Em vez do discurso antiprotecionista, o Brasil ganharia mais assumindo no comércio internacional uma posição em favor da agricultura “limpa” e socialmente integrada ao processo de desenvolvimento. Até porque, se os mercados fossem liberalizados, os ganhos para o País seriam menores do que se apregoa. As afirmações são de Ricardo Abramovay, chefe do Departamento de Economia da FEA-USP e membro efetivo do Conselho Científico do Centre International de Recherches pour l’Agriculture et le Développement. Para o professor, a fome no mundo só será combatida quando as populações em carência alimentar tiverem condições de fazer da atividade agrícola sua fonte de renda, em produções descentralizadas
Por Amália Safatle
Página 22: Quais as chances de o protecionismo agrícola praticado pelos países centrais ser reduzido num futuro próximo?
Ricardo Abramovay: Como somos um país exportador e as formas de subsídio que praticamos não estão ligadas a protecionismo, o Brasil se acostumou a encará-lo como pecado, embora não encare como pecado outras formas de subsídio público. E muitas vezes são formas de subsídio socialmente inaceitáveis, como o praticado desde o final dos anos 60 sob a forma de incentivos fiscais que conduziam a uma extraordinária concentração da propriedade da terra no Centro-Oeste, até atualmente, com a renegociação de dívidas bancárias de grandes produtores. Protecionismo é escândalo; subvenções que beneficiam segmentos de alta renda não aparecem como tão escandalosos.
Qual é a base histórica das políticas de sustentação da renda na agricultura dos países desenvolvidos? O fato de que se trata de um setor altamente competitivo e pulverizado, e em torno do qual se estabeleceu uma espécie de pacto, a partir do New Deal, nos EUA, e da formação da Política Agrícola Comum, na Europa. Os agricultores adotavam métodos produtivos correspondentes ao que havia de mais moderno na época, o que elevaria suas safras, e haveria instabilidade nos preços.
A política agrícola, antes que a interpretemos como a força deste ou daquele grupo, tem uma função socialmente racional, que é a de tentar estabilizar a oferta, garantir um patamar de renda aos agricultores, progresso técnico, e isso nos países desenvolvidos durante um bom período foi feito de forma razoavelmente adequada.
Sem essa política, dificilmente esses países teriam o poder que alcançaram.
Óbvio que ao longo do tempo provocou distorções. Fez com que áreas pouco propícias à produção agrícola continuassem com cultivo e, mais que isso: os preços garantidos levaram a um consumo de agrotóxicos e insumos e não estimularam o uso racional e sustentável dos recursos. Começaram a se manifestar de maneira cada vez mais forte os problemas ambientais resultantes da expansão da produção agrícola, tanto nos EUA como na Europa.
O resultado nós o assistimos nos anos 80: a explosão das supersafras, as montanhas de cereais e de manteiga, os rios de leite. Aí, sim, era gravíssimo, porque parte muito grande da produção excedente foi competir com mercados locais como os africanos, em condições extremamente destrutivas. Isso deu lugar a uma série de movimentos sociais para reorganizar esses mercados.
A partir dos anos 90, houve uma tentativa dos países desenvolvidos de redesenhar os mecanismos de subsídio. Mas permanece até hoje, nos EUA e na Europa, um problema seriíssimo, que é a concentração desses subsídios em segmentos de alta renda na agricultura. E o Brasil não explora esse flanco nas discussões: a concentração social de subsídios em um pequeno punhado de agricultores mais prósperos e cujo comportamento ambiental está longe de ser o mais adequado.
22: Um estudo que a FEA fez a pedido da OCDE chegou à conclusão de que são relativamente pequenos e concentrados os ganhos de renda no Brasil numa simulação de queda de 50% dos subsídios. Qual é o seu comentário em relação a essa conclusão?
RA: O agronegócio chega a quase 40% do PIB, mas a agricultura stricto sensu é 8% a 10% do PIB. Se houver uma liberalização que implique aumento de 20% da produção agrícola brasileira, que ganhos o País teria? Não são desprezíveis, mas estão longe de muito consideráveis. Mas o ponto mais importante dessa discussão não me parece ser o efeito da abertura sobre o crescimento agrícola, mas o efeito do crescimento agrícola sobre o desenvolvimento brasileiro. Se o crescimento for acompanhado de medidas que permitam melhorar as condições de trabalho dos assalariados e um planejamento para o melhor uso dos recursos naturais, pode ser interessante.
