Por Amália Safatle
Processos marcados pela diversidade de atores e papéis correm em paralelo à governança global oficial, integrando o que o advogado Eduardo Felipe Matias chama de círculo virtuoso da sustentabilidade
Mais que fichas, muita esperança é depositada na Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima a se realizar em Paris ao fim deste ano. Embora relevante pela legitimidade e poder de abarcar cerca de 200 países, a governança global da sustentabilidade limita-se cada vez menos a este arcabouço oficial das Nações Unidas. Processos marcados pela diversidade de atores e papéis correm em paralelo, integrando o que o advogado Eduardo Felipe Matias chama de círculo virtuoso da sustentabilidade, alimentado pela globalização em um ritmo turbinado pela tecnologia das redes.
Nessa nova geometria, o formato circular toma espaço das estruturas piramidais, hierárquicas, e ultrapassam o contorno das fronteiras nacionais. Novas regras, instituições e, mais que isso, articulações são formadas, fazendo emergir um direito internacional da sustentabilidade. Sua função será ajudar a apertar os botões todos dessa nova governança, agora e ao mesmo tempo – até porque o enfrentamento dos desafios globais, como o da mudança do clima e da agenda de desenvolvimento sustentável, exige muita celeridade, com participação difusa e conjunta.
É viável uma governança global para tratar de questões como a mudança do clima em um mundo estruturado a partir de Estados soberanos?
Existe essa grande negociação que se arrasta há alguns anos na ONU e que, sem dúvida, é importante para a governança do clima e para a governança global da sustentabilidade. Mas essa é apenas uma das engrenagens necessárias desse grande mecanismo de governança global. Por que não podemos apostar tanto nessa negociação? Exatamente porque as características da negociação da ONU, baseada no consenso entre os países, tende a conduzir a acordos frágeis e brandos ou a nenhum acordo. Aquele país que se prejudicaria em um acordo com sanções que venha a surgir pode optar por não aderir ao acordo ou trabalha para que as sanções sejam diluídas ou não existam. Aí chegamos a um resultado em que acordos normalmente não têm sanções, são caracterizados como soft law, ou direito brando.
Não são vinculantes.
Isso. O processo da ONU é necessário, devemos continuar investindo nele, mas precisamos entender que a governança global da sustentabilidade vai além dele, engloba outros atores que vêm ganhando importância com o processo de globalização nos últimos 25 anos (mais em reportagem “Felizes para sempre?“).
Que engrenagens alternativas são essas? Como funcionaria, por exemplo, a proposta de clubes?
A ideia de clubes, ainda não testada na prática, é de criar um grupo menor de países. A teoria da cooperação indica que, quando se tem um número menor, você consegue atingir resultados mais profundos. São acordos estreitos, mas profundos – narrow but deep. Dentro da abordagem dos clubes, acabam surgindo os chamados acordos tarifários na fronteira. Qual a forma que esses clubes têm de se proteger? Os produtores dos países pertencentes ao clube tendem a ter custos maiores, por exemplo, caso o clube acorde uma política climática mais avançada, Para não perder competitividade, impõem ajuste tarifário na fronteira aos países que estão fora do clube. Esse ajuste tarifário é uma forma de ganhar apoio interno, pois não tem mais como o produtor do país-membro dizer que é contrário ao clube. E aqueles que estão fora do grupo pensam: “Puxa, para eu exportar aos países do clube em igualdade de condições basta que eu adote também práticas mais sustentáveis”.
A competição acaba levando a uma cooperação em torno de causas globais?
Cria-se um efeito dominó quando um grupo economicamente importante entra em um acordo sobre a necessidade de fazer algo sobre a questão climática, por exemplo, e ganha-se apoio interno e adeptos, protegendo-se por meio de uma sobretaxa. Então você tem um bastão, que é o ajuste tarifário na fronteira, e uma cenoura, que é atrair novos integrantes para o clube. Aí qual é o clube que a gente consegue imaginar? O G20, no qual há mais chance de se fechar um acordo narrow but deep.
Essa é uma ideia da qual mais gente partilha?
