A transição energética de todos os modais de transportes – rodoviário, aéreo e marítimo e ferroviário – é um imenso desafio global. Apesar do crescimento das fontes renováveis, 82% da matriz energética do mundo ainda depende de combustíveis fósseis
Por: Redação de Página22*
“Pode ser de bicicleta, de carro, de avião, ou mesmo de navio. O fato é que estamos sempre em movimento e o transporte está presente nas nossas vidas todos os dias. Desde que se tem registro da existência humana, sempre procuramos algo que não está tão próximo. Sempre migramos, seja para encontrar familiares e amigos, seja para buscar cura ou comida, seja apenas por curiosidade.”
Com essas palavras, Priscila Rocha, Head global do Departamento de Desenvolvimento Sustentável da Fiesp e diretora global de Sustentabilidade e ESG na Volkswagen Caminhões e Ônibus, deu início à sessão “Inovações circulares para a cadeia de valor da mobilidade global”, realizada do dia 13/5, no Fórum Mundial de Economia Circular 2025 (WCEF2025).
O evento, realizado de 13 a 16 de maio, em São Paulo, foi organizado em conjunto pelo Fundo Finlandês de Inovação Sitra, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Confederação Nacional da Indústria do Brasil (CNI), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai Nacional) e Senai-SP. Pela primeira vez o maior evento do mundo sobre economia circular ocorreu na América Latina, destacando soluções dos trópicos, especialmente para o setor produtivo.
Em palestra de abertura, a copresidente do Painel Internacional de Recursos da ONU e ex-ministra do Meio Ambiente no Brasil, Izabella Teixeira, lembrou que, após 35 anos de discussões climáticas, a segurança energética do mundo ainda está fortemente baseada no modelo de combustíveis fósseis. “Se 35 anos atrás 86% da matriz energética do mundo eram dependentes de combustíveis fósseis, hoje ainda são 82%”, afirma.
Izabella Teixeira, copresidente do Painel Internacional de Recursos da ONU e ex-ministra do Meio Ambiente. Foto: Ayrton Vignola/Fiesp/ Divulgação
Isso não quer dizer que não haja investimentos crescentes em renováveis. Há e muitos, mas também crescem os investimentos em fósseis. “Por quê? Porque não estamos substituindo as fontes, estamos só adicionando novas fontes em função do incremento da demanda de energia no mundo”. Ela explica que essa demanda não resulta apenas do crescimento populacional ou das cadeias de inovação em tecnologia. É consequência do aquecimento global que provoca calor e frio extremos.
Segundo a ex-ministra, 90% do aumento da demanda de energia no mundo nos últimos tempos decorreram das temperaturas extremas. De um lado, as pessoas se protegem do calor com ar refrigerado; de outro, se protegem do frio com aquecedores. “A geração de ambos, calor e frio, é altamente demandante de energia, de minerais estratégicos e de recursos naturais”, diz.
Soluções para a mobilidade
De acordo com Teixeira, o Brasil tem as soluções para a descarbonização da cadeia da mobilidade no Sustainable Aviation Fuel (SAF), nos biocombustíveis e no biometano – e tudo isso será destacado durante a COP 30. A seu ver, a Conferência do Clima a ser realizada em novembro em Belém (PA), será estratégica não apenas pelos 10 anos do Acordo de Paris, mas porque se voltará ao tema da implementação de ações climáticas. “Há um esgotamento da sociedade global em relação a negociações. As pessoas estão expostas ao risco climático e sinalizam que querem se voltar para as soluções”, argumenta.
Mudança cultural
Victoria Flores, ministra de Meio Ambiente e Economia Circular de Córdoba, na Argentina, acredita que as soluções circulares e descarbonizadas de mobilidade exigirão uma mudança cultural na América Latina, especialmente na forma como se consome energia e como se valoram os recursos naturais na região.
“A América Latina é o maior reservatório de recursos naturais do planeta e creio que a chave para transitar para a economia circular está no desenvolvimento de políticas públicas que promovam essa mudança no modelo cultural”, afirma Flores.
Ela conta que a província de Córdoba busca incrementar parceiras com a iniciativa privada da forma mais pragmática possível. “Quando lidamos com o capital privado, custo é custo. É preciso deixar de lado o romantismo do ‘cuidado com o planeta’”.
Flores diz ainda que o setor privado espera que o Estado crie condições favoráveis e forneça previsibilidade, por meio de políticas públicas, para liberar investimentos. A ministra acredita que a parceiria com a iniciativa privada em Córdoba contribuirá para impactar positivamente o meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas, com geração de novas e melhores frentes de trabalho.
Custos competitivos
O vice-presidente de Desenvolvimento de Negócios da Atvos, Caio Dafico, enxerga três grandes alavancas para o Sul Global conseguir impulsionar e acelerar a transição energética, sobretudo com base nos biocombustíveis. A primeira é ter a capacidade de fornecer combustível de baixo custo, uma vez que qualquer combustível, renovável ou não, passa pela questão da competitividade. “Não adianta desenvolver soluções que podem ser muito boas do ponto de vista de redução de emissão de carbono, mas se forem muito caras não encontrarão mercado consumidor”, diz
A segunda alavanca é o incremento de práticas sustentáveis na cadeia dos biocombustíveis. Segundo Dafico, existe muita oportunidade para melhorias, por exemplo, nos plantios e no manejo do solo, bem como nas reduções das emissões de carbono. A terceira é a expansão da oferta de biocombustíveis. Dafico entende que ainda existem oportunidades para expandir o portfólio de produtos de baixo carbono, especialmente a partir de resíduos para a produção de biometano e biofertilizantes, o que vai ao encontro do conceito de circularidade.
