A circularidade aumenta a competitividade empresarial, enquanto gera bem-estar social e protege o ambiente. Ao receber o WCEF2025, principal fórum global sobre o tema, a indústria brasileira prepara-se para ganhar protagonismo em um sistema que pode movimentar US$4,5 trilhões até 2030
Por: Redação de Página22*
Utilizar recursos naturais e energéticos da forma mais eficiente possível, sem desperdícios no processo de produção, faz todo o sentido do ponto de vista ambiental e também econômico. A economia circular preconiza a máxima produtividade e permite fazer mais com menos, pois estabelece um ciclo no qual as sobras são aproveitadas como matéria-prima, poupando energia e evitando a extração de novos insumos, a geração de resíduos e as emissões de carbono. Além disso, contribui para o bem-estar social, ao criar mais oportunidades de renda e ao promover um ambiente mais equilibrado e saudável. Todos esses aspectos levam a ganhos reputacionais, aumento da competitividade e acesso a mercados internacionais. A economia circular, portanto, chegou para ficar.
O Brasil recebeu o World Circular Economic Forum 2025 (WCEF2025, na sigla em inglês), realizado em São Paulo, entre 13 e 16 de maio. Pela primeira vez, o maior evento do mundo sobre economia circular ocorreu na América Latina, com ênfase no potencial das soluções tropicais no desenvolvimento da economia circular e regenerativa, para a qual o papel do setor produtivo é chave.
O fórum é uma iniciativa do Fundo de Inovação da Finlândia (Sitra), que teve como coanfitriões a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai Nacional) e o Senai-SP. Com 120 sessões, recebeu 1.200 convidados presenciais e 10 mil participantes online, representando mais de 150 nacionalidades.
“A economia circular é hoje mais importante do que nunca no mundo, representando uma oportunidade para os negócios, as comunidades e o planeta”, afirma Kristo Lehtonen, diretor do Sitra. De acordo com a Circularity Gap Reporting Initiative, trata-se de um sistema que já responde por 7% do PIB global. E, segundo Anis Nassar, líder de Circularidade de Recursos no Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês), representa uma oportunidade econômica significativa, estimada em US$ 4,5 trilhões até 2030.
Em mensagem no evento, Geraldo Alckmin, vice-presidente do Brasil e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), destacou que a política do governo federal Nova Indústria Brasil, lançada em janeiro, “reconhece o poder da economia circular como instrumento para o desenvolvimento sustentável e o bem-estar social, ao otimizar o uso de recursos, reduzir desperdícios e criar novos modelos de negócio”.
A necessidade de acelerar a transição para modelos circulares é clara. O Global Resources Outlook aponta que o uso de materiais crescerá 60% até 2060, no mundo, com riscos de esgotamento de recursos naturais, conforme adverte Marcelo Thomé, vice-presidente da CNI e presidente da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero). “A transição para modelos circulares não é só uma alternativa, mas uma necessidade estratégica, com ganhos de valor, empregos e inovação. É preciso sair da retórica para a prática”, avalia.
Devemos fazer mais com menos, afirma Kristo Lehtonen, diretor do Sitra
Ao sediar o WCEF, o País prepara-se para fortalecer suas práticas de economia circular. O maior desafio é o engajamento do sistema financeiro na modelagem de negócios circulares, de modo que o setor privado consiga superar o cenário complexo de custos e tecnologias e acelerar a transição para uma economia circular, na análise de Rafael Cervone, presidente do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) e vice-presidente da Fiesp.
Há desafios também no campo da regulamentação, uma vez que os negócios circulares requerem mudanças sistêmicas, colaboração e investimento a longo prazo. Para isso, são necessárias políticas e regras claras que evitem incertezas. Outra importante lacuna é a de qualificação de profissionais, treinamento e conhecimento, o que deve começar desde a educação fundamental, estimulando não apenas o aprendizado de novas habilidades técnicas, mas um novo modelo mental que seja mais baseado em cooperação e empatia, permitindo o desenvolvimento de parcerias.