Mas abertura comercial por si só não abre nessa direção, ao contrário. A bola está passando embaixo das pernas do Brasil nessa história. O discurso do Brasil na OMC (Organização Mundial do Comércio) deveria ser a favor da agricultura limpa e socialmente integrada ao processo de desenvolvimento. O Brasil está entre os países que poderiam construir modalidades de produção agropecuária respeitosas ao meio ambiente, transitando rumo a uma agricultura sustentável. Mas sempre adotou uma posição conservadora e até mesmo reacionária nos organismos internacionais, associando as exigências universalistas relativas à preservação ambiental e condições sociais a barreiras não tarifárias. Isso colocou o País na defensiva quando deveria estar na ofensiva.
O importante não é que a agricultura cresça ou exporte mais. É que cresça preservando o meio ambiente, respeitando as condições de trabalho, garantindo um bom futuro para as pessoas. É essa discussão que países como o Brasil deveriam levar à cena internacional. Do início do governo FHC até hoje, o discurso é ambíguo. É de cunho liberal contra o protecionismo, mas o conteúdo do protecionismo corresponde a coisas que o Brasil, se estivesse nas condições dos países desenvolvidos, também faria.
22: E por que se repete esse discurso antiprotecionista? Porque é mais “fácil”?
RA: Porque não existem forças sociais pressionando em outra direção. Mesmo do lado dos movimentos sociais, os interesses acabam muito mais vinculados à obtenção de renda e de benefícios corporativos. Por exemplo, é muito bom que haja crédito para o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Mas os movimentos sociais não discutem e não incorporam às suas pautas, e muitos menos às suas práticas de campo, o crédito para o Pronaf com produção limpa, produção sustentável.
O tipo de pressão social que chega ao governo vai todo na direção produtivista, e não daquilo que é hoje o mais notável e avançado na cena internacional, que é como você compatibiliza aumento produtivo com melhoria na qualidade da alimentação, no vínculo entre o ato de comer e a preservação das regiões de onde saem os alimentos, a preservação do patrimônio cultural de uma região. Esse vínculo hoje nos países desenvolvidos é cada vez mais importante. Basta ver o impacto que tem um movimento como o Slow Food em toda a Europa. Isso, que para nós aparece como perfumaria e coisa de país rico, lá é uma tendência extremamente importante, e que poderia se manifestar aqui, mas não faz parte da “discussão séria”. A “discussão séria” é a OMC, é preço, é protecionismo. Isso é uma miopia completa, porque é onde os agricultores conseguem qualificar sua produção em mercados diferenciados, que serão organizados, e não obedecem às leis mágicas da livre concorrência.
22: Então em vez de brigar contra a prática protecionista, que não vai mudar tão cedo, o Brasil ganharia muito mais seguindo essa linha?
RA: Sim. Mesmo porque, como mostra o estudo de Joaquim Guilhoto e de Carlos Azzoni, caso os mercados fossem liberalizados, os ganhos nossos de renda seriam muito baixos. Primeiro, porque o impacto não é tão alto como se imagina. Segundo, que é uma questão de realismo. Os países desenvolvidos não vão rifar sua estrutura agrícola e sua capacidade produtiva em nome de um princípio de obediência às leis do mercado. China, Índia e Brasil vão falar de liberalismo? A China e a Índia é uma piada, o Brasil ainda vá lá. Mas quando se trata de distribuição de renda na agricultura, o Brasil não tem uma atitude liberal.
Somos um país que subvenciona, mas subvenciona mal a sua agricultura. O que o Brasil gasta hoje na sustentação dos diferentes segmentos ligados à agricultura precisaria ser repensado no seu formato. O Brasil gasta muito com política fundiária, com o Pronaf e, sobretudo, com o refinanciamento das dívidas de uma quantidade pequena de agricultores, de grandes devedores do Tesouro Nacional, dívida essa que está securitizada e custa uma fortuna aos cofres públicos. Que dívida é essa que ao longo dos anos se renegocia e os governos não conseguem enfrentar?
22: No Brasil exportamos muito para países como China e Índia, que não têm muita preocupação, ao menos por enquanto, com qualificações socioambientais. Como o Brasil migrará para essa produção mais sofisticada enquanto a grande procura é pelo tipo de produção mais barata?
