[Fotos: André Pessoa/ Divulgação]
Estudo com propostas para o futuro da Zona Franca de Manaus, elaborado por especialistas a convite da Fundação Amazonas Sustentável, movimenta o debate sobre o papel da indústria na conservação da floresta e a busca de novos investimentos baseados no patrimônio natural
A reforma tributária em discussão no Congresso Nacional, inclusive como caminho de retomada do crescimento pós-Covid-19, evidencia a urgência de uma questão diretamente ligada ao futuro da Amazônia: o que fazer com o modelo da Zona Franca de Manaus (ZFM) e seu polo industrial, no desafio de alavancar uma nova economia lastreada no uso inteligente dos recursos naturais e no desenvolvimento sustentável, de modo a conservar a floresta como fonte estratégica de renda, emprego e melhores condições sociais, em benefício da região e do País como um todo?
“O momento é altamente favorável à valorização da ZFM para enfrentar a urgência do desmatamento”, afirma Virgilio Viana, superintendente geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), que realizou uma série de seminários virtuais para apresentação e debate do documento Reforma Tributária, Zona Franca de Manaus e sustentabilidade: É Hora da Evolução, elaborado por especialistas sob a liderança da instituição. Na análise de Viana, a recuperação econômica da Amazônia precisa estar alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, e o atual modelo industrial concentrado na maior metrópole da região “é um ativo estratégico fundamental, nem sempre visto como aliado”.
O tema ganha força diante do cenário pós-calamidade da pandemia e dos riscos ambientais que colocam a Amazônia no centro do noticiário pela importância das florestas na mitigação da mudança climática global. “A ciência alerta que a região está muito próxima do ponto de colapso”, reforça Viana, ao lembrar que as exportações brasileiras do agronegócio estão sob pressão de grandes investidores internacionais. O fortalecimento e aprimoramento do atual modelo econômico da ZFM pode, segundo ele, “evitar a dependência externa em setores essenciais”, como se verificou durante a crise da Covid-19 no caso da saúde pública.
Pela capilaridade e conhecimento das realidades locais, a FAS – voltada a soluções de qualidade de vida, renda e uso sustentável em reservas ambientais do Amazonas, no total de 40 mil pessoas – propõe-se a reunir expertises e contribuir com o atual debate da reforma tributária como fator que direciona o fluxo da economia regional e tem estreita ligação com a manutenção da floresta em pé. “É questão de responsabilidade social com as futuras gerações que dependerão desses recursos”, enfatiza Viana.
Aposta na bioeconomia
Com objetivo de lançar luzes ao tema e subsidiar políticas públicas, o estudo traz o cenário da contribuição histórica da ZFM à economia da Amazônia Ocidental, em especial do estado do Amazonas; detalha os impactos ambientais e sociais do modelo, e reforça a importância de sua continuidade. Como estratégia de fortalecimento e diversificação econômica, são apresentadas propostas para novos eixos produtivos, em linha com o uso sustentável da floresta: bioeconomia amazônica (fármacos, fitocosméticos, fruticultura, alimentos nutracêuticos etc.), piscicultura, turismo, produção agroflorestal, mineração responsável e indústria naval (acesse aqui o documento na íntegra).
“Não se trata substituir, mas de somar e complementar a atual estrutura, de modo que o Polo Industrial de Manaus (PIM) tenha sustentabilidade”, observa o tributarista Thomáz Nogueira, ex-superintendente da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), para quem o tema da renúncia fiscal na região tem sido abordado por uma parte da sociedade brasileira de forma “estereotipada e imperfeita, quando não distorcida, o que neste momento exige colocarmos argumentos e preocupações na mesa”.
Coautor do estudo ao lado de analistas do meio acadêmico, empresarial, governamental e da sociedade civil, Nogueira enfatiza que, pela importância econômica, social e ambiental, a ZFM precisa compor a discussão central da reforma tributária – e não ser objeto para marcos legais posteriores. “Devemos estar preparados para indicar soluções técnicas neste jogo, de modo a demonstrar a validade do atual modelo e preservá-lo”, seja qual for o desenho geral das propostas de mudanças em curso no cenário político.