Tem mais gente, mas o problema da mudança climática atingiu uma dimensão tão grande que me parece que vale a pena insistir no âmbito da ONU. Em condições ideais, é o melhor foro, é melhor ter 200 países do que só os do G20. O acordo climático global que deve ser celebrado em Paris em dezembro provavelmente não terá a força desejada, mas isso não o torna desprovido de valor. Mesmo que não venha a ser legalmente vinculante – ou seja, que não possua sanções em caso de descumprimento, assim como ocorre em relação a outras esferas de autoridade da governança global –, um acordo no âmbito da ONU possui uma legitimidade que, aliada a outras pressões, pode levar ao cumprimento voluntário dos compromissos assumidos pelos países. O fato de que estes definam metas de redução de emissões é positivo para o círculo virtuoso da sustentabilidade. Mesmo que essas metas não venham a ser obrigatórias, elas criam uma espécie de dever moral, geram cobranças e aumentam a fiscalização por seu cumprimento. Não será a solução definitiva para o problema, mas pode se tornar uma peça fundamental da engrenagem da governança global da sustentabilidade, ao fornecer a sinalização necessária para que outros atores mudem as suas práticas.
Mas, como o senhor disse, não são modelos excludentes, ou seja, dá para ir testando alternativas em paralelo?
Claro. Isso inclusive está no artigo que escrevi [acesse aqui]. Não chega ainda a ser uma ideia de clube que terá uma sobretaxa, mas existe, sim, a introdução da sustentabilidade em acordos de livre-comércio. Mas existe um problema: imagina que nós temos um clube, um acordo de baixo carbono, e a gente está barrando produtos de fora. Só que a OMC tem uma cláusula, um princípio da nação mais favorecida, ou seja, se eu concedo um benefício para um país da OMC, eu preciso conceder para todos os membros.
Aí não funciona. O clube vai contra o livre-comércio?
Vai contra o livre-comércio. Esse é o ponto aonde a discussão vai chegar.
Mas isso não bate de frente com o preâmbulo do acordo que constituiu a própria OMC, que estabeleceu o desenvolvimento sustentável como objetivo?
A OMC tem um órgão de solução de controvérsias ativo, com muita jurisprudência. Na área ambiental, por exemplo, dois casos foram julgados: tuna-dolphin – ainda na época do Gatt [Acordo Geral de Tarifas e Comércio] – e shrimp-turtle, em que a pesca de atum afetava os golfinhos e a de camarão afetava as tartarugas. Nos dois, a conclusão foi de que a lei americana feria o livre-comércio. No segundo caso, embora tenha se admitido a possibilidade de banir as importações com base no método de processo ou produção adotado, os EUA foram condenados porque a forma de executar a medida foi considerada discriminatória. Mas foi nessa sentença do órgão de apelação em que este reconheceu que o fato de o preâmbulo definir o desenvolvimento sustentável como objetivo deve levar a uma releitura dos acordos da OMC, acrescentando cor, textura e contraste, e que o artigo 20 do Gatt – que estabelece algumas exceções ao livre comércio – deve ser interpretado à luz das preocupações contemporâneas sobre a proteção ambiental.
Então temos um grande problema a ser resolvido [o desenvolvimento sustentável], a globalização levou a uma nova governança global, diluída, descentralizada, e precisamos entender quais são as outras instâncias, autoridades, os outros atores que devem ser acionados para que haja uma governança efetiva da sustentabilidade. A gente sabe que, se depender só da negociação na ONU, essa governança pode ser frustrante. Precisamos entender quem são esses atores e como coordená-los para que essa governança seja efetiva e atinja objetivos com velocidade. A conclusão é que a única forma de a gente promover a sustentabilidade com eficiência e deter a mudança climática – que talvez seja o grande desafio global da nossa era – é promover o círculo virtuoso da sustentabilidade.
O que é esse círculo?
Ele identifica os atores que contribuem para a governança da sustentabilidade, os que “contribuem” para o problema, mas deveriam contribuir para a solução, e criar incentivos que levem esses atores a reforçar as suas práticas ou a mudar seu comportamento. A coordenação, ou articulação, das ações das diversas esferas de autoridade da governança global da sustentabilidade, para evitar redundâncias e assegurar a sinergia das iniciativas, seria algo desejável. Porém, pelo caráter naturalmente descentralizado dessa governança, essa é uma tarefa muito difícil.
Por isso, o que deveríamos buscar é a multiplicação das iniciativas e incentivos para a promoção da sustentabilidade, acionando todos os instrumentos possíveis – precificação do carbono, certificações socioambientais, investimentos em inovação etc. –, em todas as instâncias da governança global. Tudo ao mesmo tempo, e agora, devido à urgência do quadro atual. Com mais e mais iniciativas e incentivos, mais atores se sentirão estimulados e pressionados a mudar suas práticas, e estes, por sua vez, tendem a estimular e pressionar aqueles que ainda não aderiram a essa tendência, ampliando o alcance e acelerando o movimento desse círculo virtuoso.