RA: Os processos de certificação e de rastreabilidade, que hoje ainda se concentram em produtos considerados de nicho, tendem a aumentar, e rapidamente. Basta ver o caso dos biocombustíveis. Quais são os dois segmentos empresariais em que os temas de sustentabilidade estão sendo discutidos? São a soja, pela Abiove, e toda essa mobilização inédita e importante feita em torno da moratória da soja na Amazônia de um lado, e a cana-de-açúcar, em torno do etanol — as duas por causa do mercado externo. Isso mostra que muito mais importante que a discussão a respeito do protecionismo é a imensa pressão que já existe, e será cada vez maior, sobre a maneira como se organizam os mercados desses produtos no Brasil.
A Universidade Politécnica de Lausanne, por exemplo, realizou, há poucos meses, uma mesa-redonda que se transformou em atividade permanente em torno da rastreabilidade dos biocombustíveis. Existe um imenso temor, por parte dos europeus, de que a expansão da cana-de-açúcar vá em direção a áreas ecologicamente frágeis, como ocorreu com o óleo de palma na Indonésia. O que deu lugar, inclusive, a um movimento social europeu, que é o Biofuel Watch.
22: Sempre se fala que o problema da fome no mundo não é de oferta, e sim de má distribuição. Com o aumento demográfico precisaremos produzir muito mais ou não tanto, se é uma questão de acesso aos alimentos?
RA: Em relação à fome não dá para raciocinar em bloco. Temos de aplicar o raciocínio de Josué de Castro, quando fazia A Geografia da Fome. A reflexão deve ser localizada. Onde se localiza a fome no mundo? A violência, a insegurança, as péssimas condições de vida, os assassinatos de jovens são fenômenos das áreas metropolitanas. A fome não. No Brasil, na África, ao Sul do Saara, na Índia e na China, está nas áreas rurais. Quem são os famintos? Pessoas que vivem fundamentalmente da agricultura.
Quando dissocio a vitória sobre a fome do aumento da produção agrícola, dizendo que já tem para todo mundo, estou dizendo: deixa que eu abasteço os famintos das áreas rurais com a produção agrícola que virá das planícies da Região Centro-Oeste brasileira, das grandes planícies americanas, das áreas européias altamente produtivas. Se o raciocínio for esse, estou retirando das populações famintas a única oportunidade que têm de gerar a renda necessária para satisfazer suas necessidades.
O grande desafio hoje não é aumentar a produção agropecuária, é aumentar a produção nas áreas em que existem famintos, em condições ecologicamente aceitáveis, sem o que as migrações continuarão aumentando. Há um documento escrito por Gordon Conway que se chama A Revolução Duplamente Verde. Há dois cenários. Um é concentrar a produção agrícola internacional em áreas supostamente mais aptas para tanto, com base na produção altamente mecanizada e menos consumidora de veneno. Um low-input sustainable agriculture, que é um conceito dos americanos.
E a partir disso garantir o abastecimento da humanidade, preservando áreas ecologicamente frágeis. O problema é que populações em situação de carência alimentar precisariam importar suas necessidades alimentares de outros países. Como vão gerar a renda para isso? Isso significa dissociar preservação ambiental e produção, que talvez não seja a melhor coisa a se fazer. Por isso, o segundo cenário, preconizado nesse documento, lança um desafio fantástico para a pesquisa agropecuária: precisamos descentralizar essa produção, em vez de concentrá-la nas áreas mais propícias. E qual é o balanço 13 anos depois da publicação do Gordon Conway?
22: O que aconteceu de lá para cá?
RA: O caminho dominante está vencendo, e essa é mais uma razão para o discurso antiprotecionista ser socialmente suspeito. Porque então passamos à abertura completa dos mercados, deixamos que essas populações, em áreas ecologicamente frágeis, sem produzir, porque não têm vantagens comparativas, e vamos doar alimentos, subsidiar pelo fundo internacional. Mas o cenário que emerge disso é o de um mundo ainda mais desarticulado do que está hoje. O discurso antiprotecionista não é o que mais protege essas populações, contrariamente ao que um certo bom senso internacional, inclusive o praticado pelo governo brasileiro, gostaria de fazer crer.
22: Nesse crescimento demográfico, o agribusiness brasileiro vê uma janela comercial enorme ao mesmo tempo que começa a adotar o discurso da sustentabilidade. Faz a moratória da soja, cria o ARES (Instituto para o Agronegócio Responsável). Estamos migrando para outro modelo ou apenas adaptando ao modelo vigente técnicas mais aceitáveis pela sociedade?
