas em breve poderão se tornar elegíveis a receber recursos do Tropical Forest Forever Facility (TFFF) – ou Fundo Florestas Tropicais para Sempre –, a ser lançado em novembro, durante a COP 30, em Belém. Trata-se de um instrumento inédito de financiamento, proposto pelo Brasil na cúpula climática realizada nos Emirados Árabes Unidos (COP 28), que remunera países tropicais pela conservação da floresta em pé. Ao pagar por área conservada, o TFFF, ainda em fase final de elaboração, complementará outras fontes de financiamento, e será mais atrativo aos países que controlam o desmatamento de suas florestas.
“TFFF, o que é, como funciona e para quem?” foi o tema debatido no 10º episódio da série de webinários Notas Amazônicas, promovido pela rede Uma Concertação pela Amazônia e Página22, em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (iCS), em 22 de abril. Participaram do debate Maria Netto, diretora executiva do iCS; André Aquino, chefe da Assessoria Especial de Economia e Meio Ambiente do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA); Francisco De Filippo, chefe da Assessoria Internacional do Ministério dos Povos Indígenas (MPI); e Joana Chiavari, diretora de Pesquisa do Climate Policy Initiative (CPI/PUC-RJ). A mediação foi de Georgia Jordão, gestora de Conhecimento da Concertação. A íntegra do evento está disponível no YouTube da Página22.
O desenho financeiro do TFFF não é nada trivial, ao contrário. Na visão de Maria Netto, é extremamente inovador, pois inverte a lógica da cooperação tradicional de países desenvolvidos, que colocam recursos públicos muito aquém do que seria necessário para obter uma resposta climática ou de biodiversidade global. O TFFF premiará os países por hectare conservado de floresta e usará sistemas nacionais para repassar os recursos.
“O fundo ainda está em desenho, mas é a coisa mais ambiciosa que aconteceu em anos, porque destravará um problema que parecia insolúvel, que é dar um valor para a floresta em pé. E também porque haverá flexibilidade para os países definirem como querem alocar esses recursos”, afirma Maria Netto.
Funcionamento do TFFF
O TFFF deverá impor condições de elegibilidade aos países. A principal delas, segundo André Aquino, do MMA, é ter registrado um desmatamento abaixo da média global de cerca de 0,5% em relação ao ano anterior. “Nós sabemos que isso excluirá alguns países, mas o TFFF é uma resposta à crítica de que os instrumentos que pagam pela redução do desmatamento remuneram justamente aqueles que estão desmatando”, justifica Aquino.
Por essa lógica, quanto mais próximo de zerar as emissões por desmatamento, menos recursos um país recebe por conservar suas florestas. O Brasil é elegível ao TFFF pelos biomas Amazônia e Mata Atlântica. Outro critério de elegibilidade é o país apresentar um sistema transparente e eficiente de gestão de recursos.
O TFFF será um fundo permanente e com volume vultoso de recursos. A meta é pagar um valor por hectare de floresta tropical em pé, previsto atualmente em US$ 4. Vale lembrar que as áreas verdes distribuídas entre os mais de 70 países tropicais do globo somam 1,2 bilhão de hectares, grande parte concentrada na Pan-Amazônia, na Bacia do Congo e no Sudeste Asiático. Por esse critério, poderão ser endereçados ao Brasil investimentos anuais equivalentes a R$ 6 bilhões, considerando os dados de extensão florestal de 2023.
Um atributo inovador do modelo é trazer embutido em sua estratégia um mecanismo de desincentivo ao desmatamento. Aos desmatadores, haverá descontos nas remessas anuais de recursos de 100 a 200 vezes o valor do hectare. Por exemplo, se o país desmatar um hectare, será penalizado com um desconto entre US$ 400 e US$ 800 em seu pagamento anual. Áreas degradadas perderão US$ 100 por hectare.
Esse monitoramento será feito por satélites em um processo semelhante ao usado pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe), que identifica e quantifica as áreas desmatadas, fornecendo dados anuais sobre a taxa de desmatamento na Amazônia Legal.
