Em meio a divergências, iniciativas pretendem avaliar o desempenho da indústria de alimentos e bebidas no combate e na prevenção a problemas de saúde
Os relatórios de sustentabilidade mostram uma imagem bem positiva da indústria de alimentos e bebidas. O setor, que faturou R$ 388,7 bilhões em 2011, coleciona certificações e premiações. Documento da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) produzido para a Rio+20 chama atenção para o uso de fonte renovável acima da média nacional – 75,2% da energia do setor, por exemplo, vem do bagaço de cana-de-açúcar. Celebra ainda as metas para o uso racional da água, os compromissos contra o desmatamento ilegal e o trabalho infantil, os projetos de crédito de carbono e a reciclagem de embalagens. Mas, do ponto de vista da saúde pública, isso não basta. É cada vez mais cobrado das empresas um bom desempenho também no combate a questões como desnutrição, má nutrição e obesidade.
Um índice de acesso à nutrição (ATNI) – com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2013 e financiado pela Aliança Global para Nutrição Aprimorada (Gain, na sigla em inglês), a Fundação Bill e Melinda Gates e a Welcome Trust – está sendo desenvolvido especificamente para avaliar em que medida as atividades dessa indústria têm potencial para melhorar o quadro global de problemas alimentares. Parte-se do princípio de que as grandes empresas, por suas dimensões globais, podem contribuir no combate a esses problemas, que envolvem 1,4 bilhão de pessoas com sobrepeso ou obesidade, 2,8 milhões de adultos mortos anualmente devido à obesidade e 3,5 milhões de crianças mortas por desnutrição todos os anos.
A vantagem de investir na prevenção de problemas nutricionais, segundo um documento do ATNI disponível em seu site, seria dupla. Por um lado, oferecer produtos mais saudáveis nos países ricos e maior variedade de produtos prontos para o consumo nos países em desenvolvimento seria uma forma de atender a uma demanda crescente dos consumidores nesses lugares. Por outro, a reformulação de produtos, tornando-os mais saudáveis, evitaria medidas regulatórias impostas por governos e a associação das marcas a impactos negativos na saúde. O documento assegura que as empresas que aproveitam essas oportunidades e evitam esses riscos têm maior chance de sucesso duradouro.
O texto sugere que a receita de sucesso envolve: redução de ingredientes de efeito negativo (gordura trans, gordura saturada, sódio e açúcar) e acréscimo de ingredientes de efeito positivo (vitaminas sintéticas, fibras e sabor) aos alimentos e bebidas industrializados; marketing e propaganda que respeitam as regras e acordos locais, incluindo aqueles que restringem a promoção de substitutos do leite materno; rotulagem correta; campanhas de promoção de estilos de vida saudáveis; integração do enfoque nutricional em suas estruturas de “governança nutricional”, ou seja, a forma de a empresa planejar e integrar ações que efetivamente influenciem o ambiente alimentar em seus mercados; preços acessíveis para produtos nutritivos, principalmente na Índia, África do Sul e México [1] ; alinhamento com políticas públicas e programas de qualidade de vida para funcionários.
[1] Países escolhidos por terem simultaneamente números preocupantes de desnutrição e doenças crônicas associadas à obesidade
Para as avaliações, o ATNI seguirá consensos internacionais estabelecidos, como as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e modelos conhecidos de aferição de práticas ambientais, sociais e de governança. As empresas que cumprirem as recomendações terão nota zero; as que não cumprirem perderão pontos. As que desempenharem além do esperado entrarão em rankings periódicos do indicador.
Inicialmente, participarão as 25 maiores empresas de processamento de alimentos e bebidas do mundo e as 10 maiores dos países emergentes citados acima. Ficarão de fora empresas menores que eventualmente contribuam para a boa alimentação e temas controversos, como o patrocínio a eventos esportivos.
Por trás dessa metodologia há especialistas em nutrição e saúde dos Estados Unidos, Índia, África do Sul e México, liderados por Shiriki Kumanyika, professora de epidemiologia na Universidade da Pensilvânia. A equipe não dará entrevistas antes do lançamento oficial do ATNI. Não sabemos exatamente como o indicador será aplicado, mas os critérios expostos até agora permitem algumas considerações.
