Parque Indígena do Xingu em setembro de 2019. [Foto: Ibama /Fotos Públicas]
Problemas que já eram desafiadores ficaram ainda mais críticos diante da ineficiência do atual governo e de ações deliberadas para o desmonte de políticas ambientais
Por Carlos Bocuhy*
A má gestão e ineficiência na política ambiental do atual governo, que faz questão de desmantelar os organismos de controle e de prevenção criados a duras penas, é uma das principais razões dos desastres no Brasil verificados desde janeiro. Brumadinho, Amazônia e óleo derramado nas praias são uma composição explosiva e demonstram o que pode acontecer se o País persistir no rumo irresponsável das atitudes anti-ambientais. Temos vários desafios a enfrentar se quisermos nos livrar das agruras provenientes da incompetência e má-fé governamentais.
O primeiro desafio é estrutural: é preciso compreender e enfrentar a Era do Antropoceno, onde o planeta vem sendo drasticamente transformado pela sociedade pós-industrial. O maior desafio, que surge como efeito deste cenário, é a mudança climática. A capacidade humana de alterar as funções vitais do planeta ganhou contornos visíveis há aproximadamente 30 anos. Como exemplo das causas, podemos citar a queima de combustíveis fósseis que transportam, de forma intensa e com impactos equivalentes, bens e pessoas pelo ar, pelo mar, por ruas e estradas.
A intensidade na emissão de gases efeito-estufa exige controle e a busca de matrizes limpas de energia. É preciso estabelecer, com a ajuda da ciência, os limites que possam garantir a vida no planeta e a sobrevivência da civilização. Há conceitos de capacidade de suporte, limite das alterações aceitáveis, pegada ecológica – e instrumentos de gestão e econômica como o reconhecimento da prestação de serviços ambientais, créditos de carbono etc.
Mesmo com a compreensão do problema, as medidas têm sido insípidas, e o desafio de manter a temperatura média em um grau e meio está se tornando improvável, devido a fatores políticos e naturais, como as posições do governo Trump, seguidas agora pelo Brasil. É preciso ainda considerar as emissões de metano do Ártico, que têm surpreendido os cientistas que fazem seu monitoramento.
Neste contexto é preciso agir para prevenir fortíssimos impactos. O Brasil possui funções ecossistêmicas vitais. Os “rios voadores” são reconhecidos cientificamente como a imensa bomba natural de transposição da água da região amazônica para o continente. Dependem do bom funcionamento deste ecossistema a agricultura e a pecuária, atividades que, de forma paradoxal, vêm destruindo a Floresta Amazônica.
Propusemos em 2018, ao Mercosul, a elaboração de um tratado internacional para a proteção deste ecossistema continental. Mas esses mecanismos institucionais vêm sendo hostilizados e fragilizados pelo governo atual, enquanto a sociedade brasileira ainda não dimensiona os riscos envolvidos.
Assistimos ao aumento substancial do desmatamento e das queimadas durante este ano. No ritmo de desmatamento atual, daqui a 20 ou 30 anos podemos atingir o ponto de irreversibilidade da Floresta Amazônica. Na medida em que o microclima se altera, corremos o risco da desertificação, da transição para uma condição assemelhada à da savana.
O segundo desafio é o modelo predatório da economia. Parte da sociedade vive a lógica do Mito de Midas, do business as usual, buscando transformar tudo o que se puder em ouro. É preciso inserir a sustentabilidade como premissa das atividades econômicas. A economia depende das condições naturais para sua sobrevivência. Nossa agricultura é um exemplo disso, depende da água trazida graciosamente pelos bons ventos da Amazônia, mas assim mesmo a realidade demonstra, no dia a dia, o aumento de derrubada da floresta.
É preciso combater os discursos anti-ambientais que favorecem um modelo retrógrado e sem responsabilidade socioambiental. Cito como exemplo máximo o recente “Dia do Fogo”, ocorrido em Novo Progresso, no Pará – com agressões ambientais criminosas planejadas e articuladas por grileiros, madeireiros, mineradores, pecuaristas e agricultores irresponsáveis.
Situações como a do Dia do Fogo merecem lembrar que, para além da Constituição e da Política Nacional de Meio Ambiente, o Brasil deve respeitar os tratados internacionais, entre estes as Metas de Aichi, a Convenção da Biodiversidade e o Acordo de Paris, entre tantos outros.
Apesar destes fatos, ainda não se explica por que não foi implementado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, perfeitamente estabelecido nas diretrizes internas do Ministério do Meio Ambiente e que trabalha com três eixos essenciais: fiscalização, regularização fundiária e fomento a atividades sustentáveis.
Em que pese o ICMBio e o Ibama estarem prontos para agir, a falta de comando do MMA deixou o sistema inerte e acéfalo durante a crise na Amazônia. Somem-se a isso os discursos irresponsáveis do governo e a liberalidade com relação a multas, máquinas e equipamentos que deixaram de ser apreendidos por determinação da Presidência da República.
O terceiro desafio é combater os retrocessos, os atos administrativos contra o meio ambiente que estão lacerando o sistema de gestão do setor no Brasil. Trata-se aqui de determinar os limites da discricionariedade em sua relação com os princípios basilares da administração pública, que deveriam ser norteadas pela proteção ambiental e suas garantias constitucionais. Como fato mais recente, no dia 29 de novembro de 2019 foi editado o Decreto Federal 10.139/19 que abre caminho para a revogação de inúmeras normas ambientais, incluindo resoluções do Conama, como a Resolução 303/02, que contém elementos protetivos das áreas de preservação permanente (APPs), fundamentais para as restingas em todo território nacional, que colaboram na proteção da região costeira, de vital importância sobretudo no atual cenário de mudanças climáticas.