A ZFM faturou R$ 104 bilhões no ano passado, com mais de 400 empresas e 80 mil empregos – um terço na indústria eletroeletrônica. Entre 2000 e 2019, foram recolhidos R$ 162,3 bilhões de tributos federais, dos quais R$ 42,5 bilhões foram recebidos de volta pelo Amazonas como transferência constitucional: cerca de R$ 120 bilhões ficaram no caixa da União. Os resultados, no entanto, superam o aspecto da eficiência arrecadadora, diz Nogueira. “Os tributos têm o papel de indutor de comportamento e devem refletir a realidade atual da problemática da região”.
Modelo industrial influenciou menor desmatamento
Junto aos fatores econômicos e sociais, o estudo destaca o componente ambiental como elemento-chave a ser considerado na reforma tributária. O polo de indústrias erguido em Manaus pelos benefícios fiscais “é comprovadamente vetor de conservação da natureza”, ressalta Nogueira, citando estudos acadêmicos que avaliaram a influência do modelo na menor pressão sobre a floresta.
“Por essa e outras razões, deve-se reconhecer que a preservação do PIM é benéfica e estratégica para o Brasil”, aponta. Segundo ele, a parcela da população de Manaus em relação à estadual aumentou de 25% para 52%, desde a década de 1960, atingindo hoje 2,2 milhões de habitantes. “A concentração econômica e populacional na capital evitou atividades ambientalmente destrutivas no interior, diferente do que ocorreu em Estados vizinhos”.
Enquanto o Pará já derrubou perto de 40% da floresta original, no Amazonas o índice é de 3% – quadro que também se deve a políticas públicas de criação de reservas ambientais. Mais de 50% do território amazonense está protegido na forma de Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais, estaduais e municipais.
O pesquisador José Alberto Machado, da Universidade Federal do Amazonas, concorda: “O modelo da ZFM é muitas vezes questionado pelo aspecto da eficiência econômica, mas há outros elementos em questão”. Integrante do grupo que elaborou o documento de apoio à reforma tributária, coordenado pela FAS, Machado reforça que essa é a “única política federal consistente de proteção da região” e que é necessário fortalecê-la como resposta às pressões que o Brasil recebe nesse assunto. “É o que dispomos de mais efetivo e imediato”.
Machado defende a união de forças e convergências no contexto da reforma tributária. O objetivo é impedir retrocessos no impacto ambiental positivo e permitir – dentro de uma nova estratégia produtiva – a geração de riquezas pelo uso do patrimônio natural que o modelo industrial de Manaus ajudou a proteger, mesmo não intencionalmente, desde a criação da Zona Franca, há cinco décadas.
Além de viabilizar a gestão de reservas ambientais estaduais, a receita dos impostos pagos na metrópole financiou educação, saúde e outros serviços básicos no interior, mas esvaziou o desenvolvimento desses municípios e favoreceu o êxodo que resultou na expansão urbana desordenada da capital, com desigualdade social e deficiência de saneamento e estrutura de saúde, entre outros desafios expostos na pandemia de Covid-19.
Os ajustes necessários ao aprimoramento da ZFM, com melhoria da qualidade de vida urbana e possibilidade de Manaus tornar-se capital da bioeconomia e inovação digital, garantindo a floresta em pé, dependem de novas políticas públicas e da tramitação da reforma tributária, com o apoio das propostas em debate nos webinars da FAS.
Fontes de investimento para novos eixos econômicos
O estudo indica fontes de recursos para a diversificação produtiva da ZFM, complementando a atual estrutura industrial com investimentos na bioeconomia. Propõe-se estender a todas as empresas locais a obrigatoriedade de investir 5% do faturamento bruto em Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (PD&I) – hoje restrita ao setor de bens de Informática (Lei nº 13.969/2019) na forma de contrapartida pelos incentivos fiscais federais.
O montante representa cerca R$ 800 milhões ao ano, e a proposta é de que uma parte seja destinada à implementação dos novos eixos produtivos, por meio de ações de conservação da floresta, desenvolvimento do ecossistema de inovação e empreendedorismo, formação de recursos humanos e pesquisa tecnológica. A expectativa é de que outra parcela adicional tenha origem nos investimentos atraídos por incentivos fiscais estaduais.
Para a governança desses recursos, o documento propõe a criação de um conselho de gestão e a constituição do Fundo de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, de direito privado, apto a reunir também aportes de fundações e empresas, em diferentes mecanismos de investimento. “Será um instrumento moderno, com garantia de transparência e efetividade, sem os entraves de fundos públicos já existentes”, afirma Benjamin Sicsú, presidente do conselho de administração da FAS. “A ideia é que todas as empresas da ZFM contribuam de alguma forma no aporte de recursos, sem prejuízo da sua competitividade”.
