Mais que se preparar para o pico do petróleo e o aquecimento global, movimento mundial faz com que metrópoles e vilas desenhem uma visão própria do futuro próximo e a coloquem em prática
Num dia como outro qualquer, você dirige seu carro e ele roda suave enquanto usa gasolina. Conforme os quilômetros avançam, o tanque fica quase vazio e você começa a sentir que o combustível está acabando. O carro passa a andar aos trancos e o informa de que é preciso agir rapidamente ou ele vai parar. Logo ali adiante, em um posto de abastecimento, você resolve o problema, e se recorda, aliviado, de que ano após ano a oferta de energia foi sempre crescente. Baseado nessa comodidade reside o costume de ignorar o medidor de gasolina até que ele indique o final do tanque.
É desse mesmo modo que a sociedade industrializada encara a finitude do petróleo, sem atentar para o momento breve em que as reservas estarão meio cheias (ou meio vazias). Será justamente nesse momento de abundância que se dará a virada, conhecida como pico do petróleo. A partir do ápice virá o declínio e as extrações seguintes se tornarão mais caras, mais lentas e gastarão mais energia para obter um petróleo de qualidade inferior. Nesse caso, a tempestade virá depois da bonança.
O pico não se refere ao esgotamento total do combustível, pois sempre haverá um pouco no subsolo, mas indica que, quando for preciso gastar um barril para extrair outro barril, chegaremos, então, ao fim do petróleo barato e perceberemos, de fato, como o nosso modo de vida é absolutamente dependente do petróleo.
Será o caos? Não para as cidades, vilas e bairros que, desde já, estão se articulando para desenvolver sua capacidade de responder aos desafios que a mudança climática e o pico do petróleo imporão: crise na produção de alimentos e no abastecimento de água e de energia. Elas fazem parte do movimento Cidades em Transição, ou Transition Towns, criado pelo inglês Rob Hopkins para transformar desde cidades inteiras até pequenos condomínios em organismos sustentáveis, menos dependentes do petróleo, mais integrados à natureza e mais resistentes às crises externas econômicas e ambientais.
O movimento está presente em 14 países do mundo e já tem mais de 8 mil iniciativas de transição pensando e implementando planos de ações de curto e longo prazo. “O fundamento é que cada comunidade crie uma visão própria do futuro próximo e elabore um planejamento que considera, principalmente, o que pode ser feito agora para ser concluído entre 5 e 30 anos. Isso dá uma enorme motivação e um olhar positivo sobre o que faremos pelo destino das gerações futuras”, explica MarCelo Todescan, articulador das Cidades em Transição Brasil.
Pioneiras em ação
A cidade de Kinsale, na Irlanda, tem 2,3 mil habitantes e começou a transição em 2005, quando Rob Hopkins, então professor de permacultura do Kinsale Further Education College, elaborou, junto com seus alunos, um inovador plano de ação de energia descendente para a cidade. A experiência floresceu pela região e Kinsale ficou reconhecida por ter recebido 5 mil euros do Conselho Municipal para criar jardins comunitários, projetos escolares e panfletos informativos.
Com 8,5 mil pessoas, Totnes foi a primeira cidade do Reino Unido a aderir ao movimento. No início, em 2006, o trabalho esteve voltado para sensibilizar a população sobre os desafios futuros com várias palestras públicas, eventos e sessões de filmes. No ano seguinte, a organização estruturou-se, ganhou escritório próprio e uma equipe para levantar fundos. Desde 2007, Totnes tem sua moeda própria, a libra de Totnes, com valor equivalente à libra esterlina e aceita em mais de 70 estabelecimentos locais, e alguns oferecem descontos em compras com a moeda local. São cafés, butiques, açougues, mercados, barracas de feiras, escolas de dança, farmácias, gráficas. A medida ajuda a fortalecer a economia local, na qual são identificadas novas oportunidades de negócios, produtos e serviços alinhadas ao uso reduzido de energia.
