Esta entrevista integra o “Especial 10 anos da PNRS”,
uma série de conteúdos produzida pela Página22
em parceria com a Coca-Cola
Nesta entrevista à Página22, a diretora executiva da Fundação Ellen MacArthur na América Latina, Luísa Santiago, contribui para esclarecer conceitos sobre economia circular. Na fundação, ela colabora com lideranças locais, empresas, governos e academia para ampliar o conhecimento e as práticas sobre o tema. Segundo a executiva, a ideia de não-geração de resíduo deve guiar o processo de design dos produtos e serviços – em vez de acontecer apenas no pós-uso, quando um resíduo já tiver sido gerado.
Por isso, a fundação orienta que primeiramente sejam eliminados os plásticos de que não precisamos, não só por meio da proibição de canudos ou sacolas, mas também da ampliação de novos modelos de entrega sem embalagem ou do uso de embalagens reutilizáveis. Em seguida, é preciso circular todos os itens plásticos dos quais precisamos, o que envolve projetá-los para que sejam reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis. E, em terceiro, inovar a uma velocidade sem precedentes em direção a novos modelos de negócio, design de produtos, materiais, tecnologias e sistemas de coleta que apoiem a transição para uma economia circular do plástico.
Perfil: Luísa Santiago estudou Comunicação Social e Jornalismo na UERJ, com pós-graduação em Gestão Ambiental pela UFRJ, e mestrado em Práticas de Desenvolvimento Sustentável pela UFRRJ e a Rede Global de Mestrados em Práticas de Desenvolvimento Sustentável. Ingressou na Fundação Ellen MacArthur em 2015, quando ajudou a estabelecer o escritório do Brasil, o primeiro fora da Europa. Mais recentemente, liderou a expansão para um enfoque regional sobre a América Latina, uma região estratégica na abordagem internacional da Fundação para acelerar a transição para uma economia circular.
O conceito de economia circular no Brasil tem sido comunicado largamente como se fosse um sinônimo de reciclagem ou de reaproveitamento de materiais. Qual a melhor definição de economia circular que deve ser difundida?
Na economia circular, é fundamental a ideia de dissociar a atividade econômica do consumo de recursos finitos. Os produtos e serviços são concebidos para que não gerem resíduo ou poluição. Mecanismos como compartilhamento, manutenção, remanufatura e (em último caso) reciclagem garantem que os produtos e materiais que colocamos no mercado continuem gerando valor na economia. Pensando em produtos de base biológica, como alimentos ou tecidos, o seu design deve preservar a pureza dos materiais para que possam retornar ao solo em segurança e regenerar sistemas naturais.
É importante notar a intencionalidade neste modelo. A ideia de não-geração de resíduo deve guiar o processo de design dos produtos e serviços – em vez de acontecer apenas no pós-uso, quando um resíduo já tiver sido gerado (e então se pensa em como extrair algum valor residual a partir dele).
Como a economia circular se relaciona e se complementa com ações como redução, reutilização, reciclagem e Avaliação de Ciclo de Vida (ACV)?
Estratégias como reutilização e reciclagem fazem parte da visão de uma economia circular, dentro da ideia de manter produtos e materiais em uso. Entretanto, nessa visão existe uma hierarquia de soluções em que se prioriza aquelas que preservam mais valor. Um modelo de reúso, por exemplo, mantém o produto circulando e gerando valor em seu estado original, enquanto a reciclagem preserva apenas parte do valor do material e perde grande parte da energia e do capital empregados na fabricação do produto em si. Por isso, a reciclagem é a última opção em uma economia circular.
Como a economia circular pode se aplicar a materiais, produtos, processos, serviços e design, no setor de embalagens?
Em 2016, nossas análises revelaram que se seguirmos na trajetória atual, o oceano poderá ter mais plástico do que peixes até 2050. O estudo Breaking the Plastic Wave reforça a necessidade urgente de se adotar uma abordagem de economia circular no setor de embalagens plásticas, a fim de evitar esse cenário (acesse aqui o documento em português que comenta o estudo).
A visão de uma economia circular para o plástico, em que nunca se torne resíduo ou poluição, inclui as seguintes estratégias complementares. Primeiro, eliminar os plásticos que não precisamos, não só através da proibição de canudos ou sacolas, mas também através da ampliação de novos modelos de entrega sem embalagem ou do uso de embalagens reutilizáveis. Em segundo lugar, circular todos os itens plásticos dos quais precisamos, o que envolve projetar esses itens para que sejam reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis. E, em terceiro, inovar a uma velocidade sem precedentes em direção a novos modelos de negócio, design de produtos, materiais, tecnologias e sistemas de coleta que apoiem a transição para uma economia circular do plástico.