Mas será que esses valores de desincentivo cobririam o custo de oportunidade de desmatar a floresta para instalar uma cultura agrícola de alto rendimento, como a da soja, ou de explorar petróleo em áreas sensíveis? Segundo Aquino, provavelmente não. “Mas, de novo, o país receberá por toda a sua extensão de florestas, não apenas por aquelas que estão sob pressão. E essa é a grande diferença. Por isso sempre falamos mais sobre o volume agregado de recursos que o país poderá receber em determinado ano, e menos sobre o cálculo econômico por hectare”, explica.
Outra característica que distingue o TFFF, é o pagamento por sistemas nacionais, e não via projetos específicos. Para Joana Chiavari essa é mais uma particularidade extraordinária do modelo, pois os países que receberem esses recursos poderão definir suas próprias regras de alocação. As nações o farão de acordo com suas políticas locais e suas considerações internas. “Isso difere o TFFF de fundos multilaterais ou de blended finance, que geralmente definem essa alocação com base na elaboração de projetos definidos pela administração do fundo”, observa.
Estrutura e governança
Para se viabilizar até a COP 30, o TFFF terá de assegurar, junto a fundos soberanos de países comprometidos com a causa ambiental, entidades filantrópicas e fundos de pensão, uma quantia da ordem de US$ 25 bilhões, a juros baixos, como forma de reduzir riscos para a captação de recursos privados – o chamado pledge. Os recursos privados, por sua vez, serão arrecadados com investidores institucionais por meio da emissão de bonds (títulos de dívida ou títulos prefixados de renda fixa). A meta é captar US$ 100 bilhões até novembro.
Os US$ 125 bilhões totais serão investidos em aplicações conservadoras, como títulos de renda fixa, preferencialmente em ativos verdes associados aos países emergentes. Espera-se obter um retorno financeiro maior do que o compromisso do TFFF com os seus credores.
A diferença entre o rendimento do fundo e a dívida com os credores é o resultado a ser compartilhado com os países tropicais. André Aquino faz um cálculo ligeiro: supondo que o fundo alcance rendimentos na faixa dos 7,5% anuais e tenha de pagar aos credores 4%, os 3,5% restantes sobre o montante resultariam em um valor próximo a US$ 4 bilhões, a serem distribuídos aos países tropicais, segundo seus resultados em conservação.
A estrutura de governança do TFFF será composta por dois conselhos. Um de administração, responsável pelas tomadas de decisão, onde se acomodariam, meio a meio, países tropicais e países investidores; e um consultivo, formado por representantes da sociedade civil, povos indígenas, academia, entre outros.
O fundo, denominado Fundo de Investimento em Florestas Tropicais (TFIF, na sigla em inglês), terá um conselho independente, do qual participarão somente os investidores, para lidar com a alocação dos recursos, aferição de resultados etc. E, para gerenciar tudo isso, haverá um agente fiduciário e um secretariado. O governo brasileiro pleiteia junto ao Banco Mundial – instituição que poderá vir a hospedar o TFIF – o controle desse setor. A análise do pedido está em curso.
Joana Chiavari considera a dependência do capital concessional (recursos públicos ou filantrópicos que aceitam maiores riscos ou menores retornos) uma limitação do TFFF. “Foi citado um capital da ordem de 25 bilhões de dólares de investidores soberanos, fundações e filantropias. A título de comparação, o GEF [Global Environment Facility] financiou cerca de US$ 23 bilhões em projetos desde a sua criação em 1991. Ou seja, um espaço de tempo considerável que mostra o tamanho desse desafio”, argumenta.
Nesse sentido, a diretora de Pesquisa da CPI da PUC/RJ sugere que o mecanismo enfatize não só a sua característica de fundo de investimento, mas também de facility, termo referente ao último F do TFFF, que se refere a financiamento. Isso abriria a possibilidade de contribuições de outros doadores, como empresas, indústrias, governos, o que, na opinião dela, é possível na estrutura do TFFF.
Chiavari cita ainda o risco de volatilidade na busca por retornos maiores capazes de reembolsar investidores e fazer pagamentos aos países como outra característica desafiadora. Entretanto, ressalva que muitos dos objetivos que o TFFF não conseguir alcançar poderão ser atendidos por outros instrumentos complementares.
