Fala-se da Monalisa queimada na agenda ambiental, em referência ao patrimônio da biodiversidade destruído na forma de desmatamento e queimadas. Mas a agenda social brasileira também tem a sua obra-prima destruída: a diversidade sócio-étnica-cultural. O País carrega desigualdades sociais desde a sua origem como nação, desperdiçando os trunfos que a inclusão dos mais diversos atores da sociedade traria para o desenvolvimento nacional. Além disso, há uma concentração de riqueza e de oportunidades nas mãos de poucos privilegiados em níveis tão altos como pouco se vê pelo mundo. Esses dados são sabidos, mas a questão é que parece prevalecer na população um certo conformismo, como se esses aspectos fizessem parte da normalidade.
Mas o que o ESG tem a ver com isso? Tudo. Pelo menos na visão da professora da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), Anna Lygia Costa Rego. Nesta entrevista, ela define o ESG como uma infraestrutura para a concretização da responsabilidade social do indivíduo, uma oportunidade para se incorporar o benefício da coletividade como um ganho pessoal. “Talvez seja essa a maior utilidade do ESG: funcionar como um compasso moral sobre como ser melhor em relação à corrupção, às explorações de trabalho, ao meio ambiente, ao pagamento de impostos. ESG é isso, uma forma de ajudar brasileiros e brasileiras a serem melhores uns com os outros”.
Nascida em Copacabana, a carioca da gema Anna Lygia Costa Rego, de 42 anos, foi diretora para a América Latina da Standard & Poor’s, uma agência de classificação de risco pioneira na pauta profissionalizada de ESG. No ano passado, fundou o Núcleo de Regulação, Políticas Públicas e Psicologia Comportamental na Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), onde também é professora no curso de Direito no mestrado profissional e na pós-graduação. Formou-se em Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É doutora em Psicologia Econômica aplicada ao Direito.
Com altos e baixos, mais baixos do que altos, o Brasil carrega desigualdades sociais desde a sua origem como nação. A pandemia de Covid-19 parece ter evidenciado ainda mais a vulnerabilidade social brasileira. A sra. acha que esse quadro fortalece a agenda ESG de alguma forma?
Essa agenda está ganhando muita atenção e acho que o grande desafio da indústria e da sociedade é fazer as pautas ESG mostrarem resultado prático. Há algumas situações ainda, particularmente em relação ao S da sigla, em que a empresa joga para a plateia, fazendo algumas atividades isoladas que não provocam impacto de longo prazo. Outra questão é que o ESG é muito difícil de ser pensado em uma situação permanente de escassez econômica e de desigualdade social muito forte.
Acho que é preciso insistir no esclarecimento da população e dos formadores de políticas públicas que as pautas sociais prioritárias estão interligadas em todos elementos ESG. Não haverá comida suficiente se não se encontrarmos soluções para as questões de energia limpa ou da mudança climática. Respondendo à pergunta, a pandemia mostrou que a pauta ESG teve de se centrar no S para resolver a questão do isolamento social. Se as pessoas não percebessem o bem-estar coletivo como um tecido social interligado dificilmente teríamos conseguido manter estratégias de isolamento, de vacinação e de cuidado com o outro.
Os problemas sociais brasileiros são tão estruturais que talvez o ESG não consiga produzir grandes impactos positivos. O que é possível fazer para maximizar os impactos?
Estamos acumulando muita coisa. Uma crise sanitária sem parâmetros. Uma crise política, não só no Brasil, com uma polarização sem precedentes há muito tempo. E junto a isso, estamos no meio de uma revolução digital muito intensa. É uma conjunção astral de turbulências. Uma grande transformação está ocorrendo nas relações de trabalho. Boa parte das empresas que inovam nesse sistema de tecnologia, revolucionando inclusive os modos de produção, chegaram com um discurso que a princípio pareceu muito compatível com o ESG. Mas, na prática, vimos que não era bem isso.
Existe atualmente uma pressão forte pela flexibilização das relações de trabalho e das estruturas regulatórias. Esta é uma demanda tanto do setor tradicional da economia quanto do setor de maior inovação, que não necessariamente nos conduzirá a um modo de trabalho mais sustentável. Quando olhamos as novas cadeias de produção, nos serviços de entrega de alimentos ou de motoristas autônomos, enxergamos o mito do empreendedorismo. Estamos substituindo a relação de emprego por uma relação de autonomia/empreendedorismo, em que o trabalhador partilha o benefício do negócio mas não necessariamente partilha os riscos na mesma proporção. Quando eu digo “vou empreender”, significa que o risco e o benefício do negócio são meus.
Nesse sentido, a pauta ESG no Brasil poderia trabalhar para ajudar a redirecionar o movimento pela flexibilização. O ESG deve atuar como uma ponderação a ser feita no processo de mudança das relações de trabalho que está se conformando hoje em dia. Embora nossos problemas sociais sejam muito estruturados, felizmente também temos direitos sociais, especialmente trabalhistas, também muito estruturados no Brasil. Até mais do que em alguns outros países considerados maduros institucionalmente.