De acordo com esse estudo, em comparação ao cenário atual, a transição para uma economia circular do plástico tem o potencial de reduzir em 80% o volume desse material que chega aos oceanos anualmente, gerar uma economia anual de US$ 200 bilhões, reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 25% e a criar 700 mil empregos adicionais até 2040.
Sabemos que embalagens servem não só para proteger os produtos, como também conter informações e selos sobre eles. Ou mesmo ganhar espaço na prateleira e assim chamar a atenção do consumidor, com tamanhos que vão além do necessário. Mas, do ponto de vista estritamente ambiental, a melhor embalagem é aquela que não existe?
De fato, as embalagens possuem finalidades diversas e é difícil tirá-las completamente de contexto. Em uma economia circular para o plástico, a prioridade é garantir que o plástico retenha o seu valor e estimular a criação da infraestrutura necessária para mantê-lo em circulação, de modo que não seja mais enviado a aterro, incinerado ou depositado no meio ambiente.
Onde for possível entregar produtos sem a necessidade de embalagem, é recomendada, sim, a sua eliminação. Entretanto, onde as embalagens se fizerem necessárias, recomenda-se projetá-las para que sejam reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis e investir na infraestrutura necessária para a sua circulação. Em ambos os casos, as estratégias recomendadas poderão ganhar cada vez mais escala com a aceleração de processos de inovação.
Na economia circular, as metas principais são relacionadas à redução de resíduos, com reincorporação máxima dos materiais no processo produtivo ? Ou têm igual peso a redução da pegada de carbono e a redução de água que a economia circular pode proporcionar?
A economia circular propõe a eliminação de resíduos desde o princípio, através de processos de design circulares apoiados por estratégias que ajudem a manter produtos e materiais circulando na economia. Por meio desta abordagem, é possível tratar de alguns dos principais desafios da atualidade, como poluição e mudança climática, uma vez que gera grandes benefícios econômicos, ambientais e climáticos.
Segundo estimativas de um relatório lançado por nós no ano passado, uma economia circular aplicada a cinco áreas chave (cimento, plástico, aço, alumínio e alimentos) pode gerar uma redução nas emissões globais de gases do efeito estufa equivalente às emissões atuais de todas as formas de transporte, sendo assim um componente crucial para tratar dos 45% de emissões globais que não podem ser solucionadas pela transição energética.
O fato de o plástico não ser processado indefinidamente, pois perde propriedades, faz dele um material menos adequado para a economia circular?
Dados os desafios que o plástico representa como material, a eliminação de embalagens plásticas onde não forem necessárias é recomendada. Isso pode significar tanto a ausência de embalagem como modelos de reúso que permitam a circulação do plástico sem passar por processamento. Entretanto, entendemos que as propriedades únicas dos plásticos fazem com que hoje eles sejam necessários em algumas aplicações. Nesses casos, são extremamente importantes o design e a inovação, para garantir que esses plásticos possam ser reutilizados, reciclados ou compostados em segurança e com maior retenção de valor.
No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) fez 10 anos, mas falta muito para avançar, inclusive quanto ao cumprimento do acordo setorial de embalagens. Na sua visão, por que há tanta dificuldade por parte das empresas?
Em algumas regiões do mundo, temos percebido uma mudança gradual na percepção das empresas sobre esquemas de responsabilidade estendida do produtor. Se a indústria até recentemente enxergava mecanismos desse tipo como um custo a ser evitado, hoje grande parte delas entende que sem eles não será possível alcançar suas metas corporativas em relação a plásticos de embalagem. O aspecto econômico da reciclagem também é comumente citado como um desafio à circulação de plásticos. Neste caso, a inovação em materiais ou modelos de reúso que alterem a estrutura de incentivo para a adoção dessas estratégias pode ser valiosa.
Esses exemplos ilustram a necessidade de uma abordagem robusta de economia circular para tratar dos desafios do problema de poluição por plásticos, já que nenhuma solução isolada é capaz de solucionar tamanho desafio. Por isso, fazemos um chamado a empresas e governos, para que tomem ações urgentes em três frentes complementares: estabelecer metas claras para a redução do uso de plásticos virgens; ampliar e garantir o funcionamento efetivo de esquemas de responsabilidade estendida do produtor e outros mecanismos equivalentes; e intensificar seus esforços de inovação.
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