Localizar e articular
Essencialmente, são dois os caminhos para reduzir o consumo de energia e tornar-se uma comunidade mais resiliente: “relocalizar” recursos e atividades e articular a inteligência coletiva da comunidade. O primeiro significa desenvolver, por meio de grupos de trabalho específicos, estruturas e atividades locais nas áreas de alimentação, saúde, lixo, energia, educação, economia, transportes, água, governança local, juventude. O segundo caminho trata de articular e mobilizar grupos de ações novas e já existentes, poder público, empresas, moradores, associações, ONGs e escolas, para facilitar o processo de transição. “Ganha-se sinergia ao se juntar diferentes ações”, diz Todescan.
Na verdade, as Cidades em Transição não estão reinventando a roda – e nem seria preciso, tamanha a quantidade de conhecimento disponível sobre meio ambiente, sociedade e economia. Para criar planos de transição próprios, as comunidades se valem de documentos universais, como Agenda 21, de diretrizes nacionais, de planos diretores municipais, de uma longa lista de filmes e livros, que inclui clássicos como Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore, e de uma série de princípios e práticas que foram criados ao longo do tempo por meio da experiência e da observação de comunidades, à medida que avançavam no desenvolvimento da resiliência local e na redução das emissões de carbono. “Não existe uma receita nem um modelo pronto, afinal, sustentabilidade é um conceito em desenvolvimento que abrange temas ambientais, sociais, econômicos e culturais. Cada localidade descobre e define seus meios para enfrentar os desafios atuais”, alega Todescan.
É na maneira positiva e transparente de abordar problemas e soluções e na metodologia simples e multiplicável que esse movimento tem-se espalhado ao redor do mundo. Em primeiro lugar, reforça que é preciso reconhecer que a mudança climática e o pico do petróleo exigem ação conjunta e imediata. E que a vida com menos energia é inevitável e é melhor ter um plano do que ser pego De surpresa. “Se planejarmos e agirmos em tempo hábil, e usarmos nossa criatividade e cooperação para liberar o gênio de nossas comunidades locais, poderemos construir um futuro bem mais pleno, rico, conectado e gentil com a Terra do que os modos de vida de hoje”, descreve o Manual das Iniciativas em Transição, elaborado por Ben Brangwyn e Rob Hopkins e disponível no site do movimento em mais de dez idiomas. (Acesse o manual em português).
A metodologia prevê doze passos no processo de transição, que foram elaborados com base na observação do que funcionou nas iniciativas de Totnes e Kinsale. Orienta também como lidar com as barreiras iniciais, reais e imaginárias que aparecem no caminho.
Por meio de um mapeamento via satélite, a pequena ilha de Waiheke, na Nova Zelândia, descobriu muita terra cultivável em desuso. O grupo do movimento voltado para o tema da alimentação criou um projeto de compartilhamento de quintais para criar hortas e aproximar pessoas que possuem terras improdutivas às pessoas que querem cultivar alimentos – normalmente idosos que gostariam de ter mais interação social e transmitir conhecimentos sobre agricultura urbana.
Os habitantes da cidade californiana de Santa Cruz, que estão concentrando a transição em quarteirões, têm feito palestras, workshops e mutirões para resgatar habilidades que parecem coisa do passado, mas que são essenciais para moldar uma sociedade resiliente e sustentável. Os temas incluem permacultura, jardinagem orgânica, compostagem, marcenaria, coleta de água de chuva, construção ecológica, criação de animais, produção de itens de limpeza e de conserva de alimentos, entre outros.
Brasil: pré-sal ou pós-petróleo?
Enquanto diversas experiências pipocam no mundo, no Brasil corre-se o risco de o présal empurrar o País no sentido oposto das iniciativas inteligentes mundiais. “A recente descoberta de novas reservas petrolíferas vai retardar o pico do petróleo por aqui”, afirma Todescan. No entanto, quatro municípios – além do subdistrito da Granja Viana, na região oeste da Grande São Paulo – já estão se preparando para a crise: Porto Alegre, Brasília, Serra (ES) e São Paulo, que, assim como Londres, vai adotar o modelo por bairros. Graças a uma parceria da Secretaria do Meio Ambiente com a Fundação Alphaville e o grupo articulador do movimento no Brasil, Serra é a primeira cidade da América Latina a assinar o documento oficial das Cidades em Transição. Deflagraram o problema da enorme quantidade de resíduos sólidos nos lixões da cidade e traçaram um plano de implementação da coleta seletiva dentro de um ano. Esse é apenas o começo.