Desafios à parte, ela elogia a ruptura que o TFFF promove em relação aos modelos de financiamento climático internacionais, que via de regra colocam recursos em mitigação, onde existe um risco iminente de aumento de emissões de gases de efeito de estufa.
Outro ponto que Joana Chiavari considera representativo desse instrumento é o fato de que o valor investido pelos doadores garantirá um fluxo anual constante de recursos para os países com florestas, o que permitirá que se planejem ações de longo prazo. “Os países não dependerão de ações que precisem ser negociadas ano a ano, de maneira bilateral ou multilateral, e que acabam enfraquecendo as políticas internas e as ações locais”.
Pela primeira vez, também, haverá um fundo de investimentos com retornos financeiros para pagar por serviços ambientais de proteção das florestas, em vez dos usuais fundos públicos de doações não reembolsáveis. Para Maria Netto, embora essa parte financeira do TFFF seja interessante e inédita, é também desafiadora, pois precisa assegurar não só o acesso aos recursos, mas se de fato eles serão usados de forma eficiente para manter a floresta em pé. “E como saber se todos os países tropicais do mundo terão a mesma capacidade de execução?”, questiona.
Diante de tais incertezas, ela recomenda um fortalecimento desde já dos diálogos entre a sociedade civil e o governo brasileiro, incluindo principalmente as comunidades envolvidas com as florestas tropicais. E aponta ainda a necessidade de os recursos, depois de repassados aos países, serem submetidos também a um processo de governança contínuo.
“É fundamental que todos entendam o modelo de governança do TFFF, até como uma forma de prevenção de futuras queixas e litigâncias, caso o fundo avance de fato”, adverte. Outra preocupação, apontada inicialmente por Georgia Jordão na mediação do evento, é que se busque uma institucionalidade para que as decisões sobre a destinação dos recursos sejam uma política de Estado e não fiquem a mercê dos ciclos políticos de governos que vêm e que vão.
Remuneração dos povos indígenas
Está em análise uma proposta para que pelo menos 20% do pagamento feito aos países em determinado ano sejam direcionados a programas relacionados aos povos indígenas e/ou a comunidades locais ligadas à floresta. Segundo André Aquino, essa proposta foi bem recebida pelos membros responsáveis pelo desenho do TFFF.
De qualquer modo, como os pagamentos serão via sistemas nacionais, ele explica que caberá a cada país envolver a sociedade civil, particularmente os povos indígenas e comunidades tradicionais, nas decisões sobre a partilha dos recursos. Será necessário definir também o quanto será destinado a políticas nacionais, a mecanismos de fomento da bioeconomia, a pagamento por serviços ambientais, entre outras possibilidades.
Em sua abordagem, o chefe da Assessoria Internacional do MPI, Francisco De Filippo, saúda a nova iniciativa, e enfatiza o desafio histórico que tem sido aumentar o fluxo de financiamento em apoio às organizações indígenas e às políticas indigenistas, mesmo depois de os povos originários terem conquistado um ministério dedicado às questões indígenas.
Para ele, embora o MPI tenha trazido à luz a perspectiva de se avançar em um conjunto de políticas públicas de longo prazo, ainda não eliminou dois problemas estruturais: a resistência política, especialmente no âmbito do Congresso Nacional, e a dificuldade financeira dos limites do arcabouço fiscal e de toda a estrutura financeira do Estado Nacional.
“Mas antes era ainda mais difícil”, ressalva Francisco De Filippo. A gestão das políticas indigenistas ficava a cargo da Funai, uma autarquia com enorme dificuldade orçamentária, tanto para a sua própria estruturação como para a formulação de políticas. “Com isso, o enfrentamento dos desafios dos povos originários sempre ficou em um patamar de resistência”, assinala.
Segundo o servidor público, apesar das inequívocas contribuições dos povos indígenas para a conservação das florestas, a estrutura financeira das convenções multilaterais, com muitas travas políticas e burocráticas, também sempre lhes destinou parcelas ínfimas dos financiamentos internacionais. “Acredito que o TFFF poderá trazer mais reconhecimento aos esforços de quem mais protege a biodiversidade do planeta hoje, e o faz apenas com seus conhecimentos tradicionais e com seus corpos”, conclui.