O mapa geopolítico criado para o planejamento da região permanece vivo e inspira novas gerações de pensadores sobre o futuro da maior floresta tropical do mundo, diante da emergência da mudança do clima e das desigualdades sociais
Por Sérgio Adeodato
O conceito de Amazônia Legal nasceu na antiga Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), criada em janeiro 1953 por Getúlio Vargas, um ano antes de sua morte, com a finalidade de promover o desenvolvimento da agropecuária, a modernização do extrativismo e a integração da região à economia nacional. Regulamentada em outubro daquele ano com 4% do orçamento federal para investimentos, a iniciativa falhou. Entre outras razões, porque se dedicou mais a linhas de crédito para a borracha – em decadência após dois ciclos de apogeu comercial – e não investiu o suficiente em outros produtos e na infraestrutura social e viária da região. O órgão acabou extinto com o surgimento, em 1966, da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), sob a égide do governo militar e dos incentivos fiscais para desmatar, mas o mapa oficial de base para o planejamento no território amazônico permaneceu vivo.
Sete décadas depois, a Amazônia Legal, referência geopolítica às ações públicas e privadas, retoma as origens no viés da valorização econômica e redução das desigualdades entre as regiões do País, mas com novos olhares.
“O conceito de Amazônia Legal é chave para o entendimento da diversidade da região e da transição entre os biomas”, afirma Adma Hamam de Figueiredo, gerente de atlas e representações do território do IBGE.
Em 2020, o mapa foi revisado com a atualização da malha urbana e dos limites municipais, úteis à compreensão da infraestrutura logística regional. A área original permaneceu inalterada até 1977, quando foi criado o Estado do Mato Grosso do Sul, estendendo os limites da Amazônia para além do Paralelo 16, de modo a coincidir com as divisas entre Mato Grosso e o novo estado.
A Constituição de 1988, que criou o estado de Tocantins, não faz qualquer referência a alteração dos limites da Amazônia, diz Figueiredo. A mudança só ocorreu em 2001, quando a Medida Provisória nº 2.146-1, de 4 de maio, extinguiu a Sudam e criou a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA). Nessa legislação, o limite representado pelo Paralelo 13 foi substituído pela divisa entre Goiás e Tocantins, o que na prática excluiu cinco municípios de Goiás que até então pertenciam à Amazônia Legal. Os limites permaneceram assim na Lei Complementar nº 124, de 3 de janeiro de 2007, que recriou a Sudam.
“Precisamos discutir a economia e a conservação da região no contexto macro, para além da área florestada”, observa Figueiredo. Segundo ela, pode-se até discutir o recorte espacial da Amazônia Legal, mas o conceito continua válido, com a necessidade de que as referências do território sejam incorporadas pela sociedade. A expressão, de fato, popularizou-se. De acordo com a especialista, a palavra “legal” para a Amazônia geopolítica, inicialmente um adjetivo que mostrava o caráter jurídico nos documentos, passou a compor um nome próprio para a região, contrapondo-a à região amazônica definida pelo bioma ou pela bacia hidrográfica.
Com 5.015.068,18 km², correspondentes a 58,9% do território brasileiro, a Amazônia Legal abrange nove estados e 772 municípios, incluindo áreas de floresta tropical, cerrado e outras paisagens. Se fosse um país, seria o 6º maior do mundo em extensão territorial. Os limites diferem-se em relação ao Bioma Amazônico, que representa 49,5% do território brasileiro, reunindo dois terços das florestas naturais do País. No caso da Pan-Amazônia, considerando áreas amazônicas do Brasil (64%) e oito países vizinhos, a extensão soma 8,4 milhões de km², de acordo com o MapBiomas (ver infográfico abaixo). Com 83,8% de vegetação natural, a área corresponde à maior reserva de biodiversidade do planeta e teve definição geopolítica no Tratado de Cooperação Amazônica.
Base para aplicação do Código Florestal
A referência da Amazônia Legal é adotada como base para políticas de incentivos fiscais no contexto do planejamento econômico da região, principalmente incentivos fiscais e transferência de renda, bem como estudos científicos e legislações na área social e ambiental, com destaque para o Código Florestal (Lei 12.651/2012). Além de Áreas de Preservação Permanente (APP), é obrigatório manter vegetação nativa como Reserva Legal (RL) nas propriedades rurais, em percentuais mínimos que variam conforme o bioma. Na Amazônia Legal, a lei determina a manutenção de RL em 80% da área dos imóveis situados em floresta; 35% em áreas de cerrado e 20% em campos gerais – o que, por vezes, acende conflitos devido a interesses de grupos políticos e econômicos no sentido de reduzir restrições e aumentar o desmatamento.