É preciso agir: há atores importantes que devem estar vigilantes e atuantes: Ministério Público, Controladoria Geral da União, demais entes federados, Parlamento, Sociedade Civil, Imprensa e Academia.
Como quarto desafio, é preciso combater, de forma específica, os efeitos nocivos que atingiram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), composto de várias partes que interagem entre si de forma sinérgica e cujo resultado deve ser a sua eficiência. A Secretaria de Mudanças Climáticas interage com o Serviço Florestal Brasileiro, que conversa com a Funai etc. Todos devem estar debaixo de atribuições e de competências harmônicas. É preciso considerar interações, conexões e funcionalidade do Sisnama, como sistema e como meio eficaz de implementação da legislação ambiental e dos comandos constitucionais.
Entendo que o atual momento exige aferirmos se os mecanismos constitucionalmente estabelecidos para a defesa da sociedade e do ambiente estão funcionando a contento. A realidade de um Judiciário muitas vezes despreparado para sopesar interesses econômicos e difusos jamais poderá ser a justificativa para a prostração dos órgãos vocacionados para a proteção ambiental. Nossos mecanismos institucionais têm de agir, especialmente o MPF, a CGU e a Defensoria Pública, esta última que atua especialmente em defesa das populações vulneráveis.
Um sistema de gestão ambiental eficiente, com perfil estadista, republicano, dá transparência a seus atos e governa com isenção e participação social, sem atacar a boa normatização, sem destruir os meios de boa governança, com transparência e regularidade nos atos administrativos. Isso resulta em boas práticas, em políticas públicas voltadas à sustentabilidade.
Já um sistema de gestão que sofre influências nocivas da economia selvagem e de interesses eleitoreiros, tenderá a desregrar e desmantelar o sistema ambiental público, eliminar a participação social ou neutralizá-la para satisfazer interesses menores. A participação social é imprescindível para evitar as distorções que vêm ocorrendo no Brasil. O sistema ambiental deve ser participativo, com visão multidisciplinar e objetivos pró sociedade e pró sustentabilidade.
Como quinto desafio, entendo que precisamos de espaços de participação social bem estruturados, com regras claras e condução democrática para produzir decisões informadas pró-sociedade e pró-sustentabilidade.
Os conselhos ambientais devem ter como componentes os meios para atingir os objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente, com bons regimentos internos e boa condução democrática, com participação que garanta representatividade, legitimidade e proporcionalidade, com participação social efetiva e que se organize de forma independente, atuando livre de influências de governo e sem conflitos de interesse.
As alterações que ocorreram no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) com o Decreto 9.806/2019 retiraram requisitos essenciais. A representatividade foi desmantelada e as entidades que eram eleitas democraticamente passaram a ser indicadas por um sistema de sorteio assemelhado a um bingo.
Como sexto desafio, destaco a transparência e direito à informação. James Hansen, o pai das mudanças do clima, ironizava, de forma bem humorada, a diferença entre os riscos reais e a comunicação governamental, contrapondo a tradicional caveira do “perigo” com um ameno smiling face. Quando o governo diz que está tudo bem, mas na realidade há uma ameaça em curso, transmite para a sociedade uma falsa sensação de segurança e a sociedade deixará de se proteger.
Nesse sentido, a falsa segurança é pior do que nenhuma segurança, pois na falta desta a sociedade reagirá. O governo deve pautar a comunicação do risco com a maior transparência possível, sob pena inclusive de responsabilização por danos à saúde pública.
Como sétimo desafio, aponto o desempenho do Brasil no contexto das conferências do clima. É preciso ressaltar que o governo do Brasil pretende obter recursos na COP 25, conforme tem afirmado, o que será uma tarefa difícil pelos motivos que elenco a seguir: o Brasil engavetou o Acordo de Paris, está sem cumprir metas, recusou-se a sediar o evento, o chanceler brasileiro é manifestamente negacionista, o Brasil recusou recursos para o Fundo Amazônia, extinguiu o Reed+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e obstou outras ações que incentivavam comunidades locais a proteger a floresta, além de incentivar a degradação com seus discursos irresponsáveis. Então, que credibilidade restou ao atual governo do Brasil para negociações climáticas no exterior?
Os recursos a serem aportados por outros países para a reconstrução do Fundo Amazônia é dinheiro público, e o controle social em países desenvolvidos é intenso. Qual o crédito do governo atual depois de atitudes antidiplomáticas frente aos líderes do G20, de centenas de declarações anti-ambientais contra ONGs e populações indígenas?
Os desafios são muitos, e encerro com o oitavo desafio, o otimista, que decorre de minha fé na espécie humana e no espírito de solidariedade que se manifesta diante dos grandes desafios humanitários, o que demonstra a possibilidade de a sociedade brasileira e internacional atingirem um novo patamar civilizatório de consciência ambiental.
Nesta lógica maior, chegaremos ao estágio onde a economia será um subsistema da sustentabilidade. A riqueza consistirá em prosperar em sustentabilidade, em um mundo de paz. Porque sem recursos naturais disponíveis para a sobrevivência não haverá paz.
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)