Qual a relação entre a atual pandemia do novo coronavírus e a crise da perda da biodiversidade? Tudo. Para evitar novos riscos, é necessário deter e reverter o atual processo de perda de biodiversidade em escala global. O Brasil precisa exercer seu protagonismo nesse tema, como detentor do maior estoque de biodiversidade do mundo, um dos maiores produtores globais de alimentos e dono de imenso potencial na bioeconomia
A pandemia de Covid-19, como várias outras que têm afetado a humanidade ao longo de sua história, resulta da transposição de uma doença animal, uma zoonose, para o homem, a partir de uma mutação genética e um contato íntimo entre humanos e animais hospedeiros ou vetores de alguma zoonose. A domesticação de animais nos últimos 10 mil anos propiciou a passagem de várias zoonoses para a população humana, seguida da introdução de animais entre os continentes com o primeiro grande surto de globalização há cerca de 500 anos.
Finalmente chegamos ao período recente com a grande explosão demográfica humana e aumento vertiginoso do consumo e da extração dos recursos naturais e conversão das florestas, campos e mais recentemente savanas, para sistemas intensivos de produção de alimentos, commodities, fibras e energia. A consequência destes processos tem sido a degradação crescente da natureza, com resultante proliferação de animais vetores de doenças silvestres.
Um dos processos mais preocupantes é a caça e o comércio ilegal de vida silvestre para venda da carne (conhecida internacionalmente pela expressão bushmeat) sem a mínima condição sanitária. A origem do surto de Covid-19, assim como da SARS em 2003, é atribuída por especialistas ao consumo de animais silvestres em mercados públicos na China – prática infelizmente ainda comum em vários outros países, inclusive no Brasil, mais especialmente na Amazônia e na Caatinga.
O governo chinês baniu recentemente este comércio insalubre em todo o país como consequência da Covid-19. Entretanto, será necessário manter essa proibição em caráter permanente, bem como a adoção de medidas semelhantes em todos os países se quisermos evitar novas epidemias semelhantes no futuro.
Obviamente, este comércio ilegal de vida silvestre é hoje um dos principais fatores que promovem a perda de biodiversidade no mundo. Outras causas da perda da biodiversidade são o desmatamento e conversão de ecossistemas, a poluição, a extração insustentável de recursos biológicos (madeira, pescado etc.), a dispersão de espécies exóticas invasoras (inclusive patógenos e seus vetores) e a mudança climática. Apenas nos últimos 40 anos, houve uma redução em média de 60% das populações de animais vertebrados monitorados no mundo, um colapso de muitas populações de animais polinizadores e uma perda de mais 50% dos recifes de coral no mundo.
Infelizmente estamos nos aproximando perigosamente de um ponto de ruptura global (tipping point em inglês) do limite planetário de sustentabilidade (planetary boundary em inglês) e possivelmente estejamos presenciando o início do Sexto Evento Global de Extinção em Massa das Espécies (o Quinto Evento aconteceu há 66 milhões de anos, levando à extinção grupos inteiros de espécies, incluindo os dinossauros).
As consequências dessa perda de biodiversidade vão além do aumento do risco de novas pandemias originadas de zoonoses. Incluem o risco de quebra de safras de alimentos devido a surtos de pragas e doenças das plantas; a menor capacidade de promover adaptação à mudança climática, inclusive na agricultura por redução na disponibilidade de recursos genéticos; a perda de serviços ecossistêmicos associados à biodiversidade; a redução na oferta de recursos hídricos associado à perda de florestas (o que afetará a produção de energia hidrelétrica, abastecimento urbano e irrigação); e a diminuição de oportunidades para o desenvolvimento da bioeconomia.
Para evitar estes riscos e viabilizar as oportunidades econômicas e sociais é preciso deter e reverter o atual processo de perda de biodiversidade em escala global.
Há duas grandes oportunidades em 2021 para promover uma nova agenda global de biodiversidade: a COP 15 da Convenção da Biodiversidade, a realizar-se em Kunming, Yunnan, na China, e a adoção de compromissos para a implementação do Acordo de Paris na COP 26 da Convenção do Clima, prevista para Glasgow, na Escócia.
O Brasil precisa exercer um papel-chave nessas negociações, assumindo protagonismo na agenda ambiental global como detentor do maior estoque de biodiversidade e da maior floresta tropical do mundo, com uma economia fortemente dependente da biodiversidade, um dos maiores produtores globais de alimentos e com grande potencial na bioeconomia.
Quantos medicamentos ou até vacinas, quiçá a cura para o coronavírus, poderiam estar contidos em uma área florestal? Quantas possibilidades já foram perdidas? O que essa pandemia está agora nos mostrando é tudo o que cientistas já vêm alertando ao mundo há anos: se não ajudarmos a proteger a biodiversidade e soubermos conviver e nos aproveitarmos de maneira racional, lógica, sustentável dos benefícios que ela oferece à sociedade, aos negócios e ao planeta, com propósitos claros e impacto social bastante definido, certamente teremos ameaças futuras ainda piores.
Um mundo em constantes mudanças, sem que se calcule suas consequências, é o lugar ideal para o surgimento de novas doenças e pandemias. Mas não é possível esperar para conhecer os efeitos da crise atual. A hora de agir é agora.
É necessário, portanto, que a sociedade brasileira, sua comunidade acadêmica e seu setor econômico mobilizem desde já os conhecimentos e experiências para apoiar as negociações internacionais em busca de compromissos e meios de implementação de uma nova Agenda Global de Biodiversidade e do Acordo de Paris nos próximos 30 anos.
Tudo isso precisa ocorrer em sintonia com a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e dentro da revisão das diretrizes do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) para 2050, que está acontecendo este ano. Esta convocação é feita também em nome de Israel Klabin, presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), que apoia esta iniciativa.
O Brasil é um dos líderes da nova arquitetura global de sustentabilidade, portanto deve assumir seu papel defendendo nossos interesses nacionais e os interesses da humanidade.
*Braulio Dias é professor de Ecologia na Universidade de Brasília (UnB) e ex-secretário executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB)
**Marina Grossi é presidente do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS)
[Foto: Osteocephalus castaneicola na Floresta Amazônica peruana _Ulrike Langner/ Unsplash]