É o caso do Projeto de Lei nº 337/22, que exclui o estado de Mato Grosso da área da Amazônia Legal, alterando o Código Florestal. A iniciativa, apoiada pela bancada ruralista, tramita na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, tendo o deputado Zé Vitor (PL-MG) como relator. A proposta argumenta que há pouco mais de 11 milhões de hectares de déficit de Reserva Legal no País, 21,7% em Mato Grosso, “com alto custo de recuperação das áreas, injustificável para uma das regiões agrícolas mais importantes do País”.
“É uma bandeira política que só faz barulho, não tem qualquer base técnica e faria o desmatamento disparar”, reage Alice Thuault, diretora executiva do Instituto Centro de Vida (ICV) no Mato Grosso. A previsão seria a derrubada de 17 milhões de hectares que deixam de ser protegidos, inclusive 6,3 milhões de hectares de floresta em regeneração, com emissão de gases-estufa, além da perda dos incentivos fiscais da Sudam para empreendimentos na região.
A ciência já comprovou o potencial de aumentar a produção agropecuária sem levar a mais desmatamento. De acordo com Thuault, o Mato Grosso superou a questão de só poder desmatar 20% das propriedades rurais na área amazônica, ao estabelecer a meta estadual de desmatamento zero até 2030 – o que tem aberto portas a financiamentos externos pelo fato de estar na Amazônia Legal.
Referência para investimentos climáticos
A contar pelo fluxo de capital internacional esperado para toda região amazônica, em função da emergência climática do planeta, o natural é que estados e municípios queiram entrar – e não sair – do mapa. Segundo o secretário executivo de meio ambiente do Mato Grosso, Alex Sandro Marega, a posição já manifestada pelo governo estadual é de considerar e fortalecer ainda mais a presença da Amazônia, que cobre 60% do território mato-grossense. A floresta é alvo de financiamento climático de R$ 233 milhões do governo alemão e britânico, além dos recursos recebidos do Fundo Amazônia para capacitar as instituições públicas no combate ao desmatamento.
As pressões se evidenciam nos extremos geográficos da Amazônia Legal. Diante das regras do Código Florestal e maior fiscalização ambiental, aumentou o vazamento do desmatamento da Amazônia para o Cerrado, no rastro da demanda da soja e outras commodities agrícolas. É o caso da fronteira agrícola do Matopiba, região da quádrupla divisa entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, no entorno do limite-Leste da Amazônia legal.
No município de Imperatriz (MA), já dentro do mapa geopolítico, na franja oriental, monoculturas de eucalipto convivem com a tradição das quebradeiras de coco babaçu. Conflitos fundiários, devido à invasão de unidades de conservação e terras indígenas pontilham o mapa até o extremo-Norte, no Oiapoque (AP), cujo litoral é atualmente palco da polêmica sobre a produção de petróleo no mar amazônico. No Oeste, fronteira com o Peru e Colômbia, a chamada “Amazônia profunda” evidencia o aumento das ilegalidades em áreas remotas, com expansão de crimes ambientais e violência contra indígenas e quem defende a floresta em pé, como ocorreu na morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em Atalaia do Norte (AM), em 2022.
Contínua busca por um novo modelo de desenvolvimento
Novas agendas chegam à Amazônia Legal. “Trata-se de um conceito sempre atual que ganha ainda mais importância”, Marcello Brito, secretário executivo do Consórcio Amazônia Legal, que reúne os estados da região em estratégias comuns. Após quatro anos de gestão federal hostil aos temas ambientais, o objetivo é fortalecer a autonomia e o diálogo para a região criar políticas e buscar recursos na construção de um novo modelo de desenvolvimento.
“Há necessidade de sair do ‘ou’ e ir para o ‘e’ na questão econômica, porque será preciso conviver com produção de grãos e mineração: quem financiará a bioeconomia será a economia tradicional”, aponta Brito.