Setores naval e aeroespacial
O setor marítimo também terá sua cota de contribuição para a transição energética global. O diretor de Transição Energética da Be8, Camilo Adas, conta que a Organização Marítima Internacional, (IMO na sigla em inglês), instituição da ONU com 176 estados membros, decidiu recentemente criar uma sobretaxa de embarcações cujas emissões de carbono ultrapassem a meta estipulada pela própria IMO.
A sobretaxa, segundo ele, será lançada em 2027, com cobrança prevista para 2028, e os recursos serão usados no financiamento da transição energética. Adas afirma que o caminho para a descarbonização do setor, nesse caso, também passa pelos biocombustíveis.
Assim como a indústria naval, o setor aeroespacial enfrenta a necessidade de descarbonização. Tarcisio Soares, gerente sênior de Estratégia e Negócios da Airbus, afirma que não existe uma bala de prata e que o setor vem trabalhando em ações distintas, especialmente em eficiência. Ele diz que as aeronaves atuais, se comparadas às da década de 1970, por exemplo, são muito mais eficientes porque, sendo mais leves, conseguem transportar a mesma quantidade de pessoas, utilizando apenas 25% do combustível que se queimava no passado.
Quanto à descarbonização da indústria aeroespacial, Soares informa que o setor estuda atualmente a possibilidade do uso do SAF em aeronaves, o que contribuiria com uma redução de cerca de 80% das emissões de carbono se comparado com combustível fóssil. Além disso, o SAF é um produto que não exigiria adaptação das aeronaves. Entre os desafios, citou o alto custo de produção e a falta de regulamentação do setor.
Segundo ele, o Brasil já tem uma primeira lei que permite a comercialização do SAF, e a Airbus está envolvida nesse “quebra-cabeça complexo” junto aos produtores e aos clientes. Nas operações internas, a Airbus tem aumentado a utilização desse combustível. “Em 2023, foram 13 milhões de litros, em 2024, 15 milhões de litros, e queremos chegar a 18% das nossas operações utilizando o SAF até 2030”, informa Soares.
Eletrificação ou biocombustíveis
Há uma discussão no mundo sobre as vantagens de eletrificar ou usar biocombustíveis como forma de tornar a mobilidade mais sustentável. Carlos Mauricio Cordero Vega, diretor da Secretaria de Planejamento Setorial do
Ministério do Ambiente e Energia da Costa Rica, afirma que esse não pode ser um debate simplista e binário, pois é uma decisão que depende do contexto geográfico e econômico e das assimetrias territoriais e regionais.
Enquanto nos países do Norte fala-se muito em eletrificar todo o sistema de transporte, no Sul Global uma eletrificação total seria impossível, pois não se alcançaria a totalidade dos territórios. “Eu venho de um país muito pequeno, com 5 milhões de habitantes e, mesmo lá, seria muito complicado eletrificar todas as áreas. Imagine no Brasil, com suas dimensões continentais”, afirma Veja.
A Costa Rica já instalou infraestrutura de eletrificação para a mobilidade de ponta a ponta do país e não conseguiu abarcar todos os seus territórios – mas nem era o objetivo. Para ele, a eletrificação para recarga rápida de baterias deve ocorrer apenas em cidades grandes, com potencial para oferecer boa infraestrutura.
Em regiões mais longínquas, o benefício dos biocombustíveis é indiscutível, principalmente em países nas dimensões do Brasil. “Além de descarbonizar a atmosfera, o biocombustível também favorece cadeias socioprodutivas mais sustentáveis, gerando, ao mesmo tempo, um impacto ambiental e social positivo com mais empregos onde mais se precisa”, afirma o gestor.
Soluções tecnológicas
Para Daniel Motta, gerente de Inovação e Tecnologia do Senai-SP, a necessidade de desenvolvimento tecnológico está presente em todas as soluções para a transição energética. Motta trabalha especificamente em um projeto de etanol de segunda geração (combustível produzido a partir do bagaço da cana), em parceria com a Raízen, para o desenvolvimento de duas iniciativas: a estruturação de um centro de bioenergia em Piracicaba (SP), que se dedicará principalmente à pesquisa, visando redução dos custos de produção; e grandes projetos de P&D relacionados ao desenvolvimento de novos produtos a partir do etanol de segunda geração. Juntas, as iniciativas somam investimentos de US$ 21 milhões.
Já o Instituto Senai de Inovação em Eletroquímica está liderando projeto para a produção nacional de baterias de íon-lítio que poderão ser usadas, por exemplo, em carros elétricos e outros veículos low speed como patinetes. Trata-se do primeiro projeto estruturante do Brasil. De acordo com Jean Bassani, pesquisador sênior do Senai, esse trabalho ocorre por meio de uma parceria do Senai com a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). “Para criarmos toda essa estrutura de produção de baterias de íon-lítio aqui do Brasil foram captados junto a iniciativa privada R$ 680 milhões”, afirma.
*Por meio de parceria com a Fiesp, a Página22 cobriu o WCEF2025