Em meio ao avanço de movimentos populistas e autoritários, estreia na Página22 uma série de artigos que aprofundará reflexões sobre os efeitos da crise da democracia na sustentabilidade, na justiça social e na vida das pessoas. Uma das soluções debatidas neste primeiro artigo é como usar as tecnologias digitais a fim de reconduzir a inteligência coletiva para o centro da política
Por Mariana Galvão Lyra*
Ano novo começou comigo retomando a coluna na Página22. No ano passado, fiz uma pausa na escrita por conta do nascimento do meu primeiro filho. Agora, de volta também à universidade, decidi alinhar os meus textos aqui com o que está (e estará) acontecendo no meu trabalho. Explico.
Para este primeiro ano após a licença-maternidade, tracei a meta de desenvolver uma ideia para um projeto novo. Não qualquer ideia, não qualquer projeto. Mas algo que requer tempo, reflexão, troca entre pares, diferentes especialistas, buscas, testes, planejamento.
Passarei o ano de 2025 inteiro com esta ideia debaixo do braço. Esta faísca de pensamento tomará forma e ganhará mais complexidade a partir de uma série de atividades, algumas já planejadas e previstas para a primeira metade do ano. Durante esse tempo, esta minha coluna vai se transformar em uma série de artigos acompanhando a minha saga profissional.
Mas vamos começar do começo: que ideia é essa e como vou desenvolvê-la? Quando estava grávida, um dos últimos compromissos que atendi pessoalmente foi uma apresentação do professor David Schlosberg no Colégio de Estudos Avançados em Helsinki. O tema era a mudança climática no contexto de justiça e inovação democrática.
Em um tom um tanto intimista e pessoal, Schlosberg apresentou fotos e relatos dos incêndios e alagamentos na Austrália – país onde mora e trabalha –, explicando como as diversas crises que estamos vivendo atualmente não só acontecem simultaneamente como estão, aos poucos, convergindo. Nas minhas notas do dia, escrevi: “Distúrbios ecológicos sem (tempo para) recuperação é o que está acontecendo agora. O que é injusto sobre turbulências climáticas? Quem é impactado? Como a injustiça climática é experimentada?”
Ao fim da fala do professor, debates interessantes deram mais vida àquele clima um pouco pessimista (ou realista?). Poderíamos usar a democracia como uma forma de gestão e de adaptação à essa realidade? Que experimentos locais podemos alcançar (como políticas) em vez de lançar mão de cenários de futuro em potencial?
Uma linha de pensamento, em especial, chamou minha atenção: se o mundo está cada vez mais elegendo líderes autoritários e, ao mesmo tempo, presenciaremos mais caos climático, qual é a alternativa para lidar com uma realidade cada vez menos democrática?
A ideia de que a democracia está diminuindo ou morrendo encontra-se presente em vários livros atuais. Em uma rápida conversa que tive com a Inteligência Artificial, recebi uma lista de temas tratados em diversos desses livros.
Um tema quente é o Populismo e polarização. Ou seja, como líderes populistas estão explorando divisões sociais e oferecendo soluções simplistas para problemas complexos e, assim, enfraquecendo instituições democráticas e causando a erosão de valores liberais. Uma consequência desse processo é a Ascensão do autoritarismo. Líderes autoritários exploram crises para consolidar poder, restringir liberdades e enfraquecer opositores.
Outro assunto discutido é a Degradação das instituições. Líderes eleitos minam a independência do judiciário, a liberdade de imprensa e as normas democráticas, transformando gradualmente as democracias em regimes autoritários. Soma-se a isso a Crise de representação. O crescimento da desconexão entre elites políticas e a população, levando a uma sensação de que os sistemas democráticos não atendem às necessidades das pessoas. Com isso, uma desconfiança generalizada nas instituições democráticas é gerada.
Como parte do contexto, claramente as Desigualdades econômica e social influenciam o declínio da democracia. Uma crescente desigualdade alimenta ressentimentos e cria terreno fértil para discursos populistas. A consequência é a fragmentação social e diminuição da coesão política.
Um outro tema muito debatido atualmente é a Influência externa e a tecnologia. Ou seja, como o uso de desinformação, as redes sociais e a interferência estrangeira são empregados para desestabilizar democracias via manipulação do debate público e enfraquecimento da confiança nas eleições.
Como trazer a inteligência coletiva para a política
E quais seriam as avenidas para lidar com esses desafios? Pensando em como reconstruir e reimaginar a democracia, uma reportagem de Laura Spinney para a revista New Scientist de outubro de 2024, perguntava: pode o conhecimento científico nos ajudar a criar uma política mais justa e inteligente?
A matéria investigava o papel das tecnologias digitais em criar um governo para as pessoas, feito pelas pessoas. Para isso, partiu do pressuposto de que a democracia não está funcionado como deveria em termos de métricas bem objetivas, como o aumento da violência política e a tendência dos sistemas ditos democráticos favorecerem os ricos.
Alguns pesquisadores no Marrocos misturaram a teoria da complexidade com plataformas online inovadoras, com a ajuda da Inteligência Artificial, para reimaginar a democracia do século XXI. A ideia é trazer de volta uma inteligência coletiva para o centro da política, já que um grupo diverso cognitivamente produz soluções melhores do que o mais brilhante indivíduo.
Assim, a solução passaria por mudar a prática em que os formuladores de políticas são escolhidos de forma randômica e representativa. Depois, capturar o máximo possível de inteligência coletiva via deliberação assistida por IA. E, finalmente, reinstalar a educação cívica para produzir cidadãos que queiram e sejam participantes úteis numa democracia de verdade.
O timing parece ser bom, uma vez que, ao menos na Europa, existem linhas de financiamento e real interesse em pesquisas que possam trazer alternativas inovadoras para incrementos na democracia.
No próximo texto vou detalhar um estudo sobre democracia conduzido pelo Conselho de Pequisa Europeu. Quais projetos estão em andamento sobre o assunto? Quanto a União Europeia está investindo em pesquisa sobre o futuro da democracia?
Espero vocês na coluna de fevereiro. Enquanto isso, se você se interessa por discussões sobre democracia e quer conversar comigo, é só me mandar um email para mariana.lyra@lut.fi.
Referências:
Lista de livros indicados pela IA: O Povo Contra a Democracia (Yascha Mounk); Como as Democracias Morrem (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt); Como a Democracia Chega ao Fim (David Runciman); The Retreat of Western Liberalism (Edward Luce); The death of democracy (Benjamin Carter Hett)
*Mariana Galvão Lyra, colunista da Página22, é pesquisadora de pós-doutorado e gerente de projetos na LUT Business School, de Helsinki.