Nesse caso, existe uma contradição que precisa ser conciliada: a do liberalismo econômico, que tem grande adesão por parte empresariado, e essa vocação do ESG de ser moderador de um conflito trabalhista.
Sim, as mesmas empresas que estão impulsionando as pautas ESG também pedem essa flexibilização nas relações trabalhistas. Por isso que eu acho que o S, no sentido do comportamento da ação humana, é a parte mais importante da sigla. É o walk the talk [fazer o que se fala], é abrir mão da recompensa imediata e até do lucro para obter um benefício que não necessariamente virá para si. Essa é a ótica das externalidades. É a grande dificuldade e a beleza da discussão ESG. Não é uma discussão nova, a sustentabilidade está há décadas aí.
Tem empresas que são ESG muito antes de o ESG existir como sigla. A discussão dos bens públicos também é dos primórdios da teoria econômica. Mas nós temos essa dificuldade muito grande em exercer um certo altruísmo, não no sentido romantizado do termo, mas de enxergar o benefício coletivo da mesma forma como enxergamos um retorno econômico individual.
Existem pesquisas que mostram que empresas com mais diversidade tem melhor performance financeira. Você concorda com essa tese?
Sim. Um dos benefícios da diversidade é biológico. Encontramos o mesmo tipo de evidência em estudos sobre evolução social em abordagens de ecologia e psicologia aplicada à ecossistemas. E as empresas são ecossistemas. Elas têm muitos pontos de contato com aspectos evolutivos do comportamento humano. Quando falo disso, eu me refiro à psicologia experimental, com forte base científica, que produz análises desse tipo.
Colaboradores com bagagens, processos cognitivos e experiências diferentes aumentam a capacidade de a empresa performar melhor em diferentes métricas. Por exemplo, improvisar soluções não conhecidas, ter adaptabilidade a situações não previstas, fazer análises com mais nuances sobre riscos e sobre diferentes cenários. Além disso, quando se tem todo mundo representado na mesa, a chance de sair uma posição completamente invertida, do ponto de vista de aceitação social, é muito menor. Um ambiente com diversidade é muito mais seguro para a empresa.
Tem a questão das métricas que permitiriam a materialidade e dificultariam o greenwashing no ESG. A sra. vê algum avanço nessa área?
O greenwashing é uma manifestação de uma condição humana, meio inerente ao ser humano, que é o oportunismo, a possibilidade de utilizar uma situação em proveito próprio, e muitas vezes em detrimento do bem-estar de alguém, de uma forma não totalmente legítima. É um cálculo racional: ‘eu vou fazer ESG para ficar bem na fita’, ou, ‘minhas ações vão valorizar e serão mais bem negociadas’ e ‘como eu posso fazer o menos possível e receber o máximo de impacto’. O greenwashing faz todo o sentido para o executivo que utiliza o discurso de que as pessoas serão remuneradas se o ESG for a política implementada pela empresa.
O melhor antídoto para o greenwashing é o fortalecimento do ESG como valor e visão, é acreditar de fato que o ESG é a fórmula de reprodução social que faz mais sentido. Mas mudar valor é muito difícil. O economista californiano e Prêmio Nobel, Oliver Williamson [1932-2020], dizia que a diferença que se tem de tempos para modificar instituições em seus valores e costumes é acima de 100 anos. Então, de fato, é muito lenta essa transformação social em termos amplos. Inclusive, acho que estamos modificando certas coisas mais rápido do que o esperado.
E qual a influência da aplicação de métricas?
Elas são fundamentais para reduzir, para tornar mais difícil a prática do greenwashing. A minha questão em relação as métricas é que quem as produz também produz o modelo de negócio. Como o desenvolvimento das métricas é muito voltado às empresas negociadas em Bolsa de Valores, o framework é para empresas muito grandes. E aí, quem fará o score dessas empresas menores, dos fornecedores. Todo mundo precisa e pode ter um impacto social, não só as big corporations. Regras desse tipo podem ter o efeito de concentrar ainda mais o mercado porque o framework de ESG é tão pesado que só aquela empresa gigantesca conseguirá fazer. A pequena não vai nem tentar.
O que seria um bom modelo para médias e pequenas empresas?
Não precisa ser tão sofisticado. Às vezes, a empresa só apoia a escolinha da esquina. Isso já é o suficiente para o cliente ter uma percepção diferente. O ESG, como arcabouço, tem de ser de todo mundo e todo mundo tem de ter a sua régua. Nesse sentido, temos uma carência de métricas voltadas para pequenas e médias empresas que estão nas franjas das cadeias de valor.
Mas, volto a falar, acho que métricas mais robustas são necessárias para o mercado financeiro e empresas de grande porte. Elas profissionalizam e geram comparabilidade. Métricas são importantes para contabilização de risco, de fluxo de caixa, para a capacidade de contratar etc.
E até que ponto o setor financeiro está disposto e consegue fazer subir essa régua nas grande empresas?
