Após diversas tentativas de mitigar a crise climática, não há tempo de ficar no “quase” mais uma vez. É preciso encontrar um equilíbrio entre a complexidade metodológica do mercado de carbono e a simplicidade questionável dos green bonds. Quatro linhas de ação podem desfazer os nós que amarram projetos, especialmente aqueles relacionados ao uso do solo
Por Roberto Strumpf*
O Protocolo de Kyoto viveu intensamente e morreu jovem, na praia: foi aprovado em 1997, entrou em vigor em 2005 e afundou em 2012. Deixou um legado técnico e metodológico impressionante, inseriu de vez o tema da mudança climática na agenda econômica, mas foi um fiasco em termos de promover a redução de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE).
O ano de 2015 trouxe uma sensação de recomeço para o mercado de carbono global com a assinatura do Acordo de Paris, que se apresentou como uma oportunidade para aprendermos com os erros do passado e acertar a mão na rota da descarbonização da economia.
Com uma governança invertida à adotada em Kyoto, o Acordo de Paris definiu que cada país indicaria voluntariamente sua contribuição em termos de esforços para mitigação. Esta abordagem foi acertada, pois conseguiu construir uma agenda positiva entre todos os países membros da a Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança Climática (UNFCCC), em vez da polarização escancarada entre os países Anexo 1 (desenvolvidos) e não-Anexo 1 (em desenvolvimento) do Protocolo de Kyoto.
No entanto, passados nove anos do Acordo, o livro de regras para a implementação do seu Artigo 6 – que trata do papel dos mercados – está emperrado nas tecnicidades e na falta de vontade política. Fica a sensação de que, quanto mais fundo entramos nas minúcias, maiores são as divergências e mais longe estamos de evitar um colapso climático.
Estaríamos novamente fadados a morrer na praia?
Eis que, na urgência da ação, surgiu um mercado voluntário que bebe na fonte do finado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), criado no âmbito do Protocolo de Kyoto, e busca corrigir algumas injustiças do passado, dando às Soluções Baseadas na Natureza o seu merecido papel de protagonista. Esse mercado cresceu no vácuo deixado pela lentidão política e pela necessidade de consenso que rege as engrenagens da ONU.
Após um início tímido, o mercado voluntário deu sinais de crescimento exponencial entre os anos de 2019 e 2021, atingindo a importante marca de US$ 2 bilhões em transações. Quando se projetava valores muito maiores, uma crise de credibilidade entre 2022 e 2023 frustrou desenvolvedores de projetos, investidores e comunidades tradicionais.
A avalanche de críticas à integridade do mercado voluntário de carbono que ocorreu em 2023 contribuiu para uma redução substancial na liquidez e no valor dos créditos, em especial àqueles relacionados à redução do desmatamento. Críticas são importantes se contribuem para os ajustes de rota necessários para um mercado em formação, mas, quando destrutivas, colocam em xeque um dos poucos mecanismos com potencial de viabilizar o financiamento privado em escala para a proteção das florestas e seus povos.
A tendência no momento é que a “onda da integridade” torne os projetos voluntários ainda mais caros e complexos, menos escaláveis e ainda menos inclusivos.
Os mecanismos de mercado voluntário têm um papel importante para apoiar a jornada da descarbonização, e podem ser fundamentais para possibilitar a transferência de recursos e tecnologias até a ponta, melhorando a qualidade de vida de milhões de pessoas pelo mundo. Mas, para isso, é necessário que os projetos ganhem escala, algo impossível com os entraves atuais que consomem tempo e energia, desproporcionais à sua relevância entre os mecanismos disponíveis hoje para fomentar a mitigação de emissões de GEE.
No lado dos mercados regulados, o ganho de escala poderia vir por meio da aprovação de leis no âmbito nacional ou subnacional, mas que enfrentam a dificuldade de alinhar diferentes interesses e visões, sendo o caso do Brasil bastante simbólico. Já no âmbito global, a grande oportunidade está na definição do chamado Livro de Regras do Artigo 6.4 do Acordo de Paris, que se arrasta há anos, conforme mencionado.
Enquanto isso, os green bonds (títulos verdes), que são mecanismos financeiros mais simples, atingiram em apenas dez anos de existência a marca de US$ 200 bilhões transacionados em 2019. Esse mercado é também crucial para fecharmos a enorme lacuna de investimento necessário para alcançarmos as metas do Acordo de Paris.
No entanto, mesmo com uma movimentação 100 vezes maior do que o mercado voluntário, tem uma surpreendente falta de transparência em termos de métricas para mensurar, verificar e reportar os supostos impactos “verdes” dos investimentos despendidos. O espantoso é que, mesmo com essa falta de rastreabilidade, esse mercado tem passado relativamente ileso à onda de escrutínio público que varreu o mercado voluntário de carbono.
Está claro que precisamos encontrar um equilíbrio entre a complexidade metodológica do mercado de carbono e a simplicidade questionável dos green bonds. A janela de oportunidade para mitigarmos a crise climática é muito pequena e não podemos nos dar ao luxo de ficar no “quase” mais uma vez. Para que possamos alcançar todo o potencial dos atuais mercados de carbono e desfazer os nós que amarram principalmente os projetos relacionados ao uso do solo, será fundamental seguir ao menos quatro grandes linhas de ação:
- Inovações tecnológicas que possibilitem aliar integridade e simplicidade através da mensuração, reporte e verificação de redução ou remoção de emissões de forma rápida, precisa e barata;
- A definição de requisitos mínimos de repartição de benefícios com atores locais nas áreas de implementação dos projetos, com especial atenção para o investimento em pesquisa, capacitação e infraestrutura para fomento à cadeias bioeconômicas;
- A definição de critérios gerais para a caracterização da linha de base e adicionalidade dos projetos, a partir dos quais é possível uma regionalização mediante comprovação de evidências;
- Maior segurança jurídica às partes envolvidas, seja através da solução de questões fundiárias, seja da flexibilização do prazo dos contratos.
Essas soluções podem surgir nas discussões das COPs, no Vale do Silício ou na Planície Amazônica. Tecnologia e diplomacia serão fundamentais para equipararmos a descarbonização da economia às recomendações da ciência, mas são nas práticas ancestrais de manejo florestal sustentável que devemos nos inspirar para criar uma visão de futuro para nossas florestas e agricultura.
As velocidades das mudanças que vivenciamos no clima e que precisamos na descarbonização da economia estão completamente descompassadas. Falta um senso de urgência no mundo dos tomadores de decisão, a de que precisamos de todas as ferramentas disponíveis para combater a crise climática e que será necessário ajustes e correções de rota ao longo da jornada.
*Roberto Strumpf é biólogo, mestre em Ciências Ambientais, especialista em mudança climática e em Soluções Baseadas na Natureza