A pedido de PÁGINA22, especialistas independentes comentaram a proposta. Segundo o professor da FEA-USP Ricardo Abramovay, se houve a preocupação com a qualidade da participação de especialistas e grandes organizações globais, então o grupo montado ficou incompleto. “A ausência da Oxfam deixa margem à dúvida, já que ela é a principal organização global trabalhando sobre o tema (da desnutrição), que eu saiba.” (mais sobre nutrição e obesidade em Análise de Abramovay: “O sobrepeso humano”)
Na visão de Tim Lobstein, diretor de políticas e programas da Associação Internacional para o Estudo da Obesidade, o ATNI jamais será aplicado aos alimentos realmente saudáveis, como frutas e hortaliças frescas, carnes magras, peixe fresco etc. “O indicador será aplicado a produtos processados, de marca. Logo, uma nota alta nunca significará que o produto seja saudável, mas sim que é menos nocivo que outros.” (mais sobre industrializados com apelo saudável em “A saudável fábrica de chocolate“)
CONSUMO INDUZIDO
Além disso, Lobstein prevê que as empresas bem colocadas usarão o índice em suas estratégias de marketing, o que levará o consumidor a preferir os produtos da marca que entrou no índice, em detrimento de alimentos frescos, locais e perecíveis. Para Carlos Monteiro, professor do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, embora o ATNI possa trazer algumas contribuições interessantes, peca por apostar nos industrializados como uma via saudável.
Em um artigo publicado na revista World Nutrition, em setembro, Monteiro e o jornalista britânico Geoffrey Cannon explicam por que a reformulação de produtos ultraprocessados, com redução de sódio e gordura trans e adição de fibras e vitaminas sintéticas, não trará as melhorias prometidas à saúde das pessoas.
A tese central dos autores situa no consumo desses produtos a causa maior da epidemia de obesidade e doenças crônicas associadas, portanto não podem ser parte da solução. O artigo sustenta que, por mais que esses produtos sejam aprimorados, continuarão energeticamente densos, pobres em ingredientes integrais e ricos em sal, gordura ou açúcar, pois estes itens ajudam a tornar os produtos processados duráveis e atrativos.
A Abia e algumas empresas foram procuradas para comentar o ATNI, mas apenas a World Nutrition designou um porta-voz, que respondeu por escrito. Outras companhias, como Coca-Cola e Unilever, enviaram relatório por email e links para a página de sustentabilidade. Michel Henrique Santos, gerente de sustentabilidade da Bunge Brasil, escreveu que “toda iniciativa que reforce o relacionamento entre a produção e o consumo deve ser valorizada, desde que viável e reconhecida pelo mercado”.
Em seu relatório de sustentabilidade de 2009, a Coca-Cola destacou o lançamento da Coca-Cola Light Plus, com adição de vitaminas sintéticas e minerais, o que supriria 23% das necessidades diárias de um adulto, podendo, segundo o texto, encaixar-se em um “estilo de vida mais equilibrado e saudável”. Entre as ações de promoção de hábitos saudáveis, a empresa assinalava o espaço reservado nas embalagens para mensagens de incentivo à prática de atividades físicas e a busca por “gerar bem-estar a partir de bebidas refrescantes”.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do Instituto Brasileiro de Geogra a e Estatística (IBGE), o consumo de refrigerantes e sucos está associado a hábitos alimentares com excesso de açúcar e baixa ingestão de fibras e vitamina C. A pesquisa mostra que o consumo médio de refrigerantes e sucos adoçados no Brasil é de 122 ml por dia, e esse número cresce entre os adolescentes. Nos Estados Unidos, pesquisa da Gallup mostrou que quase metade das pessoas toma refrigerante diariamente, e a dose diária entre os mais assíduos passa de dois copos e meio.
Estudos diversos apontam que reduzir ou eliminar o consumo de bebidas adoçadas é uma medida eficaz contra a obesidade. No entanto, entre as oportunidades de mercado identificadas pela Coca-Cola Brasil em 2009 estava a ampliação do consumo de sucos industrializados, considerado no relatório como mercado não maduro, pois muito aquém do americano, de 230 copos per capita por ano. Quanto ao teor de açúcar em seus produtos e sua associação com a obesidade, não existe uma linha sequer no relatório, exceto por um comentário de um acadêmico entre aspas.
DISCUTIR OS CRITÉRIOS
Para Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Instituto Alana [2], os indicadores de práticas corporativas não discutem os critérios das empresas, centrando-se na avaliação das companhias de maneira supostamente imparcial e segundo seus próprios critérios, que não seriam os mais adequados. “Nós achamos que o comprometimento da indústria é importante. Mas não é suficiente, ou não é eficaz isoladamente.”
[2] Organização sem fins lucrativos que defende a restrição ao marketing direcionado às crianças
No relatório de 2011, a anglo-holandesa Unilever declarou promover marketing responsável. Mencionou uma série de documentos que respaldariam a diretriz: uma carta de princípios globais de marketing de alimentos e bebidas que veta publicidade direcionada a crianças abaixo de 6 anos; uma norma interna que permite divulgar a crianças de 6 a 12 anos somente produtos que integrem seu programa de aprimoramento nutricional; o Compromisso Público de Publicidade Responsável; e os limites impostos pelo Conselho Nacional Autorregulação Publicitária (Conar).
Ainda assim, há deslizes. Em 2012, uma propaganda da maionese Hellmann’s para a TV foi contestada por consumidores por sugerir que o produto é mais saudável que azeite de oliva (mais sobre o Conar em “Cerco ao Greewashing”). O relatório da Bunge destaca em 2012 o objetivo de desenvolver margarinas com menos gordura trans como uma forma de atender às necessidades do mercado por produtos mais saudáveis. A redução da gordura trans faz parte de um acordo entre a indústria brasileira e o Ministério da Saúde assinado em 2009, que, segundo a Abia, privou os brasileiros de 230 mil toneladas de gordura trans todos os anos desde então. Mas reduzir não é eliminar. A recomendação da OMS para a gordura trans, presente na Estratégia Global para Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde, documento de 2004 (cinco anos antes do acordo brasileiro), é que ela seja eliminada da dieta.
Coca-Cola, Unilever e Bunge publicam relatórios de sustentabilidade nos moldes da Global Reporting Initiative (GRI), que em 2010 lançou um suplemento específico para a indústria de alimentos com o propósito de avaliar quesitos como a reformulação de produtos, a rotulagem, práticas de marketing e até bem-estar animal. O suplemento, em vários aspectos parecido com o ATNI, foi desenvolvido com a participação de representantes de indústrias do setor, inclusive Michel Santos, da Bunge, e entidades ligadas à sustentabilidade e à educação. Mas ninguém da área de nutrição. Gláucia Térreo, representante da GRI no Brasil, acredita que o suplemento trouxe avanços, mas reconhece que não é perfeito. “Talvez nossa abordagem não tenha sido tão contundente.” A GRI abriu as discussões para o desenvolvimento de sua nova versão de relatório, o G4, entre outubro e dezembro. Por enquanto, participar do debate aberto é a única maneira de influenciar a decisão da maioria.
CONSULTA PÚBLICA
No caso do ATNI, a consulta pública durou três vezes menos: um mês. Dos 84 participantes, 26% eram da indústria interessada e 82% das respostas partiram de países desenvolvidos. As divergências foram relevantes. Sugeriu-se, por exemplo, que produtos específicos não fossem “demonizados”. Sobre a reformulação de produtos, um acadêmico propôs comparar as vendas dos produtos mais saudáveis com as vendas totais da empresa. No tópico sobre a avaliação da qualidade dos relatórios de sustentabilidade, um representante da sociedade civil comentou que não era o relatório que contava, e sim a verificação independente. Está claro que conciliar os interesses da indústria de alimentos com os da sociedade não é tarefa simples. O desenvolvimento do País requer um equilíbrio entre a geração de lucro e a saúde das pessoas, e bons indicadores deveriam ser capazes de medir esse equilíbrio.
Para Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília, não podemos esperar que a solução para os problemas alimentares venha de quem os causa. Segundo a pesquisadora, a solução deveria vir do Estado, sustentada no engajamento das redes sociais. Ela cita estimativas de que o Brasil poderá alcançar os níveis de obesidade dos Estados Unidos (35,9% dos adultos) em apenas 12 anos, se continuar aumentando o consumo de industrializados – crescimento que é turbinado com o aumento da classe média brasileira (mais em “O impacto da nova classe média”). “Precisamos valorizar o alimento de fato”, diz. “Assim como resgatamos o valor do leite materno (que foi ameaçado pelo sucesso comercial das fórmulas infantis), temos de resgatar a comida e nossa soberania.”
Mas, ainda que o Estado tenha papel fundamental, não se pode negar a responsabilidade que pesa sobre os ombros da indústria de alimentos e bebidas.