Na minha visão, esses agentes hoje estão tendo um papel social mais forte até do que o próprio Estado nessas discussões. Pensando em Brasil, as grandes empresas estão tendo um protagonismo nessa discussão que há muito tempo não se via. Basta fazermos uma métrica simples, de quantas vezes as instituições financeiras se posicionaram publicamente sobre temas de sustentabilidade, de políticas de accountability das suas ações em comparação ao que elas mesmas faziam na década de 1980 ou 1990. Hoje, existem instituições financeiras, como o Nubank, por exemplo, que levam muito a sério seus compromissos de accountability. As posturas do Nubank sobre diversidade, inclusão financeira são paradigmáticas. As instituições financeira tradicionais já faziam isso em algum grau, mas hoje existe esse clamor por parte dos clientes, que embora estejam desarticulados por causa da pandemia, neste caso, estão com mais poder em função da internet e da economia centrada no consumidor. Talvez a situação só não esteja mais crítica porque o sistema financeiro está protagonizando essas discussões.
Mas o Nubank deu uma “escorregada” no ano passado sobre uma questão racial e houve reações contundentes da sociedade [a cofundadora da instituição, Cristina Junqueira, disse, em entrevista ao programa Roda Viva, na TV Cultura, que o Nubank tinha dificuldade de contratar executivos negros para posições de liderança por falta dos requisitos técnicos].
Esse episódio acabou se transformando em um case positivo. Por mais que a declaração [da cofundadora da instituição, Cristina Junqueira] não tenha sido feliz, o Nubank manteve o debate sobre aquela questão. Quando uma organização continua dialogando permanentemente sobre um problema da própria empresa, em vez de abafá-lo, mostra uma atitude que não víamos há muito tempo. Houve retratação, houve a contratação de pessoas de perfis étnicos – existe uma diversidade muito grande nas equipes, não só racial, mas com várias outras características –, e muita reflexão sobre o que mais pode ser feito.
Se equivocar, ou ter uma posição questionável, é uma realidade passível a todo mundo, de qualquer área. A diferença é a forma de encarar o equívoco e as ações adotadas a partir disso. Eles escolheram olhar, olhar e olhar. Continuam colocando o dedo na própria ferida e isso é uma forma diferente de lidar com um problema reputacional. Este é um grande exemplo de quando o ESG particularmente o S, realmente acontece. Quando se tem isso, tudo se torna mais crível.
A questão da inclusão ao crédito é uma demanda que as fintechs, como o Nubank, estão ajudando a resolver?
Sim e não. O sim é no sentido de redução dos custos de transação, de acesso ao crédito etc. O não diz respeito ao fato de o brasileiro ter um problema muito antigo com dívidas. O seu nível de endividamento é muito alto. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem uma pauta de educação financeira desenvolvida há muitos anos, mas a situação ainda é muito difícil. As pessoas caem em golpes financeiros de tempos em tempos. Do ponto de vista de inserção ao crédito, temos muitas possibilidades, embora muito ainda a ser feito junto aos desbancarizados. De novo, precisamos do S para saber lidar isso, pois o superendividamento é endêmico.
Nesse caso, podemos dizer que a educação financeira está entre as pautas mais urgentes no ESG?
Sem dúvida. Existem mudanças na infraestrutura financeira que facilitarão o crédito, como o open banking e o Pix, por exemplo, e que pedem essa educação. Quando se libera esse tipo de inovação financeira, que é positiva, é preciso garantir que existe alguém do outro lado do balcão capacitado para lidar com a questão do superendividamento. Pessoas incapacitadas de lidar com o cronograma de pagamentos aos seus credores não é um problema só financeiro, que se liquida numa transação. Uma pessoa que chega a uma situação de incapacidade de organizar seu fluxo de pagamentos é alguém que está com muitos problemas, inclusive em outras searas. É uma pessoa vulnerável socialmente, em termos de saúde mental. Quando um banco oferece os instrumentos, mas não apoia o indivíduo a lidar melhor com dívida, pode-se dizer que está oferecendo a sobremesa antes do jantar.
A sra. acha que o Brasil está atrasado nessa agenda ESG em relação a países desenvolvidos?
Estamos falando de pontos de partida diferentes. Acho que os países ricos tem uma condição que lhes permite sofisticar mais essa discussão. No entanto, por mais que estejamos em uma situação de escassez real e percebida maior do que em países onde a discussão ESG já é mais avançada, isso não significa o ESG não seja uma pauta muito importante para nós, inclusive com um poder transformador muito maior.
Várias coisas no Brasil nós não fazemos bem por não termos essa responsabilidade social individual sobre as coisas. Independente do grau de conforto financeiro ou de educação, essa sensação de privação que temos sobre várias coisas nos torna muito permissivos a nós mesmos.
O ESG é uma infraestrutura para a concretização da responsabilidade social do indivíduo, é uma forma de incorporarmos o benefício da coletividade. Talvez seja essa a sua maior utilidade, funcionar como um compasso moral sobre como ser melhor em relação à corrupção, às explorações de trabalho, ao meio ambiente, ao pagamento de impostos etc. ESG é isso, uma forma de ajudar brasileiros e brasileiras a serem melhores uns com os outros.
Leia mais na edição especial sobre ESG produzida em parceria com a Global Reporting Initiative.