RA: Mudança social é sempre mudança adaptativa. Há uma expressão francesa, chassez le naturel, il revient au galop: expulse o que é natural, e ele volta galopando. Mudanças revolucionárias, com muita freqüência, produzem situações em que os piores traços do que existia voltam com força extraordinária. Poderíamos reformular assim: mudanças, em democracia, são sempre adaptativas.
Nesse sentido, há oposição entre mudança e adaptação que costumamos fazer, e que no fundo poderíamos dizer “estamos mudando mesmo ou só jogando areia nos olhos dos trouxas?” Acho que não, que as mudanças que passam por transformações na maneira como os mercados se organizam tendem a ser muito profundas. Não são espetaculares, resultantes de expressões bombásticas e localizadas, mas sim de uma pressão pulverizada. Acabam se traduzindo em comportamentos que vão sendo assumidos pelos atores, mais lentamente, mais rapidamente, dependendo das circunstâncias.
No caso da sustentabilidade ou da responsabilidade social corporativa, é impressionante quando se pega o caso americano. Nos anos 60, o tema não existia, foi com o livro da Rachel Carlson, Primavera Silenciosa, que começou a existir. A reação das empresas foi dizer: “Essa mulher é louca”. Quando foi criada a EPA (Environmental Protection Agency), a reação foi: “Lá vêm esses burocratas atrapalhar o funcionamento do livre mercado”. O governo Reagan, quando assume, procura manipular a EPA.
Como isso coincidiu com desastres ambientais, essa manipulação não deu certo. A EPA adquiriu independência, prestígio. E a reação das empresas, mais que se adaptar às exigências da EPA, foi ultrapassá-las, transformando os elementos referentes a meio ambiente em formas estratégicas de comportamento. O que não pode ser simplesmente cortina de fumaça, porque começam a se montar diretorias ambientais com força dentro das empresas e, uma vez que elas assumem compromissos ambientais, fica relativamente fácil de checar o cumprimento ou não desses compromissos junto aos movimentos sociais. Estes passam a atuar com as empresas e não mais em situação permanente de oposição.
22: É o que se vê no Ares e na moratória da soja?
RA: Sim. Hoje, o envolvimento de dirigentes empresariais com a questão da sustentabilidade é tão forte que não dá para achar que é cortina de fumaça. Isso nos faz rever a maneira como enxergamos o que quer dizer mercado. Temos uma visão distorcida e anti-sociológica, e a tendência de encará-lo como entidade mágica. De um lado, têm-se a sociedade, a cultura, os valores, as coisas que realmente contam, e, de outro, uma coisa meio fria, interesseira, mecânica. Não é assim. Mercado é uma estrutura social. É uma expressão da sociedade, como a cultura é uma expressão da sociedade. Os mercados podem ser interpretados a partir de uma abordagem político-cultural, e não de uma abordagem mecânica, como se fosse o sistema planetário newtoniano. Se isso é verdade, é muito importante entender a evolução político-cultural dos mercados, e essa evolução coloca cada vez mais no seu interior os temas ambientais e numa menor proporção, os sociais.
22: Então estamos em uma mudança de modelo?
RA: Acho que sim, mas não acho que seja “a antecâmara do Apocalipse”, ou que estejamos indo para o brejo.
22: Como podemos falar em produção responsável de alimentos dentro de um modelo ainda concentrador de renda como o brasileiro?
RA: As empresas que estão se organizando em torno do tema da sustentabilidade na agricultura vão ter de enfrentar o problema da concentração dos recursos produtivos, sobretudo no que se refere à lavoura canavieira. Não é verdade que essa concentração reflita eficiência, nem que ela seja condição de eficiência, porque se apóia na obtenção de terra muito barata, obtida numa cadeia de ocupação em que atividades ilícitas estão incluídas, como grilagem, desmatamento ilegal etc.
Atividades do passado que acabam não se exprimindo hoje em crime, porque muitas dessas terras já estão legalizadas. Esse tema não tem como deixar de ser enfrentado em algum momento: concentração produtiva. O segundo tema são as condições de trabalho. Um trabalhador, na usina canavieira, desfere trinta golpes de foice por minuto para obter R$ 800 por mês. Claro que alguém pode dizer que, se ele não estivesse fazendo isso, estaria morrendo de fome. Essa afirmação é uma confissão de que a sociedade está doente.
