Muitas vezes vista apenas como um processo ambiental, a regeneração não vive isolada do mundo político, econômico e social. Talvez a maior consequência não planejada das ações de Trump tenha sido lançar ainda mais luz sobre as potências emergentes do Sul Global, onde o Brasil terá a oportunidade de mostrar, especialmente durante a COP 30, o que entende por regeneração e de que forma vai se proteger de investidas como o PL da Devastação
Por Yago Roese*
O momento pede ação. A regeneração, muitas vezes vista apenas como um processo ambiental, não vive isolada do mundo político, econômico e social. Ela habita suas entranhas. Onde muitas vezes só se enxerga sombra, é lá que a decomposição (ou recomposição) dos nossos sistemas acontece. É assim na natureza.
Esta semana, os líderes do mundo saíram das sombras para admitir que estamos em regeneração. Os EUA impõem taxas a países numa espécie de guerra comercial global. O Brasil se levanta e diz: respeito, nações possuem soberania. A China demonstra uma postura diplomática única na história.
O que surpreende nas ações de Donald Trump são as consequências não intencionais. O Brasil reconhece seu valor. Trump recua porque precisam de suco de laranja. Agora correm atrás de carne com a Argentina e a Austrália, que talvez não supram a demanda da potência americana. Lula sentou com China e México nos últimos dias para novas alianças estratégicas — o mesmo que líderes de todo o mundo estão fazendo neste momento: redesenhando relações comerciais.
Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o Projeto de Lei (PL) de licenciamento ambiental (nº 2.159/2021), conhecido como PL da Devastação, sentava-se à mesa da presidência da República para aprovação ou veto parcial. Em 2025, ano da COP em Belém, no estado amazônico do Pará, o Brasil não é apenas palco da discussão global sobre o clima, no momento em que mais precisamos agir diante da mudança climática: é a roda por onde essa conversa está passando.
Na última sexta-feira (8/8), o presidente Lula vetou parcialmente o PL que desmontava as já escassas estruturas de fiscalização ambiental. Agora, o texto volta ao Congresso. O argumento da oposição em favor da desburocratização é compreensível; o problema está na ótica extrativista e na monocultura dos argumentos. Não é preciso explorar os recursos naturais quando aprendemos a nos relacionar com os sistemas vivos dos quais fazemos parte. No campo econômico, modelos agroflorestais na Amazônia já têm se mostrado mais rentáveis que a pecuária e a soja.
O fato é que todos esses movimentos colocam o Brasil como um país central na discussão sobre como escolheremos viver daqui para frente: em relação à Terra e aos sistemas vivos que nela habitam, ou perpetuando o modelo extrativista que continuamente revela suas falhas.
O governo brasileiro promete lançar um programa de regeneração durante a COP, em novembro. Lá, poderemos ter uma ideia do que esse Brasil regenerativo pode se tornar ou, ao menos, de como o atual governo está enxergando a regeneração.
A mudança no peso dos Hemisférios na mesa geopolítica
Quando olhamos para os mapas abaixo, que mostram o principal fornecedor de bens manufaturados para cada país do mundo — com os Estados Unidos em azul e a China em vermelho, em dois momentos da história (2000 e 2024) — compreendemos Trump. A questão é: quando as sombras veem a luz, eventualmente você é pego de calças curtas; e é ali que as fraquezas vêm à tona.
Domínio do Comércio Global: EUA versus China
Em 2000, o comércio dos EUA totalizou US$ 2 trilhões – mais de quatro vezes os US$ 474 bilhões da China. De 2020 a 2024, o comércio dos EUA cresceu 167% (CAGR de 4,2%), enquanto o comércio da China cresceu 1.200% (CAGR de 11,3%), superando o dos EUA em 2012. Em 2024, o comércio total atingiu US$ 5,3 trilhões para os EUA e US$ 6,2 trilhões para a China.


Observação: Comércio de mercadorias significa exportações mais importações. Fontes: U.S. Census, Customs of China. www.econovis.net
O professor de Relações Internacionais Richard D. Wolff, da universidade The New School, afirma:
“O Império Americano acabou. Estamos acabados, atingimos o auge por volta de 12 a 15 anos atrás e agora estamos em declínio. E isso é muito difícil para os americanos. Eu entendo, eu sou um. É difícil absorver isso. Tivemos um século de ascensão, o que é muito mais divertido do que o caminho para baixo. Mas isso acontece em todos os impérios.”