Avanços no Brasil
Kalil Cury Filho, diretor titular adjunto do Departamento de Desenvolvimento Sustentável da Fiesp, observa que o avanço do tema da circularidade no Brasil se dá em um contexto de maior protagonismo do país nos fóruns globais. No ano passado, por exemplo, o Brasil sediou as reuniões do G20 e do B20, e neste ano vai receber a Cúpula do Brics Plus, em julho, e a 30ª Conferência do Clima da ONU (COP 30), em novembro.
As lideranças da COP 3O, presentes no WCEF, destacam a importância de bons projetos empresariais e de soluções no campo da economia circular com a finalidade de atrair recursos de financiamento climático para países em desenvolvimento.
O presidente da Conferência do Clima, André Corrêa do Lago, ressalta a importância da economia circular para mitigar emissões de gases de efeito estufa e promover a adaptação à mudança do clima. “As negociações acontecem sob o escopo da COP e do Acordo de Paris, mas a implementação cabe a todos”, completa o embaixador, enfatizando a centralidade do setor privado para a necessária agenda de implementação, diante da crise climática. “Achava-se antes que os fundos seriam suficientes para os países em desenvolvimento fazerem o que era necessário, mas hoje sabemos que, sem o setor privado, as coisas não vão acontecer.”
O Champion da COP 30 e vice-presidente da Fiesp, Dan Ioschpe, destaca o chamado para a ação do setor privado: “Na medida em que formos adotando soluções e projetos excelentes, vamos nos surpreender com financiamento adicional, fundos e estratégias adicionais que podem surgir”, acredita.
Hoje, cerca de seis em cada dez empresas brasileiras já implementam pelo menos uma prática de economia circular, segundo Davi Bomtempo, superintendente de meio ambiente e sustentabilidade da CNI. É o que mostra levantamento realizado pela Confederação junto a 1.708 empresas das indústrias extrativa, de transformação e da construção civil. Entre os principais benefícios percebidos pelas empresas estão a redução de custos, o fortalecimento da imagem corporativa e o estímulo à inovação. A ação mais frequente é a reciclagem de produtos, presente em um terço das empresas. Em seguida, aparecem o uso de matéria-prima secundária nos processos produtivos (30%) e o desenvolvimento de produtos com foco na durabilidade (29%).
Desenvolvimento de habilidades
Avançar na transição para sistemas circulares depende do desenvolvimento de habilidades. “Precisamos treinar os treinadores”, diz o professor Flávio de Miranda Ribeiro, do Senai-SP, para quem as estratégias pedagógicas tradicionais não estão preparando os alunos para o futuro circular, e principalmente, para serem uma parte ativa dessa transformação. Ele defende uma transformação na forma de ensinar, mudando valores e perspectivas de trabalho, mas também adotando práticas pedagógicas colaborativas, baseadas em redes e solução conjunta de problemas.
Na sua avaliação, há também um hiato no treinamento de habilidades específicas, como ecodesign para evitar a obsolescência de aparelhos eletrônicos, formação de técnicos para operar com recuperação de resíduos (biometano), painéis solares e desenho de embalagens, entre outros exemplos. “Primeiro, é preciso mapear e identificar lacunas e, em seguida, envolver indústria, governo, sociedade civil e instituições de qualificação, para evoluirmos na forma como ensinamos e também em relação ao que ensinamos”, afirma.
Desafios em regulação, financiamento e comércio internacional
Outro desafio estrutural é o regulatório. Nesse sentido, há de se comemorar o lançamento, no início de maio, do Plano Nacional de Economia Circular, que apresenta 18 objetivos e 71 ações para implementar a circularidade na economia brasileira nos próximos 10 anos, com incentivos à eficiência no uso de recursos naturais, geração de empregos verdes, redução de impactos ambientais e menor pegada de carbono.
O Plano conecta-se com o projeto de lei da Política Nacional de Economia Circular que, segundo Bomtempo, está em regime de urgência terminativa na Câmara dos Deputados, podendo ser aprovada a qualquer momento. Alinha-se também com o Plano de Transformação Ecológica e a política Nova Indústria Brasil, citada por Geraldo Alckmin.