O terceiro tema é a questão ambiental. Na expansão da cana e da soja, o foco está na Amazônia e os cerrados têm sido totalmente deixados de lado. O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo, dele depende grande parte do sistema de águas do continente e ainda possui uma biodiversidade extraordinariamente rica. Mas a sociedade brasileira se habituou a encará-lo como terra livre, fronteira agrícola a ser ocupada. Por isso é que temos 90 milhões, 110 milhões de hectares de fronteira agrícola. Não é verdade. Temos 110 milhões de áreas biologicamente fragilizadas, cuja ocupação a sociedade, de maneira inteligente, tem de decidir qual vai ser. Não pode considerar isso como área livre porque vai preservar a Amazônia.
22: Isso ocorre porque há uma pressão internacional muito forte para a preservação da Amazônia que não existe para os outros biomas? O próprio governo incentivou a ocupação do Cerrado.
RA: E hoje também. Não há nenhum tipo de medida, governamental ou empresarial, sinalizando aos atores privados que ocupar o Cerrado é algo que precisa ser objeto de cuidado. Ocupa, desmata e pronto. Porque o grande objetivo nacional é aumentar a produção agrícola.
22: Qual é o potencial dos orgânicos ou da agroecologia para suprir a demanda de alimentos?
RA: Ainda é um nicho. No Brasil, existe um potencial muito grande, mas que foi pessimamente aproveitado. Quando, por exemplo, o governo gaúcho tentou implantar uma política em que a extensão rural fosse vinculada à agroecologia, foi cometido um erro crucial. Não se cuidou da criação de qualquer forma certificada de mercado, envolvimento do setor privado etc. A agroecologia tornou-se um discurso vazio e o resultado foi pífio. Temos também de raciocinar mais em termos de processos de transição do que em modelos polares.
A tendência é de uma transição lenta em direção à redução no uso de insumos, por razões econômicas e ambientais, até que em muitos produtos se chegue ao uso mínimo ou até na abolição do uso.
22: Sem cair no transgênico?
RA: É claro que existe algum tipo de risco nos transgênicos, risco em torno de monotonia de paisagem, de monotonia na própria diversidade do leque genético que compõe a produção agropecuária. Entretanto, existem situações nas quais possivelmente o uso dos transgênicos poderá ser importantíssimo: no combate à fome. E se em situações semiáridas nos países da África negra se descobrem sementes compatíveis com as condições locais, capazes de ampliar as capacidades produtivas dessas populações que estão em situação de pobreza e que o ambiente é muito hostil? Não se devem empregar esses produtos pelo fato de serem transgênicos? É preciso tomar cuidado com isso. O mais interessante na discussão dos transgênicos é que ela coloca em realce o sentido do progresso técnico para o processo de desenvolvimento, ou seja, para as populações a que esse progresso técnico se refere. Para as populações européias essa é uma inovação que não lhes traz nada em termos de progresso técnico, mas talvez traga para as africanas.
22: Defensores dos transgênicos costumam argumentar que é preciso combater a fome no mundo, produzir alimento de forma abundante e barata diante de um crescimento demográfico, sem avançar a fronteira agrícola.
RA: Esse argumento acabou se voltando contra as empresas, porque é muito fácil provar que o problema da fome não vai ser resolvido com a produção de alimento barato. Como as pesquisas que essas empresas fizeram não foram dirigidas a melhorar as capacidades produtivas de populações pobres, elas foram pegas no contrapé de um movimento de contestação social extraordinário, que bloqueou os seus avanços. Quando entraram nesses mercados com argumentos que eram inconsistentes, isso contribuiu para abalar suas posições de mercado e fragilizá-las.
22: Fala-se que o Brasil tem áreas degradadas e por isso não seria necessário abrir novas fronteiras. Mas abri-las não é mais barato que recuperar as terras degradadas?
RA: Exatamente, tem de recuperar etc. No Brasil, a grilagem e ocupação de terras continua. O governo não tem como, sozinho, cuidar disso. As entidades empresariais, juntamente com o governo, precisariam ter uma ação muito incisiva no sentido de interromper esse processo de destruição imediatamente. Entretanto, formou-se no Brasil uma tradição, que corresponde de alguma maneira ao que existia nos EUA quando a EPA foi formada, de oposição entre o órgão ambiental e os interesses empresariais, como se os órgãos nada mais fizessem que impor limites burocráticos à livre manifestação dos interesses empresariais. É uma tragédia que ainda estejamos nessa etapa. O drama da degradação é que a transição é lenta, mas a destruição é rápida, e não dá para esperar a transição se completar, porque aí a destruição já terá sido muito vigorosa. Existe um duplo processo de diabolizar as condutas empresariais como anti-sociais e de caracterizar as condutas estatais como burocratizantes, o que nos conduz à paralisia.