Esses incentivos vão desde a educação, que vai mudar a mentalidade das pessoas desde cedo, até os econômicos, como a precificação do carbono que parte do Estado, mas vai mudar profundamente as práticas das empresas – os que são carbono-intensivos terão de mudar sua produção para continuarem competitivos. É um círculo. Na hora em que tiver consumidor e eleitor consciente, as pessoas passam a pressionar as empresas, os governos. Também tem a pressão das próprias empresas: uma empresa que já atravessou o funil da sustentabilidade vai olhar para trás, vai olhar para os seus competidores, e vai perceber que estará em desvantagem caso aquelas práticas mais rigorosas não se tornem obrigatórias para os seus pares. Essa empresa vai pressionar os governos a transformar essa regulação em uma regulação comum. Portanto eu acredito em apertar todos esses botões ao mesmo tempo. É o único jeito de cumprirmos essa tarefa no tempo necessário. Não dá para ficar esperando só a ONU.
É preciso um grande pacto, não?
Sim, mas um grande pacto descentralizado por meio de redes, de coalizões, de pressões indiretas. A empresa que passou pelo funil quer que seus competidores adotem práticas sustentáveis, que seus fornecedores façam o mesmo, então tem pressão de todos os lados. Com as organizações não governamentais fazendo boicotes, governos fazendo compras sustentáveis… tudo isso tem de se juntar. Tudo isso se retroalimenta. E sem inovação nada disso vai avançar, então qual o papel dos governos e das empresas em promovê-la? A inovação será difundida ou represada? São essas questões que precisam ser respondidas. Mas, do jeito que a gente age hoje, continua olhando o mundo como se fosse regulado e gerido pelos Estados.
Como o Direito entra nisso?
O Direito é uma ferramenta de transformação da sociedade.
Para ajudar a apertar esses botões todos?
Sim. Esses incentivos são fiscais, econômicos, uma vez que comando-e-controle sozinho não resolve. O problema que levou e levará a novas crises financeiras como a da subprime é um problema de incentivos perversos. As sociedades funcionam de forma a colher lucros imediatos sem pensar no longo prazo. A prova é que muitas empresas distribuíram bônus fenomenais e logo depois quebraram. A mentalidade da satisfação imediata, do lucro imediato, é a mesma que nos leva à crise ambiental, consumindo recursos de forma desmedida e sofrendo as consequências depois. Só que exageramos tanto na dose, que somos nós mesmos que estamos sofrendo as consequências, não estamos falando mais das próximas gerações.
Então, trata-se de incentivos, e os incentivos são dados pelo Direito. Se uma empresa precisa de uma governança corporativa melhor, será por meio do estatuto dela, pelas regras internas, sobre como os bônus são atribuídos etc.
O Direito é largamente entendido, então, como as regras de um jogo.
Sim, o Direito e as instituições.
E no que se refere ao Direito Internacional da Sustentabilidade?
A globalização levou a uma globalização jurídica, que é uma proliferação de acordos internacionais, acordos estes que criam organizações ou não. São instituições que podem ser transnacionais, supranacionais, públicas, privadas. Esse direito é produzido pelos diversos atores, desde uma entidade privada local que dá uma certificação até uma entidade que congrega várias empresas e vai definir diretrizes; assim como uma empresa que cria um código de compras e pressiona seus fornecedores ou uma ONG que cria uma fiscalização das empresas e governos, que dá nota ou denuncia atos de corrupção. A cidade que se junta a outras e cria uma rede, o Estado ou a província que criam uma política voltada para a sustentabilidade; até o país; até o clube; até o G20, no qual declara que e a retomada do crescimento tem ser um Green New Deal; até a ONU. Todos produzem Direito.
No meu artigo eu identifico por que de fato está surgindo um direito internacional da sustentabilidade. O que caracteriza um ramo autônomo do direito? Ele precisa ter objeto, conceitos, diretrizes, normas e princípios. E tudo isso a gente identifica no Direito Internacional da Sustentabilidade.
Então ele existe sem saber que existe?
Isso. Ou é incipiente, não está consolidado. Essa consolidação é urgente, nosso futuro na Terra depende dessa consolidação. Consolidar nada mais significa do que dizer que essas normas, diretrizes, conceitos etc. foram incorporados ao dia a dia da sociedade, porque aí os tribunais começam a reconhecer que o desenvolvimento sustentável é uma obrigação, e na OMC será evidente.
A consolidação promoveria mais efetividade porque aumenta a possibilidade de enforcement [cumprimento]?
Não é enforcement porque existe poder de sanção, e sim porque os atores que se subordinam voluntariamente àquela autoridade reconhecem legitimidade para emitir diretrizes e normas e as seguem. É um enforcement tão grande quanto aquele ao qual você se submete porque senão será punido. Seria melhor que houvesse uma organização mundial do meio ambiente e ou da sustentabilidade? Seria. Mas estamos em um contexto de governança descentralizada.
Essa descentralização também tem suas vantagens, não?
O risco da descentralização é de não se alocarem os recursos da forma mais eficiente, então pode haver uma dispersão ou sobreposição dos esforços. A vantagem é que, quando se tem diversos atores com diversas iniciativas lidando com uma questão, a falência de uns não impede que a questão avance, ou seja, o sistema é mais seguro. Assim como a prática do comércio levou à lex mercatoria e depois à necessidade de se criar uma organização mundial do comércio, a prática da sustentabilidade por empresas, governos, ONGs etc. começa a produzir Direito, e de forma descentralizada. Ele vai surgindo conforme aumenta a consciência.
Em 1995 foi possível criar a OMC com toda a formalidade, mas até agora não surgiu uma organização mundial da sustentabilidade, e talvez nunca surja. A diferença seria que, no caso do comércio, não há necessariamente a preocupação com o bem comum, e sim com a preservação dos interesses das partes? Também inexiste preocupação com as gerações futuras, o que tornaria a equação mais complexa?
Essa é a famosa história da Tragédia dos Comuns, isso está na origem do problema. É muito mais difícil lidar com a Tragédia dos Comuns, que exige muito Direito, no sentido de regras, do que no caso do comércio. A gente está diante de um problema quase de natureza humana. A longo prazo, não saber lidar com um problema de natureza humana levará à extinção da própria humanidade. Sendo radical, é um pouco isso.
Essa natureza humana significa priorizar o curto prazo, garantir o meu e depois vem o resto. É a história da subprime?
É isso. O que se deu com a subprime? A pessoa que avaliava os créditos falava: “Você quer comprar essa casa? Ela vale 1. Mas põe que vale 2 e te dou um empréstimo”. Compro a casa, pego o empréstimo que não foi pago ainda, empacoto com outros 300 empréstimos e vendo para um banco. Aí o banco vende para o outro. Tem aqui o direito a receber 300 vezes 2. O banco cria um fundo e vende no exterior para o investidor na Polônia etc. Qual o incentivo que o sujeito que avaliou a casa e o outro que pegou o empréstimo que nunca teria condição de pagar no futuro, qual o compromisso deles com o investidor final? Então o problema é de incentivos, mais uma vez. São os incentivos perversos que precisam ser mudados.
Então não tem nada a ver com a consciência? Pois as pessoas todas sabem do problema ambiental, da mudança climática.
No círculo virtuoso, o Direito começa a surgir daqueles quem têm a consciência. A consciência surge de diversas formas, pode ser pelo amor, pode ser pela dor, não só por altruísmo. Se o governador colocou um bônus para economia de água, cria um incentivo para a preservação do recurso. Isso aumenta a consciência do problema, no sentido de estar ciente do problema. E, para que consciência aumente, é preciso criar incentivos, se não as pessoas não vão entrar nesse barco. Vão continuar vendendo subprime.
Como seria a coordenação, ou a articulação dessa governança descentralizada?
Se a gente pensar na forma como a própria política funciona, ela está mais descentralizada que antes. As revoltas da Primavera Árabe não por caso foram apelidadas de Wikirevoluções, dependiam de diversos atores com ferramentas como redes sociais, celulares. Occupy Wall Street, as Manifestações de Junho, a greve dos caminhoneiros, organizada pelo WhatsApp agora [no fim de fevereiro, quando a entrevista foi realizada]. O máximo que a gente pode ambicionar é alimentar essas redes, conectá-las. Essa é a nossa revolução.
Mas, mais do que articular, é fomentar por meio de incentivos. Uma articulação entre as dez principais redes de supermercados do mundo para só comprar um determinado produto para que tenha sua cadeia de valor sustentável hoje tem mais força que um país de médio porte ou de porte até maior. Se as ações para a mudança não vêm de cima para baixo, têm que vir de baixo para cima. De baixo para cima talvez não seja a imagem mais adequada: na verdade, vêm de todos os lados.
*FOTO BRUNO BERNARDI.[:en]Processos marcados pela diversidade de atores e papéis correm em paralelo à governança global oficial, integrando o que o advogado Eduardo Felipe Matias chama de círculo virtuoso da sustentabilidade
Mais que fichas, muita esperança é depositada na Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima a se realizar em Paris ao fim deste ano. Embora relevante pela legitimidade e poder de abarcar cerca de 200 países, a governança global da sustentabilidade limita-se cada vez menos a este arcabouço oficial das Nações Unidas. Processos marcados pela diversidade de atores e papéis correm em paralelo, integrando o que o advogado Eduardo Felipe Matias chama de círculo virtuoso da sustentabilidade, alimentado pela globalização em um ritmo turbinado pela tecnologia das redes.
Nessa nova geometria, o formato circular toma espaço das estruturas piramidais, hierárquicas, e ultrapassam o contorno das fronteiras nacionais. Novas regras, instituições e, mais que isso, articulações são formadas, fazendo emergir um direito internacional da sustentabilidade. Sua função será ajudar a apertar os botões todos dessa nova governança, agora e ao mesmo tempo – até porque o enfrentamento dos desafios globais, como o da mudança do clima e da agenda de desenvolvimento sustentável, exige muita celeridade, com participação difusa e conjunta.
É viável uma governança global para tratar de questões como a mudança do clima em um mundo estruturado a partir de Estados soberanos?
Existe essa grande negociação que se arrasta há alguns anos na ONU e que, sem dúvida, é importante para a governança do clima e para a governança global da sustentabilidade. Mas essa é apenas uma das engrenagens necessárias desse grande mecanismo de governança global. Por que não podemos apostar tanto nessa negociação? Exatamente porque as características da negociação da ONU, baseada no consenso entre os países, tende a conduzir a acordos frágeis e brandos ou a nenhum acordo. Aquele país que se prejudicaria em um acordo com sanções que venha a surgir pode optar por não aderir ao acordo ou trabalha para que as sanções sejam diluídas ou não existam. Aí chegamos a um resultado em que acordos normalmente não têm sanções, são caracterizados como soft law, ou direito brando.
Não são vinculantes.
Isso. O processo da ONU é necessário, devemos continuar investindo nele, mas precisamos entender que a governança global da sustentabilidade vai além dele, engloba outros atores que vêm ganhando importância com o processo de globalização nos últimos 25 anos (mais em reportagem “Felizes para sempre?“).
Que engrenagens alternativas são essas? Como funcionaria, por exemplo, a proposta de clubes?
A ideia de clubes, ainda não testada na prática, é de criar um grupo menor de países. A teoria da cooperação indica que, quando se tem um número menor, você consegue atingir resultados mais profundos. São acordos estreitos, mas profundos – narrow but deep. Dentro da abordagem dos clubes, acabam surgindo os chamados acordos tarifários na fronteira. Qual a forma que esses clubes têm de se proteger? Os produtores dos países pertencentes ao clube tendem a ter custos maiores, por exemplo, caso o clube acorde uma política climática mais avançada, Para não perder competitividade, impõem ajuste tarifário na fronteira aos países que estão fora do clube. Esse ajuste tarifário é uma forma de ganhar apoio interno, pois não tem mais como o produtor do país-membro dizer que é contrário ao clube. E aqueles que estão fora do grupo pensam: “Puxa, para eu exportar aos países do clube em igualdade de condições basta que eu adote também práticas mais sustentáveis”.
A competição acaba levando a uma cooperação em torno de causas globais?
Cria-se um efeito dominó quando um grupo economicamente importante entra em um acordo sobre a necessidade de fazer algo sobre a questão climática, por exemplo, e ganha-se apoio interno e adeptos, protegendo-se por meio de uma sobretaxa. Então você tem um bastão, que é o ajuste tarifário na fronteira, e uma cenoura, que é atrair novos integrantes para o clube. Aí qual é o clube que a gente consegue imaginar? O G20, no qual há mais chance de se fechar um acordo narrow but deep.
Essa é uma ideia da qual mais gente partilha?
Tem mais gente, mas o problema da mudança climática atingiu uma dimensão tão grande que me parece que vale a pena insistir no âmbito da ONU. Em condições ideais, é o melhor foro, é melhor ter 200 países do que só os do G20. O acordo climático global que deve ser celebrado em Paris em dezembro provavelmente não terá a força desejada, mas isso não o torna desprovido de valor. Mesmo que não venha a ser legalmente vinculante – ou seja, que não possua sanções em caso de descumprimento, assim como ocorre em relação a outras esferas de autoridade da governança global –, um acordo no âmbito da ONU possui uma legitimidade que, aliada a outras pressões, pode levar ao cumprimento voluntário dos compromissos assumidos pelos países. O fato de que estes definam metas de redução de emissões é positivo para o círculo virtuoso da sustentabilidade. Mesmo que essas metas não venham a ser obrigatórias, elas criam uma espécie de dever moral, geram cobranças e aumentam a fiscalização por seu cumprimento. Não será a solução definitiva para o problema, mas pode se tornar uma peça fundamental da engrenagem da governança global da sustentabilidade, ao fornecer a sinalização necessária para que outros atores mudem as suas práticas.
Mas, como o senhor disse, não são modelos excludentes, ou seja, dá para ir testando alternativas em paralelo?
Claro. Isso inclusive está no artigo que escrevi [acesse aqui]. Não chega ainda a ser uma ideia de clube que terá uma sobretaxa, mas existe, sim, a introdução da sustentabilidade em acordos de livre-comércio. Mas existe um problema: imagina que nós temos um clube, um acordo de baixo carbono, e a gente está barrando produtos de fora. Só que a OMC tem uma cláusula, um princípio da nação mais favorecida, ou seja, se eu concedo um benefício para um país da OMC, eu preciso conceder para todos os membros.
Aí não funciona. O clube vai contra o livre-comércio?
Vai contra o livre-comércio. Esse é o ponto aonde a discussão vai chegar.
Mas isso não bate de frente com o preâmbulo do acordo que constituiu a própria OMC, que estabeleceu o desenvolvimento sustentável como objetivo?
A OMC tem um órgão de solução de controvérsias ativo, com muita jurisprudência. Na área ambiental, por exemplo, dois casos foram julgados: tuna-dolphin – ainda na época do Gatt [Acordo Geral de Tarifas e Comércio] – e shrimp-turtle, em que a pesca de atum afetava os golfinhos e a de camarão afetava as tartarugas. Nos dois, a conclusão foi de que a lei americana feria o livre-comércio. No segundo caso, embora tenha se admitido a possibilidade de banir as importações com base no método de processo ou produção adotado, os EUA foram condenados porque a forma de executar a medida foi considerada discriminatória. Mas foi nessa sentença do órgão de apelação em que este reconheceu que o fato de o preâmbulo definir o desenvolvimento sustentável como objetivo deve levar a uma releitura dos acordos da OMC, acrescentando cor, textura e contraste, e que o artigo 20 do Gatt – que estabelece algumas exceções ao livre comércio – deve ser interpretado à luz das preocupações contemporâneas sobre a proteção ambiental.
Então temos um grande problema a ser resolvido [o desenvolvimento sustentável], a globalização levou a uma nova governança global, diluída, descentralizada, e precisamos entender quais são as outras instâncias, autoridades, os outros atores que devem ser acionados para que haja uma governança efetiva da sustentabilidade. A gente sabe que, se depender só da negociação na ONU, essa governança pode ser frustrante. Precisamos entender quem são esses atores e como coordená-los para que essa governança seja efetiva e atinja objetivos com velocidade. A conclusão é que a única forma de a gente promover a sustentabilidade com eficiência e deter a mudança climática – que talvez seja o grande desafio global da nossa era – é promover o círculo virtuoso da sustentabilidade.
O que é esse círculo?
Ele identifica os atores que contribuem para a governança da sustentabilidade, os que “contribuem” para o problema, mas deveriam contribuir para a solução, e criar incentivos que levem esses atores a reforçar as suas práticas ou a mudar seu comportamento. A coordenação, ou articulação, das ações das diversas esferas de autoridade da governança global da sustentabilidade, para evitar redundâncias e assegurar a sinergia das iniciativas, seria algo desejável. Porém, pelo caráter naturalmente descentralizado dessa governança, essa é uma tarefa muito difícil.
Por isso, o que deveríamos buscar é a multiplicação das iniciativas e incentivos para a promoção da sustentabilidade, acionando todos os instrumentos possíveis – precificação do carbono, certificações socioambientais, investimentos em inovação etc. –, em todas as instâncias da governança global. Tudo ao mesmo tempo, e agora, devido à urgência do quadro atual. Com mais e mais iniciativas e incentivos, mais atores se sentirão estimulados e pressionados a mudar suas práticas, e estes, por sua vez, tendem a estimular e pressionar aqueles que ainda não aderiram a essa tendência, ampliando o alcance e acelerando o movimento desse círculo virtuoso.
