A Conferência representa uma oportunidade de aproximar o debate climático das demandas por sistemas de saúde mais resilientes. Algumas das principais referências dessa agenda reúnem-se em webinário e reforçam a necessidade de um reconhecimento formal da medicina indígena no SUS
Por Magali Cabral
A COP 30, a ser realizada de 10 a 21 de novembro em Belém, abre uma oportunidade para mudar a lógica de tratar a saúde como um capítulo à parte da crise climática. “Já está na hora de encarar a saúde como um eixo estruturante das estratégias de mitigação e adaptação à mudança do clima”, afirma Isabela Ramos, analista de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).
Ramos mediou o webinário “O que a saúde tem a ver com a COP 30?”, produzido por Uma Concertação pela Amazônia, Ieps e Página22, em 9 de outubro. No encontro, lideranças indígenas, pesquisadores e gestores públicos debateram como a crise climática já afeta o cotidiano das comunidades amazônicas e os sistemas de saúde – e quais seriam suas demandas à Conferência do Clima, caso pudessem levá-las diretamente aos negociadores.
Participaram do encontro Sila Mesquita Apurinã, presidente do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Amazônico (IPDA); Putira Sacuena, diretora do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena, vinculado ao Ministério da Saúde; Gersem Baniwa, doutor em Antropologia Social e professor associado da Universidade de Brasília (UnB); e Emerson Soares dos Santos, coordenador geral de Mudanças Climáticas e Equidade em Saúde do Ministério da Saúde.
A abertura foi feita pela gestora de Conhecimento da Concertação, Geórgia Jordão. Ela destaca que, pela primeira vez, a COP reunirá especialistas, lideranças indígenas e representantes da sociedade civil em torno de uma agenda voltada a tornar sistemas de saúde mais resilientes, capazes de responder aos desafios da emergência climática.
Sila Mesquita Apurinã abriu os painéis lembrando que as comunidades da Amazônia vivem na linha de frente da mudança climática e fez um chamado aos governos e à comunidade internacional para que de fato mantenham a saúde – especialmente a dos povos e comunidades tradicionais – no centro das discussões da COP 30. Recém-chegada de uma conferência que reuniu 26 povos indígenas de todas as regiões do Brasil, ela relata os principais problemas ouvidos: o avanço de doenças infecciosas, o sofrimento mental causado por eventos extremos e a falta de políticas públicas adaptadas à realidade dos territórios.
“Eu mesma já peguei malária, dengue e covid. É muito doloroso para o corpo”, relata. Segundo ela, essas doenças continuam se espalhando porque a mudança do clima favorece a proliferação de vetores, contribuindo especialmente para o aumento de casos de dengue, malária e chikungunya.
O sofrimento não é só físico, mas também social e mental, e afeta o equilíbrio das famílias. “Pouco se fala sobre isso, mas o sofrimento psicossocial é real e tem crescido nas comunidades mais expostas aos eventos climáticos”, conta Sila Apurinã.
Ciência tradicional
A liderança Apurinã também ressalta o papel central das práticas tradicionais na busca por soluções para a crise climática. “Nossos conhecimentos ancestrais estão ligados diretamente ao meio ambiente e podem contribuir muito no enfrentamento do aquecimento global. Essa junção de saberes e conhecimentos junto com a Academia é muito importante”, afirma.
Sobre a ideia recorrente de que os povos indígenas têm as soluções para a crise ambiental, a antropóloga e biomédica do povo Baré, Putira Sacuena, faz uma ressalva: “Isso me preocupa, porque nós só somos chamados ao diálogo quando o caos já está instalado”.
Para ela, evitar o caos exige escuta verdadeira: é preciso sentar à mesma mesa com indígenas, ribeirinhos, quilombolas, e extrativistas, reconhecendo que a noção de saúde nos territórios indígenas é muito mais ampla. Envolve dimensões espirituais, ambientais e culturais que também precisam ser reconhecidas como indicadores de saúde. “Por exemplo, se o sapinho que segura o céu deixa de aparecer no Xingu e se as borboletas deixam de voar em certos períodos, são sinais de que algo está muito errado – esses são os nossos indicadores de saúde”, diz a biomédica.
