[Acervo de conhecimento]
Programa Florestas do Futuro, pioneiro na restauração da Mata Atlântica, completa 20 anos de inteligência na produção de mudas, prospecção de áreas, técnicas de plantio, monitoramento e articulação com produtores, empresas e poder público
Por Sérgio Adeodato, de Itu
Após 1.396 km de expedição por áreas de restauração florestal em nove municípios paulistas e mineiros, a paisagem da região de Itu (SP), ponto final do percurso, representa a síntese dos desafios do mais rico e populoso bioma brasileiro para repor a vegetação nativa perdida. O carro cruza grandes extensões de plantações de cana, pastagens com gado, sítios e áreas periurbanas que se misturam entre as cidades. No volante, o supervisor de campo da SOS Mata Atlântica, Roberto Cândido, o Betão, olha para os lados e diz: “Vejam o resultado após longa história de impactos que agora precisam ser resolvidos na emergência da mudança climática”.
Aqui e acolá, nacos isolados de floresta dão a medida do que originalmente existia – e do que é possível recuperar. Na Rodovia Marechal Rondon (SP-300), homenagem ao engenheiro militar e sertanista que instalou linhas telegráficas, fez contato com indígenas e desbravou a Amazônia no início do século XX, o retrato expõe cicatrizes. São resultado do processo de interiorização, iniciado muito tempo antes na rota dos bandeirantes em território paulista. Ao longo da estrada, efeitos dos ciclos econômicos e da expansão das cidades estão por toda parte. Mas há sinais de que, para a natureza, não é uma guerra perdida.
No Km 118, a placa no portal de entrada indica: Centro de Experimentos Florestais SOS Mata Atlântica – Heineken Brasil. Com 526 hectares, no município de Itu, o local funciona como núcleo de referência e inteligência no trabalho de restaurar o bioma, considerando toda a cadeia produtiva – da coleta de sementes e viveiro de mudas até o diagnóstico das áreas, a articulação para envolvimento das propriedades rurais, planejamento e execução do plantio e monitoramento das novas florestas. “É um polo propagador de boas práticas e engajamento”, observa Betão, na chegada ao centro, onde a estrutura inclui instalações para capacitação profissional e educação ambiental com crianças e jovens de escolas da região.
Referência para replicar a restauração
Com 414 anos de história que impactaram acentuadamente os recursos naturais, o município de Itu se localiza em região de transição ecológica entre Mata Atlântica e Cerrado, com o Rio Tietê nas proximidades, sob o risco da degradação. Em condições ambientais hostis, restaurar o que foi destruído parecia improvável, mais de uma década atrás.
“Mostramos ser possível criar uma floresta funcional, com conservação do solo e proteção de nascentes”, ressalta Betão.
Cedida pela antiga Brasil Kirin (hoje Heineken), a área do Centro de Experimentos abriga os mananciais que abastecem de água a unidade da indústria de bebidas no entorno, a 8 Km de distância. Na crise hídrica de 2014-2015 que assolou a Região Sudeste, o plantio de árvores pela SOS Mata Atlântica, realizado neste local desde 2007, regenerou o ciclo hidrológico, evitou que a produção da fábrica fosse paralisada e ajudou no abastecimento de moradores. Serviu, ainda, como aprendizado para novas ações no bioma.
Até o momento, foram plantadas 720 mil mudas de diversas espécies nativas na propriedade, abrangendo 380 hectares em restauração. Com novos visitantes: câmeras instaladas na mata já registraram a presença de veado, jacu, paca e onça-parda – essa, inclusive, uma família toda, com mãe e filhotes. É uma vitrine de como a restauração do bioma é possível e pode gerar bons resultados à qualidade de vida e à economia.
Em toda a Mata Atlântica, desde o ano 2000, a ONG apoiou o plantio de 43,6 milhões mudas em várias iniciativas, em cerca de 24,7 mil hectares. No total, foram aproximadamente 1,7 mil proprietários beneficiados. No rastro dos números, está o trabalho que inclui poder de articulação com parceiros de diferentes setores, profundo conhecimento sobre o bioma e qualificação técnica na restauração de ecossistemas, com ganho de escala e resultados que fazem a diferença diante dos atuais desafios socioambientais.
“É uma história de aprendizados, erros e acertos que permitem um cenário atual de maturidade, confiança e segurança para os investimentos”, enfatiza Rafael Bitante Fernandes, gerente de restauração florestal da SOS Mata Atlântica.