A Amazônia Legal representa força política para além da divisa entre os estados. Em paralelo, iniciativas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criado em 2004 e reeditado em 2023 pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, depende dos governos locais para implementação na floresta. Não é de hoje que o desafio de conciliar desenvolvimento econômico e preservação da floresta inspira o planejamento de governos, como o Plano Amazônia Sustentável (PAS), desenhado em 2003 com o pioneirismo de colocar pela primeira vez a região na estratégia maior do País – o Plano Plurianual (PPA) para 2004-2007. Por questões políticas, a iniciativa foi engavetada pelo governo federal e retomada com outra roupagem em 2008, colocando a desigualdade regional em segundo plano.
A versão original do plano partiu da rica diversidade socioeconômica e cultural da ocupação do território amazônico. “O principal segredo foi justamente o reconhecimento das diferenças marcadas que existem entre as três grandes regiões que estruturam o território da Amazônia Legal (Amazônia Ocidental, Amazônia Central e Arco do Povoamento Adensado)”, escreveu a geógrafa Bertha Becker (1930-2013), integrante da equipe de consultores do plano. O trabalho previu, entre várias obras de infraestrutura e medidas de gestão, o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da região.
Amazônia legal e os pensadores sobre o futuro da região
As reflexões dos pensadores sobre a Amazônia indicam desafios recorrentes, mais antigos do que imagina. Na visão de Becker, a respeito do que fazer para o desenvolvimento da região, “não existe um modelo a ser copiado simplesmente porque não há qualquer país tropical desenvolvido com a economia baseada em recursos sofisticados da floresta”.
Pioneira no pensamento sobre a bioeconomia amazônica, a geógrafa dizia: assim como o Cerrado se tornou grande produtor mundial de alimentos como resultado das pesquisas da Embrapa, o Vale do Paraíba se destacou como referência na indústria aeronáutica em função da Embraer, e polos do interior de São Paulo prosperaram no campo dos biocombustíveis com a revolução do Proálcool, igual vigor deveria ser empreendido para a transformação da Amazônia em meca da bioeconomia com base na floresta.
Segundo ela, “o computador não só promoveu notável difusão desse desafio; engendrou novas tecnologias que permitem a utilização da natureza em patamares mais nobres e que acentuaram a desigual distribuição geográfica dos centros científico-tecnológicos – localizados nos países centrais – e dos estoques de natureza, localizados nos países periféricos e semi periféricos”.
Dessa forma, conclui Becker, “valoriza-se e politiza-se a natureza, e a Amazônia torna-se símbolo desse desafio por dupla razão: a extensa e rica natureza e sua crescente degradação por avanço da fronteira móvel agropecuária. Intensa polêmica mundial sobre o destino da região impõe ao Brasil a responsabilidade de lidar com esse patrimônio natural como uma questão regional, nacional e global. Reconhece-se que a Amazônia oferece a oportunidade ímpar no mundo de conceber e implementar um novo padrão de desenvolvimento, sustentável, como uma experiência pioneira e criativa a ser transmitida para outras regiões tropicais úmidas do planeta, resguardadas suas particularidades historicamente construídas”.
Na bancada dos pensadores que marcaram a história da Amazônia Legal está Paulo Vanzolini (1924-2013), zoólogo da Universidade de São Paulo (USP) e compositor brasileiro famoso pela canção Volta por Cima. Dedicado ao estudo ecológico das sucessões florestais nas paisagens, o pesquisador adaptou a Teoria dos Refúgios a partir de pesquisas conjuntas com o estadunidense Ernest Williams (1914-1998) e o geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-2012).
“Refúgio” foi o nome dado ao fenômeno detectado nas expedições de Vanzolini pela Amazônia, quando o clima chega ao extremo de liquidar com uma determinada formação vegetal, reduzindo-a a pequenas porções. Assim formam-se espaços vazios no meio da mata fechada – ou seja, o processo de savanização hoje tão propalado, na emergência climática, com o nome de “ponto de não retorno”.
Aziz Ab’Saber, professor da USP e referência da ciência da biodiversidade amazônica, foi um dos primeiros geógrafos brasileiros a alertar a sociedade para a gravidade do desmatamento predatório e propor medidas para reduzi-lo. Engajado politicamente, defendia as potencialidades da Amazônia, alertava para o dramático quadro social e demonstrava grande empatia com relação às populações tradicionais, fruto das inúmeras viagens à região que inspiraram a obra Amazônia, do Discurso à Práxi”. Além do Zoneamento Ecológico-Econômico, o Projeto Floram – liderado por Ab’Saber, em 1990 – conquistou prestígio internacional ao apresentar as possibilidades de reflorestamento para fins ambientais, sociais e econômicos.