A expectativa é de que as definições no arcabouço legal propiciem um ambiente mais claro para a tomada de decisões empresariais e financeiras. Não só no Brasil, mas globalmente falando, as lacunas financeiras são enormes. “Nosso levantamento mostra que apenas 2% dos recursos financeiros globais são aportados em soluções de circularidade em setores intensivos em recursos naturais, como a indústria da construção”, adianta Marvin Nusseck, líder do Programa de Finanças Circle Economy e especialista na interseção entre a economia circular e o setor financeiro.
O sistema de comércio internacional poderia servir para apoiar e acelerar a transição para modelos de negócios mais sustentáveis, mas nesse campo também há dificuldades significativas, segundo análise de Tatiana Prazeres, secretária de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).
Ela lembra que a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995, após a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), tem acordos em diversos segmentos, mas não relacionados a comércio e meio ambiente.
“Se a OMC quiser ter relevância nisso, é muito importante um esforço levando em conta os pilares da difusão de tecnologias e da transição justa e inclusiva”, reforça.
No atual contexto geopolítico, Leonardo Lahud, especialista em comércio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), adverte que a produtividade na América Latina e Caribe está estagnada nos últimos anos, com desafios em relação a capital humano, dívidas e infraestrutura. A integração entre os países latino americanos representa somente 15% do comércio total da região, enquanto na Ásia o índice é de 55% e, na Europa, 68%.
Alianças estratégicas
A boa notícia é que há uma série de parcerias regionais e iniciativas em curso, como a Coalizão de Economia Circular da América Latina e Caribe, a Aliança Africana de Economia Circular (ACEA), e o Fórum de Economia Circular da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), que reúnem atores-chave dos setores público e privado.
Beatriz Martins Carneiro, coordenadora regional da América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), destaca a importância da crescente adoção de planos nacionais sobre economia circular na região, incluindo o aprovado pelo Brasil em maio deste ano.
“Os países da região estão começando a colocar a economia circular não somente como parte de suas agendas ambientais, mas também como uma abordagem estratégica para aumentar a resiliência econômica, inovações industriais e inclusão social”, afirma.
Outro exemplo de iniciativa estratégica é a Sustainable Business COP30 (SB COP), uma aliança global empresarial liderada pelo setor produtivo brasileiro para garantir o engajamento de empresas e entidades na agenda climática da Organização das Nações Unidas (ONU).
Além disso, a União Europeia adotou o primeiro plano de ação continental sobre economia circular do mundo em 2015 – e um documento atualizado foi ratificado recentemente como elemento central do novo Acordo Industrial Limpo do bloco, aprovado em fevereiro. “Isso demonstra que a economia circular está saindo das margens da economia para se tornar parte do mainstream econômico”, afirma Bernard Crabbé, chefe do setor de Meio Ambiente e Economia Circular da Comissão Europeia.
A Comissão Europeia atua ainda como uma plataforma multissetorial, promovendo grupos de trabalho onde se dá o mapeamento de desafios regionais e o compartilhamento de boas práticas. Outra novidade é o Centro de Recursos de Economia Circular da União Europeia (EU CERC, na sigla em inglês), uma colaboração entre a UE, o fundo finlandês Sitra e a Enabel, a agência belga de Cooperação Internacional. Lançado no Brasil durante a última plenária, a iniciativa visa construir parcerias e colaborações entre o continente europeu e países ao redor do mundo, incentivando a adoção de políticas e modelos de negócios de economia circular consistentes.
Boas práticas
Com o mote de que compartilhar experiências pode inspirar o setor produtivo a avançar na circularidade, o WCEF é palco da premiação de boas práticas empresariais na América Latina e Caribe, apelidada de “Oscar da Circularidade”.
O vencedor do Business Award LAC 2025, anunciado na quarta-feira 14/5, é a empresa brasileira Energy Source, que oferece soluções para as baterias de lítio, incluindo reparo e reciclagem. “Este prêmio nos motiva a continuar inovando com integridade e propósito. Vamos trabalhar juntos para construir um futuro melhor através de soluções de economia circular”, diz o CEO David Noronha, ressaltando os desafios de incluir a circularidade na área da mineração.
O e-book Economia Circular Melhores Práticas também foi lançado durante o fórum. O livro é resultado de uma chamada pública para indústrias da América Latina e Caribe feita por Fiesp e CNI. Submeteram suas experiências 275 empresas, das quais 204 foram selecionadas por uma equipe de especialistas, dentre estas, as 49 mais destacadas integram a obra.