No Centro de Experimentos em Itu, onde hoje também funciona a sede da ONG, as equipes têm acesso a novas tecnologias, como um sistema de gestão com dados geoespaciais das áreas, a existência de fragmentos de mata, os diferentes estágios de recuperação e outras informações que possibilitam controlar remotamente o trabalho e tomar decisões. “O sistema permite lidar com parceiros em ações de escala muito reduzida, seja filantrópica ou compensatória, de forma a agrupar áreas pequenas de plantios de mudas para fazer grandes”, explica Rafael.
A gestão se torna mais ágil. É possível gerar relatórios referentes aos vários parceiros de forma rápida, com banco de dados da história dos projetos, fotos, vídeos e toda a documentação envolvida, datas, técnicas aplicadas e controle financeiro, por exemplo. “É uma grande memória dos projetos, que contribui para o aprimoramento das iniciativas”, afirma o gerente. Em paralelo, acrescenta, “podemos entender em que época conseguimos mais parcerias e contratos para restaurar, de quem adquirimos mais mudas e onde plantamos mais”. Como resultado, são gerados indicadores estratégicos para melhorar e aumentar as ações de plantar árvores na Mata Atlântica.
Demanda crescente
No centro das ações está o programa Florestas do Futuro, mantido pela SOS Mata Atlântica desde 2004, reunindo sociedade civil organizada, iniciativa privada, proprietários de terras e poder público em projetos participativos de restauração florestal. Pessoas físicas e empresas podem colaborar de duas maneiras: como participação voluntária ou compensação obrigatória no Estado de São Paulo via Termo de Compromisso de Recuperação Ambiental (TCRA).
O modelo promove a aproximação entre propriedades rurais que precisam restaurar áreas para cumprir a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/12) e doadores. As mudas são direcionadas ao campo com base no mapeamento de áreas prioritárias para restauração no bioma, entre outros critérios. A ONG mobiliza viveiros e prestadores de serviço para o diagnóstico das áreas, plantio das mudas, manutenção e monitoramento, fomentando a cadeia da restauração.
O objetivo é entregar florestas jovens, funcionais, que cumpram o seu papel ecológico, em projetos de cinco a oito anos – e não plantar mudas indiscriminadamente. É preciso que as áreas trabalhadas tenham capacidade de prestar serviços ecossistêmicos, abrigar a fauna.
A demanda reflete as principais tendências da restauração florestal no País. Sem o trabalho da SOS Mata Atlântica e outras organizações na temática, seria ainda mais desafiador o cumprimento do Código Florestal. Segundo Rafael, além da solução de passivos de Reserva Legal (RL) e de Área de Preservação Permanente (APP), é crescente a percepção dos benefícios da convivência entre florestas e produção agrícola. Polinização e segurança hídrica são alguns exemplos. Há, ainda, expectativas no mercado climático: seis mudas representam a captura de uma tonelada de carbono da atmosfera, conforme padrão utilizado pelo Florestas do Futuro junto a empresas doadoras interessadas em reportar mitigação climática. “É forte o movimento de adotar critérios ambientais e sociais nas cadeias de fornecedores em diversos setores da economia”, observa Rafael.
Ele reforça o papel das organizações da sociedade civil nessa articulação com atores do uso da terra, como faz a SOS Mata Atlântica com as credenciais do pioneirismo no setor. O quadro do bioma mais devastado do País exige ação. Resta somente 24% de cobertura florestal na área original, e desse total apenas 12,4% correspondem a florestas maduras e bem preservadas. O que sobrou está distribuído de maneira muito desigual.
Zerar o desmatamento é essencial e urgente, diz Rafael, mas não é suficiente para reduzir os riscos atuais e futuros das mudanças climáticas e desabastecimento de água. A restauração da floresta é fundamental na região mais populosa e de maior peso no Produto Interno Bruto (PIB) do País.
Para cumprir a legislação, os sete Estados do Sul e Sudeste do País precisam recuperar 2,3 milhões de hectares de APP, florestas que protegiam nascentes e beiras de rio, desmatadas ilegalmente, segundo estudo publicado por pesquisadores da SOS Mata Atlântica, Imaflora, Universidade de São Paulo (USP) e Observatório do Código Florestal. Há, ainda, 1,3 milhão de hectares de passivos referentes ao requisito da Reserva Legal, que precisam restaurados ou compensados com vegetação nativa.
“Há duas agendas que precisam andar em paralelo. Quando a gente fala de restauração florestal, é muito importante defender a agenda de conservação dos remanescentes, dos fragmentos de mata que ainda existem. Desmatamento zero na Mata Atlântica é urgente. Não adianta desenvolver toda uma tecnologia de restauração e continuar perdendo área do bioma por desmatamento”, afirma Rafael.
Ambas as agendas exercem papel essencial como solução da natureza no enfrentamento das mudanças climáticas, junto à manutenção da biodiversidade. “Há um ganho paralelo, quanto ao aspecto social, com geração de emprego e renda na cadeia de serviços da restauração, essencial ao aumento da escala da atividade”, aponta o gerente. “A gente só colhe benefícios”, diz.
Na visão de Ana Beatriz Liaffa, coordenadora de restauração do Florestas do Futuro Voluntário, na SOS Mata Atlântica, “o interesse pela regularização ambiental como forma de demonstrar responsabilidade e obter maior valorização dos produtos é um dos fatores que mais têm mobilizado plantios de árvores nativas”.
Segundo ela, o bioma tem como característica reunir muito mais atores, com pequenas áreas, na grande maioria privadas, o que aumenta a complexidade do trabalho. “Como casa da maioria dos brasileiros, há uma conexão mais rápida para o tema, com visibilidade nunca tão forte como agora”, avalia. A demanda é crescente, com maior pressão por engajar proprietários rurais na cessão de áreas para plantio de mudas. Na SOS Mata Atlântica, o número de contratos para plantios de mudas cresceu 44% entre 2022 e 2023.
A Década da Restauração de Ecossistemas, lançada pela ONU na ambição de mudar consideravelmente o patamar das ações e investimentos globais na reconstrução de ambientes naturais até 2030, impulsiona essa tendência. No planeta, a crise da biodiversidade, com contínua perda de espécies e de serviços ecossistêmicos, se soma à da emergência climática – alvos de ações globais em diversas frentes. A restauração florestal é uma das principais. E a Mata Atlântica, devido à grande biodiversidade e aos impactos já sofridos e ainda em curso, é uma das regiões do mundo prioritárias nesse esforço. Segundo recente estudo científico, quase metade das árvores do bioma estão ameaçadas de extinção – risco que já atinge mais de 80% das espécies endêmicas, que só ocorrem lá.
Experiência no campo
Na base do desafio de restaurar, está o trabalho de chão, com qualidade e respeito às realidades locais. Em campo, é dura a rotina de plantar mudas e fazê-las virar floresta. “Desde o diagnóstico das áreas, em que avaliamos a história de uso da terra e o potencial de resiliência e regeneração natural, até o projeto técnico do plantio, o preparo do solo para a abertura dos ‘berços” que receberão as mudas e as vistorias de manutenção e monitoramento, há uma série de procedimentos que exigem experiência no campo”, relata Betão.
Ele iniciou no ofício como coletor de sementes para avaliação botânica em projetos no Mato Grosso, e depois trabalhou na produção de mudas para áreas de eucalipto, em São Paulo. Ao chegar à SOS Mata Atlântica, em 2010, dedicou-se à gestão dos dados sobre os plantios de espécies nativas a partir das doações do público pela internet no antigo programa Click Árvore, conduzido pela ONG. Desde aquela época, para Betão, visitas de campo e contato direto com a natureza se tornaram fonte de inspiração – e resiliência.
“Além de sol, chuva e longas caminhadas em relevo íngreme ou brejos, há sempre o risco de picadas cobra, carrapatos e espinhos”, conta Betão, responsável por acompanhar os projetos do Florestas do Futuro nos municípios afora. “Não é andar na natureza ouvindo passarinhos”, ilustra.
Hoje em dia, é possível realizar parte do trabalho remotamente, por meio de drones, aplicativos de celular e outras tecnologias digitais, o que reduz suor, tempo e custo das expedições de campo. De toda forma, apesar desses avanços, o sucesso de criar novas florestas exige colocar os pés – e, às vezes, também as mãos – na lama.
Viveiro, o ponto de partida
No viveiro do Centro de Experimentos, capaz de produzir 750 mil mudas por ano, é preciso conhecimento técnico, habilidade e delicadeza no manuseio das plantas – mais de 100 espécies nativas, no total. Mariana Roseira, há 16 anos na tarefa junto com mais seis pessoas, na maioria mulheres, sabe bem o valor da experiência no ponto inicial da cadeia para a formação de novas florestas. “O maior segredo está no trabalho de repicagem, com a transferência das mudinhas recém-nascidas da sementeira para os tubetes, onde seguem as etapas de crescimento até a distribuição para os plantios”, afirma a viveirista.