De igual modo, as realidades da Amazônia Legal influenciam o pesquisador Saint-Clair Cordeiro, da Universidade Federal do Pará (UFPA), responsável por trazer luzes à relação homem-natureza na região a partir da visão do geógrafo Milton Almeida dos Santos (1926-2001) para o que chama de “flexibilidade tropical”. Uma das contribuições de Santos foi destacar a necessidade de um patamar de qualidade de vida mais satisfatório e sintonizado com a dinâmica cotidiana e com as demandas cidadãs dos povos da Amazônia. O autor via o espaço amazônico, quanto aos temas tecnológicos e produtivos, como uma “região do fazer”.
São insights que ajudam a compreender as novas configurações socioespaciais da Amazônia contemporânea, com impacto no planejamento para a região. Ícone no campo da economia, Samuel Benchimol (1923-2002), professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), estava muito à frente do tempo: há mais de 50 anos falava da necessidade de uma valorização econômica dos benefícios ambientais gerados pela floresta amazônica ao mundo. O economista propôs um tipo de imposto global para custear esse pagamento – igual discussão que o Brasil e o mundo têm hoje, sob o conceito de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Com mais 150 livros publicados, o pensador de origem judaica-marroquina, radicado em Manaus, resume a sua visão sobre direitos e deveres na região, no Estatuto do Amazônida (leia no quadro abaixo).
ESTATUTO DO AMAZÔNIDA
por Samuel Benchimol
Considerando a importância da Amazônia Brasileira pela sua grandeza continental, peculiaridade georegional e extensão de sua bacia hidrográfica;
Pensando na extrema variedade e complexidade dos seus ecossistemas florestais e na grande biodiversidade de suas espécies;
Enfatizando o rico potencial de suas várzeas, igapós, terras firmes, campos e cerrados e os seus complexos ecossistemas florestais;
Relembrando o enorme potencial de seu sistema fluvial para aproveitamento energético, de transporte e navegação;
Recordando a abundância e variedade de seus recursos minerais, sua importância para a metalurgia e sua contribuição para a balança de pagamentos do país;
Examinando as recentes descobertas de hidrocarbonetos, petróleo e gás natural e suas grandes perspectivas de seu aproveitamento petroquímico e energético;
Registrando as conquistas já alcançadas no campo industrial, pela criação de polos avançados e produção de bens e serviços, no campo agrícola com as culturas de subsistência e matérias-primas e nas áreas próprias de criação da pecuária bovina, bufalina e criatório em geral;
Rememorando o potencial de seus inúmeros pesqueiros de água doce, salobra e salgada e a riqueza que essa diversidade representa para a piscicultura e para a produção de alimentos;
Analisando a importância das populações nativas de índios, caboclos e nordestinos, que constituem a base de nossa formação histórica e humana;
Observando a riqueza cultural dessa pluralidade cultural e étnica, cuja integridade devemos preservar por meio da manutenção de sua identidade e integração à sociedade nacional;
Auscultando a necessidade da educação em todos os níveis, da qualificação profissional, universitária e dos institutos de ciência, pesquisa, tecnologia e extensão;
Verificando que a cosmovisão da Amazônia Continental mostra que ela representa a vigésima parte da superfície terrestre; um quinto das disponibilidades mundiais de água doce; um terço das reservas mundiais de florestas latifoliadas; um décimo do biota universal; um quarto do volume mundial de carbono armazenado na sua biomassa vegetal; mais da metade do potencial hidrelétrico e gás natural do Brasil e dos minérios de ferro, bauxita, manganês, cassiterita, caulim, ouro, potássio e outros; quatro décimos da superfície da América do Sul; três quintos do Brasil e apenas quatro milésimos da população mundial.