A partir dessa visão, Putira Sacuena destaca a importância da criação do Programa Nacional de Medicinas Indígenas, política em construção que tem como objetivo reconhecer formalmente os sistemas médicos indígenas como parte integrante do SUS e valorizar as tecnologias de cuidado tradicionais existentes nos territórios. “Essas práticas não são saberes tradicionais apenas, são ciências. E precisam ser reconhecidas como tal”, sustenta. A biomédica também chama a atenção para o aumento de doenças como a malária e outras infecções decorrentes das invasões e da degradação ambiental nos territórios.
Ela defende a participação ativa das mulheres indígenas na formulação de políticas para o sistema de saúde em tempos de crise climática. “Discutir saúde e clima sem elas será outra contradição. Como diz Cintia Guajajara [Marina Cintia da Silva Guajajara é professora, ativista, liderança do povo Guajajara e vice-coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas do Maranhão] não dá para falar de bem viver sem as mulheres. Somos nós as maiores fomentadoras de ciência”.
“A gente não cuida, só descuida”
Enquanto Sila Mesquita clama por um foco permanente no tema da saúde e Putira Sacuena pelo protagonismo das mulheres indígenas, o antropólogo Gersem Baniwa alerta para o risco de a COP 30 repetir uma lógica tecnicista — buscando uma magia matemática, econômica ou política para os desajustes climáticos, sem olhar para a doença mais profunda da humanidade: o afastamento da natureza.
“Quando falamos em crise climática, estamos falando de uma doença. A natureza está doente e cambaleante porque a humanidade está doente”, afirma Baniwa. “E a doença que mais me preocupa é a cultural, uma doença de pensamento.”
Para ilustrar essa ideia, o professor da UnB recorre ao conceito de “cosmofobia”, criado pelo pensador quilombola Nêgo Bispo (Antônio Bispo dos Santos – 1959-2023), que descreve o desprezo pela natureza. Segundo ele, essa doença de pensamento é herança de uma visão teológica que condenou a natureza a partir do mito de Adão e Eva. O Ocidente passou séculos tratando a natureza como amaldiçoada, e isso gerou uma humanidade que não se reconhece como parte do mundo natural.
Gersem Baniwa acredita que a COP não discutirá a preservação e o amor à natureza, mas abordará tão somente a redução da destruição sob prismas econômicos, tecnológicos e políticos. Perde-se, com isso, o valor do cuidado. “Não temos mais nenhum cuidado com a natureza porque não temos mais nenhum afeto e carinho por ela. Então, a gente não cuida, só descuida.”
Para os povos indígenas, toda fonte de cura e de saúde vem da natureza. Ou seja, só pode haver saúde profunda se a natureza estiver saudável e a natureza só estará saudável se os humanos aprenderem a coexistir. “Eu acho muito simples aprender com essas sábias lições que nossos ancestrais indígenas nos deixaram aqui na América. A continuidade da vida, da existência no mundo depende dessa interação e desse compartilhamento”, explica Gersem Baniwa.
Plano de ação
Durante sua participação no webinário, Emerson Soares dos Santos, coordenador-geral de Mudanças Climáticas e Equidade em Saúde do Ministério da Saúde adiantou detalhes sobre o Plano de Ação em Saúde de Belém, iniciativa global liderada pelo Brasil para fortalecer a resiliência dos sistemas de saúde diante da mudança do clima.
A proposta coloca a saúde no centro das negociações climáticas e é resultado de um processo que, segundo Santos, vem sendo construído desde conferências anteriores. O Brasil, agora em posição de protagonismo, coordena a elaboração do documento, que será lançado oficialmente em 13 de novembro, dentro da programação do Dia da Saúde da Conferência em Belém.
Santos explica que o Plano surge no âmbito do Eixo 5 da agenda da COP 30, dedicado ao desenvolvimento humano e social, e representa um ponto de virada nas negociações climáticas, pois propõe sistemas de saúde mais resilientes aos impactos da crise ambiental.