Na demanda crescente em um setor que ainda se desenvolvia, grande parte do conhecimento se deu na prática. Após trabalhar no corte de cana, na lavoura de café e até na linha de produção de cerveja, a restauração florestal – completa Mariana – veio como “um caso de amor com as plantas”. O romantismo, porém, convive com a rotina da produção em série de árvores. Um exemplo é a confecção de mudas no formato de “rocambole”: um mix de 50 plantas de várias espécies, todas juntas e enroladas como um tapete, em grandes lotes, no total de 25 mil unidades, para transporte no caminhão até o campo. Com o respaldo da ciência, e uma longa história de experiências, o conhecimento gerado em Itu chega a quem precisa nos municípios da Mata Atlântica.
O trabalho por trás das mudas
Plantar árvores nativas para a reconstrução de uma floresta, capaz de proteger a água, capturar carbono e manter a biodiversidade, entre outros serviços ecossistêmicos que ela fornece, requer um complexo trabalho nem sempre percebido no singelo gesto de cultivar uma mudinha no quintal da escola.
A atividade envolve diferentes etapas e técnicas, com participação de profissionais nos vários elos da cadeia produtiva até a nova floresta se tornar madura e estabelecida com condições semelhantes – embora nunca exatamente iguais – às da vegetação original.
Conheça abaixo os principais procedimentos do trabalho em campo, que nas últimas décadas se desenvolveu e ganhou novos padrões de qualidade pela contribuição da ciência e das ações em rede das ONGs, como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica.
Viveiro de mudas: Beneficiamento das sementes coletadas na natureza; quebra de dormência quando necessário; semeadura; germinação em estufas; repicagem para colocação da planta em tubetes; desenvolvimento (casa de sombra); rustificação a pleno sol; expedição e preparo final para ir a campo.
Diagnóstico: Avalia o histórico de uso do solo para identificar o potencial de resiliência do terreno a ser restaurado; identifica áreas para plantios ou regeneração natural; mapeia remanescentes de mata próximos; considera a proximidade de centros urbanos e rodovias com alto índice de trânsito, devido ao grande risco de incêndio; a presença de gado no entorno e a existência de processos erosivos; realiza análises do solo. Analisa as potencialidades da cadeia da restauração na geração de emprego e aquecimento da economia local, por meio da compra de insumos e contratação de mão-de-obra.
Projeto técnico: Define a localização, o tamanho da área e a quantidade de mudas; propõe uma metodologia e técnicas para plantio, com espécies do grupo funcional de recobrimento e espécies do grupo de diversidade, considerando o espaçamento entre elas e a presença de espécies nativas espontâneas e ruderais. Há entre 90 e 120 espécies de maior acesso para restauração florestal e existem técnicas específicas que podem ser utilizadas conforme as características do local.
Preparo do solo e plantio: Gradagem para descompactar solo por meio de trator ou, manualmente, com escavadeiras; controle químico de formigas cortadeiras; abertura dos berços para instalação das mudas (2,5 mil berços por hectare); aplicação de adubo; uso de hidrogel para manter a umidade no sistema radicular das mudas; implantação das mudas de forma manual; irrigação, conforme as características do clima e solo; controle de espécies exóticas invasoras que impede o estabelecimento ou crescimento das mudas.
Manutenção: Intervenções mensais por dois anos (projetos voluntários) e três anos projetos de compensação ambiental). As ações definidas em cronograma elaborado junto com o projeto técnico, para verificar invasão de gado, ataques de formigas e crescimento e mortalidade de mudas; coroamento do entorno das mudas para evitar espécies invasoras indesejáveis; e aplicação de insumos em geral (adubações de cobertura para crescimento).
Vistoria: Após as intervenções pela empresa executora do plantio, os projetos recebem visitas técnicas dos colaboradores da SOS Mata Atlântica. O objetivo é validar as ações, capturar imagens da evolução do plantio e orientar a empresa contratada no caso de correções. Essas informações são atualizadas no sistema gerencial para que todos os envolvidos nos projetos tenham acesso ao conteúdo dos relatórios técnicos.
Monitoramento: Avaliação por cinco anos após o plantio para projetos voluntários e oito anos nos projetos de compensação ambiental. São acompanhados eventuais impactos como fogo, alagamento e geada, com possível intervenção para corrigir o que foi prejudicado, por exemplo, por meio de replantio de mudas para garantir o avanço do projeto. A finalidade do monitoramento é garantir a integridade do projeto, a evolução do plantio, e os ganhos ecológicos com a iniciativa executada.