O debate em torno do estudo da FAS busca inputs dos diversos segmentos para uma proposta final. “Prejudicar a indústria é um tiro no pé”, adverte José Jorge Junior, presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), setor que representa 30% do faturamento da ZFM. Ele diz que propostas para novos eixos econômicos são bem-vindas, mas “é preciso segurança e previsibilidade para os investimentos”. Em sua análise, o processo é de longo prazo e a prioridade deve estar em fortalecer o atual modelo para que empresas e poder público tenham maior capacidade de investir no novo. “Em vez de criar outros fundos, sugerimos remodelar os já existentes”, completa Junior.
Wilson Périco, presidente do Centro da Indústria do Estado do Amazonas (Cieam), sugere utilizar como investimento na bioeconomia uma parte dos R$ 10 bilhões anuais gerados de arrecadação pelo Amazonas para a União, além de um percentual dos recursos já obrigatoriamente aportados para P&DI pelas empresas de Tecnologia de Informação e Comunicação. “O momento não é propício para mais carga de contribuição”, argumenta Périco, lembrando que uma fonte de investimento pode vir da compensação financeira por impactos ambientais de atividades como a mineração.
O futuro dos serviços ambientais
“Outra possibilidade é a injeção de recursos em decorrência da exploração de gás nos 16 campos que deverão ser leiloados pela Petrobras na região”, sugere o senador Omar Aziz (PSD-AM), durante o webinário da FAS reunindo parlamentares amazonenses. Ele recomenda seguir caminhos alternativos à reforma tributária, pois a agenda “certamente não avançará em ano de eleição municipal”. Uma de suas propostas é dividir os 5% da atual contrapartida do setor de informática para viabilizar os novos investimentos: 3% para a área digital e 2% para o uso sustentável da biodiversidade. “São recursos obrigatórios atualmente muito mal utilizados”, critica o senador.
Para o deputado federal Sidney Leite (PSD-AM), o debate deve ter um olhar mais amplo: “É preciso unidade política em torno das bancadas da área de influência da ZFM e de toda a Amazônia”. Já o deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM) alerta para a necessidade de diminuir desigualdades regionais e o “sobrecusto Amazônia”, devido a barreiras que travam a economia, como a logística. “A ampliação do mix de produtos da ZFM é uma alternativa complementar que ajuda na sustentabilidade do modelo”, enfatiza o deputado, ao lembrar que a indústria de software, em franco crescimento no polo, poderá ser estratégica nesses novos investimentos.
Quanto à reforma tributária, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) adverte para a necessidade de cautela. Em sua análise, o processo não pode ser atropelado e desvirtuado pela demanda da retomada da economia. “O oxigênio para voltar a crescer e amenizar o impacto da dívida pública brasileira deve vir da privatização”, diz.
Braga entende que a reforma precisa do ritmo adequado ao refinamento de temas essenciais ao futuro do País, incluindo o ZFM. Para ele, o debate sobre tributação precisa reconhecer os benefícios dos serviços prestados pela floresta a atividades produtivas, como agronegócio e produção de energia. Além do papel da região na mudança climática global, a ciência já comprovou que o regime de chuvas, essencial a essas atividades, é diretamente influenciado pelas árvores da Amazônia – as mesmas que, em parte, o polo industrial de Manaus ajudou a proteger.
“A ZFM é na prática o maior programa de conservação de floresta do mundo, empreendido via renúncia fiscal de cerca de R$ 23 bilhões ao ano, cinco vezes mais que o Fundo Amazônia”, afirma o senador, enxergando os serviços ambientais como fonte essencial de recursos para a recuperação pós-Covid. “Uma possibilidade, por exemplo, é a criação de um selo para diferenciar no mercado internacional commodities brasileiras e outros setores exportadores que produzem sem degradar e recompensam financeiramente o uso sustentável da floresta”, sugere Braga.
Acesse aqui o documento na íntegra.
Acesse, a seguir, os webinários que se realizaram conforme este calendário:
I – Apresentação do estudo:
II – A visão dos parlamentares:
III – A visão das lideranças empresariais:
IV – Diálogos com o setor governamental:
V – Diálogos com a Academia: