No entorno de Belém, ruínas da Pirelli na floresta que serviu à produção de pneus se reinventam como base para a pesquisa da fauna e para o turismo comunitário
Com 2,5 milhões de habitantes, a Região Metropolitana de Belém – segundo maior conglomerado urbano da Amazônia – reúne problemas semelhantes aos de grandes cidades do Centro-Sul brasileiro: engarrafamento no trânsito, violência, expansão de favelas e de ocupações irregulares, poluição, falta de saneamento. O quadro está associado ao êxodo para a periferia da capital, devido à inexistência de oportunidades na floresta. Mas ali algo especial chama atenção: o verde das matas que resistiram à pressão e guardam vestígios históricos do antigo sonho de riqueza a partir da biodiversidade.
Em meio a bairros populosos, o movimentado eixo de ligação entre Belém e os demais municípios paraenses, a BR-316 dá acesso no quilômetro 14 a uma pequena estrada de barro que leva a uma densa floresta. Logo à frente, velhas seringueiras marcadas pelas cicatrizes da extração de látex indicam a finalidade da área no passado. Até que, mais adiante nas trilhas, surgem estruturas de prédios em ruínas, quase engolidas pela mata. São marcos de quando a Pirelli, multinacional italiana fabricante de pneus, produzia borracha em 7,5 mil hectares à beira do Rio Guamá, de fácil logística para exportação.
A companhia adquiriu a terra em 1954, no rastro de incentivos governamentais para a retomada da borracha em resposta à decadência do mercado no Pós-Guerra e à concorrência com a produção asiática. Na época, obrigava-se o investimento na derrubada da floresta para o cultivo de seringais mais produtivos em relação aos naturais. Fazia-se o chamado “enxerto de copas”: o tronco plantado era de seringueiras nativas da Amazônia, mas a parte superior da árvore provinha de exemplares asiáticos. Depois a pecuária substituiu a produção de borracha, sem o lucro esperado. A Pirelli vendeu a antiga fábrica de Belém na metade dos anos 1980, encerrando atividades na unidade, até que no final da década de 1990 a área foi desapropriada pelo Estado.
Hoje o local abriga a Refúgio de Vida Silvestre (Revis) Metrópole da Amazônia, criado em 2010 com 6,3 mil hectares voltados para a conservação da fauna nos municípios de Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Izabel do Pará, periféricos à capital. “A integração com a dinâmica urbana é o diferencial e o desafio”, afirma Julio Cesar Meyer Junior, gerente do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará, responsável pelas unidades de conservação na Região Metropolitana. Na reserva dos antigos seringais há registros de onças e lagos com jacarés e sucuris. Para o biólogo André Luis Ravetta, também do instituto, “apesar dos impactos, a área é estratégica porque integra um dos centros de endemismo da Amazônia, reconhecido pelo número de espécies que só existem ali”.
Um exemplo é a ararajuba, ave em extinção que não é mais encontrada no refúgio e deverá repovoá-lo por meio de um projeto da Fundação Lymington. No local, pesquisadores do Instituto Butantan, de São Paulo, coletam lagartas-de-fogo (Premolis semirufa) que causam doença ocupacional aos seringueiros na Amazônia. Novas pesquisas se desenvolverão a partir do plano de manejo da Revis, em fase inicial de elaboração. A previsão é que as ruínas da velha escola dos tempos da borracha se transformem em base científica da Universidade Federal do Pará, apoiada pelo que restou de outras instalações, como os armazéns e o posto de saúde.
Projetos de agroecologia mobilizam comunidades tradicionais dentro e no entorno da reserva, que compõe um mosaico de 15 mil hectares de áreas protegidas ao lado da APA de Belém, da Ilha do Combu e do Parque Estadual do Utinga, com suas florestas de terra firme e lagos responsáveis pelo abastecimento hídrico da capital. O conjunto constitui uma das maiores extensões de floresta primária em ambiente urbano no Brasil.
Se tudo der certo, as antigas e inúmeras trilhas que serviram à produção da borracha serão revitalizadas para o turismo, com destaque para a observação de aves. Cursos para formação de guias beneficiam quem mora na reserva, até mesmo netos de moradores mais velhos que trabalharam na chamada “Fazenda da Pirelli”. “É preciso tirar as ideias do papel rapidamente, porque hoje há constante risco de invasões e a estruturação do turismo pode evitar o problema”, adverte o casal Roberto e Ana Tereza Ribeiro, que mora com dois filhos na casa onde funcionava o antigo escritório da fabricante de borracha. Ao lado, a caixa-d’água exibe até hoje a logomarca da empresa.
Se no passado os recursos da área foram explorados para fazer pneus destinados a uma indústria que emite carbono e trava a mobilidade urbana, o futuro está nos ganhos proporcionados pela conservação.