Levando em conta essa realidade e amparado em toda uma vida consagrada ao estudo deste pedaço do Brasil, lanço aqui o Estatuto do Amazônida:
Todo Amazônida tem direito:
Ao pleno uso, gozo e fruição dos seus recursos naturais existentes na área, desde que o faça de modo não destrutivo. Fica estabelecido o seu direito à subsistência, liberdade de escolha, livre iniciativa, trabalho produtivo e justiça social, e resguardada a sobrevivência das gerações futuras e ao convívio harmonioso com a natureza;
A uma existência digna livre de quaisquer constrangimentos, injustiças e outras formas coercitivas que limitem o exercício de seus direitos de cidadania;
De usufruir os produtos da floresta, cuja venda, a preços justos, lhe permita um padrão de vida digno;
De utilizar os recursos pesqueiros de forma autossustentada, para garantir a alimentação de sua família, a elevação de seu padrão de vida e o exercício de atividade empresarial;
Nas zonas apropriadas, de se beneficiar dos seus bens minerais existentes na região, dos recursos hídricos para transporte e geração de energia elétrica, do uso de terras para fins agrícolas e para formação de campos de criação;
Todo Amazônida tem o dever:
De proteger os recursos naturais florestais, hídricos e terrestres de forma a garantir o desenvolvimento econômico e social equilibrado, conservando-os e preservando-os para as gerações atuais e futuras;
De resguardar as florestas naturais, parques nacionais, estações ecológicas, reservas biológicas, santuários da vida silvestres, monumentos cênicos e sítios arqueológicos;
De exigir proteção às populações indígenas, assegurando-lhes a demarcação e posse de suas terras e manutenção de sua identidade cultural;
De lutar pelos seus direitos à saúde, educação, transporte, obras de infraestrutura que permitam o desenvolvimento individual e de suas comunidades;
De reagir contra toda e qualquer forma de intervenção internacional que implique o constrangimento à soberania brasileira, sem embargo ao reconhecimento à cooperação internacional legítima e bem intencionada, para promoção de defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Dos “anos dourados” à emergência climática
Grandes fluxos migratórios marcam a história da região, desde a mão de obra nordestina como “soldados da borracha”, muito antes da criação da Amazônia Legal, até a chegada dos contingentes de colonos da Região Sul estimulados a ocupar a floresta em nome da soberania nacional nos governos militares, após 1964. “O discurso militar esvaziou a ideia de uma Amazônia para os amazônidas, prevista na origem da Amazônia Legal, na década de 1950”, afirma o geógrafo Claudio Egler, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu pai, o botânico Walter Alberto Egler, ex-diretor do Museu Emílio Goeldi, em Belém, morreu em expedição científica no Rio Jari quando o barco enguiçou e despencou de uma cachoeira de 28 metros, em 1961.
Era tempo dos “anos dourados”, quando o iluminismo da ciência e as promessas da modernidade batiam à porta da Amazônia como um grande celeiro de descobertas, décadas mais tarde transformado no principal corredor de exportação da soja e minério de ferro brasileiros. Naquela época, diz Egler, a questão ambiental e social já era considerada no debate do desenvolvimento econômico, a exemplo do trabalho realizado junto com Bertha Becker na metodologia para o Zoneamento Ecológico-Econômico da região.
“Havia clareza de que manter floresta em pé permitiria rentabilidade crescente, ao contrário do desmatamento, mas faltava um projeto nacional voltado para a Amazônia, desafio que permanece muito atual”, aponta Egler.
Na análise de Wanderley Messias da Costa, professor do Departamento de Geografia da USP e diretor de projetos do MMA na década de 1990, “a Amazônia contemporânea começou com Getúlio Vargas; antes não existia como questão nacional”. Ele destaca a existência de um ambiente planejador na época, um mix de modernização e nacionalismo, que se traduziu, por exemplo, na criação do BNDES (1952) e Petrobras (1953). O cenário, segundo Costa, teve continuidade com a presidência de Juscelino Kubitschek, no slogan de avançar “50 anos em cinco”, resultando no início das grandes obras viárias na Amazônia – como a rodovia Belém-Brasília – vetores do desmatamento ao longo da história.
“A Amazônia Legal ganhou consistência empírica, como plataforma de planejamento, com o Plano de Integração Nacional (PIN) do regime militar, na década de 1970, com atividades subsidiadas por incentivos fiscais”, pondera o geógrafo, pessimista em relação ao quadro atual. “Os problemas de hoje, a contar pela expansão baseada na supressão de floresta, continuam iguais ou piores que antes”, diz. Na análise de Costa, “são as mesmas forças do passado que se atualizam, integradas a uma nova agenda para a Amazônia, vítima de um processo que começou nos anos 1950 e não acabou ainda”.
Para o geógrafo, há uma grande distância entre discurso e prática nos temas da Amazônia Legal, “criada de cima para baixo, sem ouvir estados e municípios, no contexto de uma política intervencionista”. Os caminhos de solução, como ele próprio define, já são clichês: “passam pelo planejamento descentralizado, participativo e democrático, envolvendo atores locais e países vizinhos”. Diante da urbanização, uma tendência mundial, manter a população no interior com capacidade de sustentar projetos de desenvolvimento sustentável é um dos principais desafios. “A expressão Amazônia Legal traduz um modo de ocupação que precisa ser revisto”, conclui Costa.