“O plano funciona como um grande guarda-chuva integrador de soluções em adaptação, vigilância em saúde, inovação tecnológica e fortalecimento de políticas multissetoriais”, resume Emerson dos Santos.
Para acelerar sua implementação, foi criado o Grupo de Ativação da Saúde, que reunirá governos, sociedade civil e instituições científicas com o objetivo de impulsionar ações concretas. O plano é orientado por três princípios transversais: equidade em saúde, justiça climática e governança participativa.
“Ter um dia específico para discutir isso é um ganho enorme. É a primeira vez que o tema ganha tamanha relevância dentro de uma COP”, afirma Santos. “Em essência, trata-se de um chamado à ação, um verdadeiro ‘mutirão’, palavra de origem indígena que simboliza união e cooperação. O mundo inteiro está conhecendo esse conceito de mutirão e é isso que queremos ver – todos trabalhando juntos, cada um à sua maneira, para alcançar um objetivo comum”.
Mensagens para a COP 30
Durante o webinário, os participantes foram convidados a responder: se você pudesse fazer um pedido na COP sobre saúde e Amazônia, qual seria?
A pesquisadora Putira Sacuena pediu o reconhecimento das tecnologias de cuidado em saúde desenvolvidas nos territórios indígenas e tradicionais como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). “E que nossas especialistas, como as parteiras, sejam reconhecidas como profissionais e tenham acesso aos hospitais com suas tecnologias e especificidades”.
O Programa Nacional de Medicinas Indígenas representa, para ela, esse avanço, pois traz o olhar diferenciado, com indicadores próprios baseados em práticas medicinais tradicionais. “Nós não estamos mais falando apenas de respeitar os povos indígenas, mas de reconhecer que há ciência e resolutividade dentro dos territórios. Temos respostas não só para doenças biológicas, mas também para doenças do território”, conclui.
A liderança Sila Mesquita Apurinã gostaria de ver a partir da COP 30 investimentos efetivos em saúde básica acontecendo nos territórios amazônicos. “Quem viaja pela Amazônia percebe a ausência da saúde pública nos territórios. Faltam profissionais, logística e estrutura. Falar de saúde pública na Amazônia é falar de desafios específicos, que precisam ser considerados e trabalhados com investimento federal”, afirma.
Sila Apurinã faz um apelo por coerência entre discurso e prática na COP 30. Em sua opinião, o patrocínio de grandes mineradoras, justamente as responsáveis por impactos ambientais e doenças na região, não faz sentido. “É triste pensar que uma COP na Amazônia possa ser financiada por quem mais causa destruição e doença.”
Para Emerson Santos, o pedido central seria a efetiva implementação dos planos já elaborados pelo governo brasileiro. “O Plano de Adaptação do Setor Saúde do Brasil e o Plano de Saúde da Amazônia Legal, que serão apresentados na COP 30, trazem metas e ações importantes. Meu pedido é que consigamos articular ministérios, estados, municípios e comunidades para que essas ações saiam do papel e cheguem aos territórios”, diz.
O pedido à COP de Gersem Baniwa é para que o evento assumisse a responsabilidade global de reconhecer os direitos da natureza, associados aos direitos humanos, e que a saúde e a educação estivessem compreendidas como pilares dessa relação equilibrada. “A única forma de assegurar isso é recolocando o ser humano no seu devido lugar, que é no interior da natureza, na interdependência dessa natureza. De outro modo, como já disse, não acho que será possível reverter a crise climática”.
Apesar das diferentes origens e trajetórias, os quatro participantes concordam em um ponto essencial: não há saúde sem as práticas dos territórios e sem natureza viva. Reconhecer conhecimentos tradicionais como ciência, investir em políticas públicas coerentes, tirar do papel os planos de adaptação e assumir um compromisso global com os direitos da natureza são parte de um mesmo chamado à ação. Na Amazônia, falar de saúde é também falar de florestas, águas e modos de vida, e a COP 30 é um espaço sob medida para transformar essa compreensão em compromissos reais.