É importante notar que isso não significa que os EUA deixarão de ter relevância, mas que a natureza do seu poder já não é a mesma. Os impérios do Norte Global — principais arquitetos dos modelos econômicos, culturais e sociais que moldam a atualidade — enfrentam agora um declínio que eles próprios denominam degrowth (decrescimento).
Ironicamente, talvez a maior consequência não planejada das ações de Trump tenha sido lançar ainda mais luz sobre as potências emergentes do Sul Global. O que está em curso não é apenas uma reconfiguração das relações comerciais, mas uma narrativa em transformação.
As escolhas que fizermos hoje serão decisivas para os próximos capítulos dessa história — e, inclusive, para a redefinição do conceito de crescimento, que para os povos originários, antes da colonização, possuía um significado radicalmente distinto.
Esse palco revela que a história não terminou como imaginávamos. Em Onde Aterrar: como se orientar politicamente no Antropoceno (2017), o sociólogo Bruno Latour expõe o aparato que nos foi imposto: “o de achar que o capitalismo havia vencido o comunismo e que nossa história terminava ali.”
E é justamente por isso que o monocultivo, enquanto forma de pensar, é perigoso: é necessário sair do antagonismo para compreender o mundo em que vivemos.
Trump, Xi Jinping. Lula, Bolsonaro. Capitalismo, Comunismo. Democracia, Autocracia. Polaridades são forças opostas pelas quais intensidades se cruzam e se manifestam. Compreender ambas como parte da natureza humana é fundamental para avançarmos numa reflexão: talvez, ainda, nenhuma dessas palavras defina o que somos enquanto humanidade — e tampouco devam indicar o caminho a seguir.
Como disse Orion Lyons, ancião indígena norte-americano do povo Haudenosaunee: “Ainda estamos aqui.”Escolher o que fazer passa também pela racionalidade que construímos e da qual nos orgulhamos enquanto civilização.
Ainda estamos aqui. Podemos escolher como seguir. Espiritualmente. Racionalmente. Emocionalmente. Intencionalmente.
*Yago Roese é publicitário, fundador e CEO da Purpy, consultoria global dedicada à regeneração. Com mais de 15 anos de experiência, atua na convergência entre sabedoria ancestral, design regenerativo e liderança executiva. É co-idealizador do projeto Aldeia do Futuro, iniciativa de apoio ao povo Huni Kuī, no Acre.
Bibliografia:
FINANCIAL TIMES. ‘A new world’: Trump’s tariff regime takes effect. Disponível em: https://www.ft.com/content/3c85e34f-d28f-42d6-8a4b-a718694f847d. Acesso em: 11 ago. 2025.
THE GUARDIAN. Trump is losing his foolish trade war. This will cost ordinary Americans greatly. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2025/aug/11/trump-losing-trade-war. Acesso em: 11 ago. 2025.
AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Lula sanciona novo licenciamento ambiental com 63 vetos. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1186832-lula-sanciona-novo-licenciamento-ambiental-com-63-vetos/. Acesso em: 11 ago. 2025.
ROCHA, A. et al. Agroflorestas unem produção à natureza e superam renda da soja na Amazônia. UOL, 12 set. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/09/12/agroflorestas-unem-producao-a-natureza-e-superam-renda-da-soja-na-amazonia.htm. Acesso em: 11 ago. 2025.
FRANCEZ, Rosa. Trabalho e renda em sistemas agroflorestais estabelecidos por agricultores familiares na Amazônia Oriental. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 15, n. 1, p. 1-21, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/cepec/article/view/6864. Acesso em: 11 ago. 2025.
Visual Capitalist. How China Overtook U.S. in Global Trade Dominance (2000–2024). Visual Capitalist, 2024. Disponível em: https://www.visualcapitalist.com/cp/how-china-overtook-u-s-in-global-trade-dominance-2000-2024/. Acesso em: 11 ago. 2025.
WOLFF, Richard D. The End of the US Empire and the Denial of the US, and the Rise of China and BRICS. Scheerpost, 15 nov. 2024. Disponível em: https://scheerpost.com/2024/11/15/richard-wolff-the-end-of-the-us-empire-and-the-denial-of-the-us-and-the-rise-of-china-and-brics. Acesso em: 11 ago. 2025.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar: como se orientar politicamente no Antropoceno. São Paulo: Bazar do Tempo, 2017.
Oren Lyons. To Survive, We Must Transform Our Values. YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gj5bxLEoL0M. Acesso em: 11 ago. 2025.