Esses incentivos vão desde a educação, que vai mudar a mentalidade das pessoas desde cedo, até os econômicos, como a precificação do carbono que parte do Estado, mas vai mudar profundamente as práticas das empresas – os que são carbono-intensivos terão de mudar sua produção para continuarem competitivos. É um círculo. Na hora em que tiver consumidor e eleitor consciente, as pessoas passam a pressionar as empresas, os governos. Também tem a pressão das próprias empresas: uma empresa que já atravessou o funil da sustentabilidade vai olhar para trás, vai olhar para os seus competidores, e vai perceber que estará em desvantagem caso aquelas práticas mais rigorosas não se tornem obrigatórias para os seus pares. Essa empresa vai pressionar os governos a transformar essa regulação em uma regulação comum. Portanto eu acredito em apertar todos esses botões ao mesmo tempo. É o único jeito de cumprirmos essa tarefa no tempo necessário. Não dá para ficar esperando só a ONU.
É preciso um grande pacto, não?
Sim, mas um grande pacto descentralizado por meio de redes, de coalizões, de pressões indiretas. A empresa que passou pelo funil quer que seus competidores adotem práticas sustentáveis, que seus fornecedores façam o mesmo, então tem pressão de todos os lados. Com as organizações não governamentais fazendo boicotes, governos fazendo compras sustentáveis… tudo isso tem de se juntar. Tudo isso se retroalimenta. E sem inovação nada disso vai avançar, então qual o papel dos governos e das empresas em promovê-la? A inovação será difundida ou represada? São essas questões que precisam ser respondidas. Mas, do jeito que a gente age hoje, continua olhando o mundo como se fosse regulado e gerido pelos Estados.
Como o Direito entra nisso?
O Direito é uma ferramenta de transformação da sociedade.
Para ajudar a apertar esses botões todos?
Sim. Esses incentivos são fiscais, econômicos, uma vez que comando-e-controle sozinho não resolve. O problema que levou e levará a novas crises financeiras como a da subprime é um problema de incentivos perversos. As sociedades funcionam de forma a colher lucros imediatos sem pensar no longo prazo. A prova é que muitas empresas distribuíram bônus fenomenais e logo depois quebraram. A mentalidade da satisfação imediata, do lucro imediato, é a mesma que nos leva à crise ambiental, consumindo recursos de forma desmedida e sofrendo as consequências depois. Só que exageramos tanto na dose, que somos nós mesmos que estamos sofrendo as consequências, não estamos falando mais das próximas gerações.
Então, trata-se de incentivos, e os incentivos são dados pelo Direito. Se uma empresa precisa de uma governança corporativa melhor, será por meio do estatuto dela, pelas regras internas, sobre como os bônus são atribuídos etc.
O Direito é largamente entendido, então, como as regras de um jogo.
Sim, o Direito e as instituições.
E no que se refere ao Direito Internacional da Sustentabilidade?
A globalização levou a uma globalização jurídica, que é uma proliferação de acordos internacionais, acordos estes que criam organizações ou não. São instituições que podem ser transnacionais, supranacionais, públicas, privadas. Esse direito é produzido pelos diversos atores, desde uma entidade privada local que dá uma certificação até uma entidade que congrega várias empresas e vai definir diretrizes; assim como uma empresa que cria um código de compras e pressiona seus fornecedores ou uma ONG que cria uma fiscalização das empresas e governos, que dá nota ou denuncia atos de corrupção. A cidade que se junta a outras e cria uma rede, o Estado ou a província que criam uma política voltada para a sustentabilidade; até o país; até o clube; até o G20, no qual declara que e a retomada do crescimento tem ser um Green New Deal; até a ONU. Todos produzem Direito.
No meu artigo eu identifico por que de fato está surgindo um direito internacional da sustentabilidade. O que caracteriza um ramo autônomo do direito? Ele precisa ter objeto, conceitos, diretrizes, normas e princípios. E tudo isso a gente identifica no Direito Internacional da Sustentabilidade.
Então ele existe sem saber que existe?
Isso. Ou é incipiente, não está consolidado. Essa consolidação é urgente, nosso futuro na Terra depende dessa consolidação. Consolidar nada mais significa do que dizer que essas normas, diretrizes, conceitos etc. foram incorporados ao dia a dia da sociedade, porque aí os tribunais começam a reconhecer que o desenvolvimento sustentável é uma obrigação, e na OMC será evidente.