Mapa de riquezas e desigualdades
Segundo o MapBiomas, em quadro décadas, o território perdeu 53,2 milhões de hectares de vegetação nativa, área equivalente à da França. Na Amazônia, a área ocupada pelo agro saltou de 3% para 16%. Além do antigo Arco do Desmatamento, na parcela oriental, formou-se uma nova fronteira de devastação na porção mais interior, na divisa entre Amazonas, Rondônia e Acre, conhecida como Amacro. Lá, o uso agropecuário aumentou 10 vezes nos últimos 38 anos. “Estamos nos distanciando, em vez de nos aproximar do objetivo de proteger a vegetação nativa brasileira previsto no Código Florestal e do compromisso de zerar o desmatamento até o final desta década”, adverte Tasso Azevedo, coordenador-geral do MapBiomas.
Junto ao desmatamento, a população da Amazônia Legal aumentou de 8,2 milhões em 1972 para 28,1 milhões de habitantes em 2020. O Produto Interno Bruto (PIB) Real da região representa 8,7% do brasileiro, com metade das emissões de carbono totais do País. Ao mesmo tempo, o território possui os piores índices sociais entre as regiões brasileiras, com expressivo aumento da criminalidade. Segundo o IBGE, 29% dos jovens de 15 a 29 anos da Região Norte estão fora do mercado de trabalho, enquanto a média do País, divulgada em 2023, é de 18%.
O quadro requer novas abordagens para planejar investimentos e políticas públicas, o que confere maior complexidade ao papel geopolítico da Amazônia Legal – objeto de estudos para uma nova geração de pensadores. Beto Veríssimo, pesquisador do Imazon e da iniciativa Amazônia 2030, enxerga a necessidade de reconhecer as diferentes “Amazônias” como pré-condição para qualquer plano de desenvolvimento sustentável e conservação da região. Em estudo desenvolvido em parceria com Juliano Assunção, Paulo Barreto, Manuele Lima e Daniel Santos, são classificadas cinco macrozonas distintas: Amazônia florestal; Amazônia florestal sob pressão; Amazônia desmatada (que já perdeu grande parte da sua floresta); a Amazônia não florestal (principalmente ocupada por cerrado) e a Amazônia urbana.
Segundo os pesquisadores, é preciso compreender a Amazônia como um todo, sem excluir as individualidades de cada um dos universos encontrados na região. Bertha Becker, nos anos 1990, já dizia que esse é o único caminho para conciliar a preservação e o desenvolvimento – advertência que ganha coro três décadas depois, com algumas diferenças. Diante das demandas globais, os critérios para direcionar investimentos incorporam novos parâmetros: a mudança climática, somada à desigualdade social.
Deve-se considerar a diversidade de paisagens e modos de vida. “Uma visão integrada exige conexão entre agendas de diferentes setores estratégicos para além do econômico, como educação, saúde e cidadania, com governança marcada pelo diálogo entre os que estão na Amazônia Legal”, afirma Livia Pagotto, secretária executiva de Uma Concertação para a Amazônia.
Aos 70 anos, a antiga referência geopolítica permanece campo para propostas de modelos de desenvolvimento – agora, à luz do baixo carbono. Além de iniciativas como a Amazônia 4.0, um estudo liderado pelo WRI Brasil concluiu uma nova economia amazônica sem desmatamento, condizente com a mitigação climática, poderá somar R$ 40 bilhões anuais ao PIB da região a partir de 2050, com 312 mil empregos adicionais, além de mais 81 milhões de hectares de florestas e 19% de estoque de carbono. Investimentos em logística, conectividade, energia limpa e tecnologias verdes na agropecuária e mineração se combinam com o desenvolvimento da bioeconomia da floresta, para atingir esse patamar de resultados e mudar as estatísticas da Amazônia Legal.
Uma Amazônia Legal – e não a ilegal, aquela dos garimpos, da grilagem de terras, da madeira predatória e dos crimes contra quem toma decisões em favor da floresta e das pessoas que nela vivem. Os riscos da emergência climática se impõem. Olhando para frente no tempo, o velho mapa vai ter um caminho de muitas histórias a contar. Espera-se.