Na luta contra o preconceito, ser politicamente correto talvez mais atrapalhe do que ajude
Meu filho estuda em uma escola cheia de pais como eu – classe média alta, meio intelectual, meio de esquerda, hippiechique, conscientes dos problemas globais, preocupados com a desigualdade social. Todo mundo ali é bem-intencionado, quer melhorar o país e o mundo, tem um trabalho descolado, usa crocs e tem pele bonita.
Claro que a escola é construtivista, nem precisava dizer. Pois o tema de estudo deste ano é África. As crianças estão sendo apresentadas ao continente por meio de um livro infantil que conta a história de um menino no Chade. Meu filho já chegou em casa com carro feito de latinha. Outro dia me trouxe um colar de estopa, muito colorido e bonito.
Na última reunião de pais, a professora mostrou o livrinho, página por página, para nós, pais, conhecermos um pouco o que nossos filhos andam fazendo enquanto a gente trabalha para melhorar o país e o mundo. Lá pelas tantas, uma mãe muito consciente e preocupada com a humanidade atentou para o cuidado que é preciso ter ao tratar de tema tão delicado: “Como a escola está lidando com a questão do preconceito racial, considerando que nossos filhos não convivem – infelizmente – com crianças de cor negra?”
A coordenadora, com uma paciência de dar inveja a Jó, respondeu que o tema é tratado justamente trazendo para o dia a dia das crianças uma história cujo protagonista é negro. (Da série Respostas Cretinas Para Perguntas Imbecis). Do outro lado da sala, uma mãe insistiu: “Concordo que o tema é bem delicado, pois minha filha nunca tinha falado nada sobre a faxineira, até que outro dia ela falou na frente da moça: ‘Olha!, você é marrom!’” A mãe ficou constrangida: “Não sei nem por que ela falou isso, pois a moça nem negra é… ela é mulata… na verdade, nem mulata ela é… ela é assim, como vou dizer…” Enquanto ela buscava, sem sucesso, a palavra correta, um pai perguntou, maroto: “…ela é marrom?” A turma riu e a reunião acabou.
Realmente, o tema é difícil. O mundo vem mudando quanto a isso, mas às vezes tenho dúvidas se a onda politicamente correta mais atrapalha que ajuda.
Preconceitis
Quando era criança, um dos meus ídolos era o Mussum, dos Trapalhões. Não perdia um episódio, nas velhas tardes de domingo na Globo. Outro dia fui rever, no YouTube, algumas cenas clássicas do humorista que eu mais amei na infância, e fiquei perplexa. O Mussum simplesmente não existiria hoje em dia. Um personagem negro, bêbado e que falava errado, fazendo apologias semanais ao álcool no programa infantil mais famoso da televisão brasileira. Definitivamente, o mundo mudou.
No meu tempo de faculdade, o preconceito era tratado de uma forma bastante peculiar. Ao contrário do mundo politicamente correto aqui de fora, no curso de Geologia o que cada um tinha de diferente não era tratado com o cuidado cirúrgico dos dias de hoje, mas escancarado. Lá, todo mundo era conhecido não pelo nome, mas por apelido. É narigudo? Tamanduá. Tem perna comprida? Seriema. É pálida e esquálida? Mortiça. É negro? Feijoada. Usa aparelho? Fepasa. É velho? Brotinho. Hoje, talvez isso fosse considerado bullying e seríamos obrigados, por liminares judiciais, a nos chamar de Leonardo, Daniela, Marcelo.
Não sei se nossos apelidos prejudicavam nossa identidade, nos desrespeitavam, feriam nossos direitos individuais. (Não sou cientista social ou antropóloga, sou geóloga). Mas, para mim, aquilo foi o começo de uma grande experiência de reconhecimento e respeito ao diferente, ao outro. Ao escancarar nossas peculiaridades, nos desprendíamos de nossos preconceitos pelo avesso. Nunca vi um curso tão diverso, com pessoas tão diferentes, de várias partes do país, de várias classes sociais, raças, crenças e opções sexuais, estreitarem laços e conviverem tão intensamente. Nomeando nossas diferenças, chegávamos a algum estranho campo de aceitação sobre elas.
Não ouso recomendar a técnica de apelidamento cruel para toda a sociedade, nem a reprodução do Mussum em horário nobre. Mas é nítido o desajeito das pessoas com o tema do preconceito. Ainda não sabemos lidar com o assunto. Talvez a gente só consiga testar verdadeiramente nossos preconceitos quando tivermos efetivamente diversidade social, racial e sexual. Somente quando a escola do meu filho tiver mais, muito mais meninos negros e marrons, é que poderemos verdadeiramente julgar a dificuldade daquela mãe perante a constatação da filha.
Uma coisa é clara: o preconceito não vai conseguir ser superado apenas com leis ou regras sociais impostas pela bandeira do politicamente correto. O convívio com o diferente não pode ser um casamento por conveniência. Ele precisa ser um casamento por amor. Amor ao próximo. Teoria de botequim: na Geologia, éramos cruéis uns com os outros, mas nos amávamos. Já ajuda.
*Pesquisadora do Gvces e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela London School of Economics and Political Science.