Algumas inovações inspiradoras
Além da premiada Energy Source, o Brasil reúne uma série de experiências inspiradoras em economia circular. Daniel Motta, gerente de Inovação e Tecnologia do Senai-SP, trabalha em projeto de etanol de segunda geração (combustível produzido a partir do bagaço da cana), em parceria com a Raízen, para o desenvolvimento de duas iniciativas: a estruturação de um centro de bioenergia em Piracicaba (SP), que se dedica principalmente a pesquisas visando redução dos custos de produção; e grandes projetos de P&D relacionados ao desenvolvimento de novos produtos a partir do etanol de segunda geração. Juntas, as iniciativas somam investimentos de US$ 21 milhões.
No setor florestal, a Valmet América do Sul, por exemplo, fornece matéria-prima de produtos químicos para indústrias de papel e celulose e também oferece aos clientes ajuda para encontrar ou desenvolver tecnologias sustentáveis e circulares. O CEO da Valmet, Celso Tacla, cita o caso de uma máquina desenvolvida para a Klabin que substituiu o papel de fibras longas por um papel com 100% de fibras curtas. Com isso, a fabricante de papel aumentou sua produtividade: em vez dos 50 mil hectares que eram necessários para produzir determinada quantidade do produto, obteve o mesmo volume usando apenas 30 mil hectares, com propriedades físicas melhores e poupando 10% de fibras na formulação.
Outro caso de inovação é apresentado por Daniel Weingart Barreto, diretor executivo da Assessa, uma empresa B2B que faz ingredientes ativos para a indústria de cuidados pessoais. Seus clientes são grandes empresas globais de cosméticos. “As florestas são parte dos nossos interesses porque tentamos encontrar moléculas na natureza”. O objetivo é atingir a marca de 100% de moléculas em cadeias sustentáveis.
A força das comunidades
Com 6 milhões de agricultores, a iniciativa Agricultura Natural Gerenciada pela Comunidade de Andhra Pradesh (APCNF, na sigla em inglês), na Índia, é considerada responsável pela maior transição para a agroecologia do mundo. O projeto conta com o protagonismo de mulheres na aplicação de técnicas regenerativas para construir uma agricultura resiliente, que resgata uma relação mais natural com a terra.
Estudo realizado com 562 participantes da iniciativa indiana mostrou que a produção e os ganhos dos produtores rurais aumentaram. “Em média, a produção foi 11 vezes maior após três anos da incorporação desse novo método de plantação”, explica Pavan Sukhdev, fundador e CEO da GIST Impact, líder em dados e análises de impacto. Segundo ele, a colheita aumentou de duas a quatro vezes com métodos naturais de adubação, a partir de esterco de vaca e melaço.
A técnica permitiu ainda a redução do uso de defensivos agrícolas de 56% a 73% nas plantações. “Nós registramos uma renda líquida 49% superior para o produtor. Quando um agricultor vai vender sua colheita, o produto tem mais saída porque é um alimento saudável. Já para aqueles que ainda usam pesticidas, a venda é menor”, explica.
Como contrapartida pela participação na iniciativa, os agricultores beneficiados compartilham as técnicas com produtores de outras vilas, escalando a solução. “Muito do financiamento desse tipo de agricultura é reinvestido para ensinar outros produtores agrícolas”, diz Sukhdev. “Leva um certo tempo para que os produtores consigam incorporar esse novo método de agricultura, mas, depois, vão criando redes, com base no capital social das relações comunitárias construídas por décadas, o que gera capital nacional para desenvolver sistemas alimentares sustentáveis e circulares, como parte da bioeconomia.”
A Índia, terra natal de Sukhdev, receberá a próxima edição do WCEF, em 2026. Nilesh Kumar, secretário-geral do Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Clima do país ressalta a inovação, com programas voltados a startups, como uma das oportunidades do país em relação à economia circular. Kari Herlevi, do Sitra, espera que a Índia, como potência global e regional, também traga discussões sobre inclusão social e transição justa.
*Por meio de parceria com a Fiesp, a Página22 cobriu o WCEF2025