A consolidação promoveria mais efetividade porque aumenta a possibilidade de enforcement [cumprimento]?
Não é enforcement porque existe poder de sanção, e sim porque os atores que se subordinam voluntariamente àquela autoridade reconhecem legitimidade para emitir diretrizes e normas e as seguem. É um enforcement tão grande quanto aquele ao qual você se submete porque senão será punido. Seria melhor que houvesse uma organização mundial do meio ambiente e ou da sustentabilidade? Seria. Mas estamos em um contexto de governança descentralizada.
Essa descentralização também tem suas vantagens, não?
O risco da descentralização é de não se alocarem os recursos da forma mais eficiente, então pode haver uma dispersão ou sobreposição dos esforços. A vantagem é que, quando se tem diversos atores com diversas iniciativas lidando com uma questão, a falência de uns não impede que a questão avance, ou seja, o sistema é mais seguro. Assim como a prática do comércio levou à lex mercatoria e depois à necessidade de se criar uma organização mundial do comércio, a prática da sustentabilidade por empresas, governos, ONGs etc. começa a produzir Direito, e de forma descentralizada. Ele vai surgindo conforme aumenta a consciência.
Em 1995 foi possível criar a OMC com toda a formalidade, mas até agora não surgiu uma organização mundial da sustentabilidade, e talvez nunca surja. A diferença seria que, no caso do comércio, não há necessariamente a preocupação com o bem comum, e sim com a preservação dos interesses das partes? Também inexiste preocupação com as gerações futuras, o que tornaria a equação mais complexa?
Essa é a famosa história da Tragédia dos Comuns, isso está na origem do problema. É muito mais difícil lidar com a Tragédia dos Comuns, que exige muito Direito, no sentido de regras, do que no caso do comércio. A gente está diante de um problema quase de natureza humana. A longo prazo, não saber lidar com um problema de natureza humana levará à extinção da própria humanidade. Sendo radical, é um pouco isso.
Essa natureza humana significa priorizar o curto prazo, garantir o meu e depois vem o resto. É a história da subprime?
É isso. O que se deu com a subprime? A pessoa que avaliava os créditos falava: “Você quer comprar essa casa? Ela vale 1. Mas põe que vale 2 e te dou um empréstimo”. Compro a casa, pego o empréstimo que não foi pago ainda, empacoto com outros 300 empréstimos e vendo para um banco. Aí o banco vende para o outro. Tem aqui o direito a receber 300 vezes 2. O banco cria um fundo e vende no exterior para o investidor na Polônia etc. Qual o incentivo que o sujeito que avaliou a casa e o outro que pegou o empréstimo que nunca teria condição de pagar no futuro, qual o compromisso deles com o investidor final? Então o problema é de incentivos, mais uma vez. São os incentivos perversos que precisam ser mudados.
Então não tem nada a ver com a consciência? Pois as pessoas todas sabem do problema ambiental, da mudança climática.
No círculo virtuoso, o Direito começa a surgir daqueles quem têm a consciência. A consciência surge de diversas formas, pode ser pelo amor, pode ser pela dor, não só por altruísmo. Se o governador colocou um bônus para economia de água, cria um incentivo para a preservação do recurso. Isso aumenta a consciência do problema, no sentido de estar ciente do problema. E, para que consciência aumente, é preciso criar incentivos, se não as pessoas não vão entrar nesse barco. Vão continuar vendendo subprime.
Como seria a coordenação, ou a articulação dessa governança descentralizada?
Se a gente pensar na forma como a própria política funciona, ela está mais descentralizada que antes. As revoltas da Primavera Árabe não por caso foram apelidadas de Wikirevoluções, dependiam de diversos atores com ferramentas como redes sociais, celulares. Occupy Wall Street, as Manifestações de Junho, a greve dos caminhoneiros, organizada pelo WhatsApp agora [no fim de fevereiro, quando a entrevista foi realizada]. O máximo que a gente pode ambicionar é alimentar essas redes, conectá-las. Essa é a nossa revolução.
Mas, mais do que articular, é fomentar por meio de incentivos. Uma articulação entre as dez principais redes de supermercados do mundo para só comprar um determinado produto para que tenha sua cadeia de valor sustentável hoje tem mais força que um país de médio porte ou de porte até maior. Se as ações para a mudança não vêm de cima para baixo, têm que vir de baixo para cima. De baixo para cima talvez não seja a imagem mais adequada: na verdade, vêm de todos os lados.