Uma das grandes fronteiras a se explorar no planeta, a Amazônia vive um boom de investimentos. O capital que historicamente a devora pode ser um eficaz instrumento para mantê-la viva
Por Amália Safatle
“Quer proteger a Amazônia? Coma a floresta três vezes ao dia. Mas coma a floresta certa.” A receita é de João Meirelles, diretor do Instituto Peabiru, em Belém, e autor do Livro de Ouro da Amazônia, objeto de resenha do professor Ignacy Sachs. O militante de organização não governamental que freqüentou salas de aula de Economia indica que a salvação da maior floresta tropical do mundo vai além das cercas que tentam protegê-la: o capital que a devora pode ser um eficaz instrumento para mantê-la viva.
Uma das últimas grandes fronteiras a se explorar no planeta, a Amazônia vive um boom de investimentos. “O que se investiu nos últimos 500 anos na região equivale ao que está projetado para os próximos 10”, resume Meirelles. Nessa conta, entram atividades agrícolas, geração de energia hidrelétrica e mineração, que historicamente causaram grandes impactos socioambientais. Com os aportes previstos para as usinas no Rio Madeira, abre-se uma discussão de quão sustentável pode ser a exploração econômica na Amazônia (leia reportagem sobre os impactos das usinas).
Ao mesmo tempo, a retirada predatória de madeira, que abre espaço para a agropecuária feita de forma insustentável, produz um rastro de municípios falidos e perpetua a pobreza na região, como descreve o pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Adalberto Veríssimo, em entrevista nesta edição.
Diante de uma sociedade global mais vigilante, os novos empreendimentos terão de cumprir exigências crescentes para minimizar seus efeitos negativos e ampliar seus benefícios socioambientais. Mas a transformação que se espera para a Amazônia vai além disso: tornar-se um terreno fértil a uma nova economia baseada não mais na derrubada da floresta, mas no uso dela para se obter renda com base na produção de alimentos, cosméticos, medicamentos, madeira, borracha e também no próprio serviço ambiental que presta por meio da estocagem de carbono e de água.
O grosso dos investimentos projetados, entretanto, dirige-se às velhas modalidades de exploração econômica. “Quase metade do volume de exportações da Amazônia Legal vem de minério de ferro, manganês, caulim, alumínio. O setor mineral é quem está no comando econômico da região”, afirma Alfredo Homma, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – Amazônia Oriental.
As atividades mineradoras podem trazer benefícios sociais e ambientais à Amazônia — desde que praticadas com respeito aos princípios da sustentabilidade. Como mostram estudos de Veríssimo, são capazes de evitar o colapso econômico de municípios ao estabelecer uma economia mais diversificada e competitiva, em alternativa à exploração predatória de madeira.
Entretanto, as poucas diversificações econômicas estão longe de fazer jus à megadiversidade biológica, social e cultural da Amazônia. O que se produz de alimentos, por exemplo, nem mesmo pertence à biodiversidade local: é coco, dendê, abacaxi, boi, soja. “O açaí, a castanha e a madeira obtidas a partir de manejo são produtos locais que protegem a mata, porque dependem dela, mas ainda representam uma pequena parte da produção. Só 10% da madeira extraída na Amazônia é manejada”, diz Meirelles.
Macarrão e Ki-suco
Sem variedade de alternativas, a floresta majoritariamente cede lugar a produtos commoditizados e frutos de monoculturas. O ambientalista aponta como a primeira grande razão para o boom de investimentos na região o aumento do consumo mundial de carne, metais e água — esta última embutida na produção de boi e soja. Segundo ele, de cada 3 quilos de carne bovina consumida no Brasil, 1 quilo é da Amazônia. Em 50 anos, a “população bovina” na região passou de 1 milhão para quase 80 milhões de cabeças. Ao mesmo tempo, as guseiras — fábricas de ferro-gusa, matéria-prima do aço — utilizam madeira de desmatamento ilegal para seus fornos. Estima-se que 800 mil hectares de floresta densa tenham sido desmatados ilegalmente para exportação de ferro-gusa até 2005. E um terço da produção nacional de soja espalha-se pela Amazônia Legal, em Mato Grosso, Tocantins e Maranhão.
No outro lado da moeda, o consumo variado de produtos da agrofloresta ajudaria a mantê-la, na forma, por exemplo, de polpa de frutas, de castanha, de mel, de açaí. “Se as escolas e as cantinas das empresas na Amazônia usassem esses produtos, já movimentaria bastante essa economia alternativa. Mas a merenda das crianças é macarrão e Ki-suco, comprados em São Paulo”, diz Meirelles. Além disso, acrescenta ele, grandes redes de distribuição nacionais contribuiriam muito se colocassem em suas prateleiras alimentos de origem amazônica produzidos de forma sustentável e evitassem fornecedores de carne oriunda de áreas de desmatamento ilegal.
Boi da cara preta
A reportagem procurou as duas maiores redes de distribuição do País e perguntou se têm alguma política para compra de produtos da Amazônia. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Pão de Açúcar informou que não responderia e sugeriu que se ouvisse as associações paulista e brasileira de supermercados, Apas e Abras. Também por meio de sua assessoria, o Carrefour informou que vendeu a fazenda onde criava gado na Amazônia e não soube dizer de onde vem a carne que comercializa.
Os consumidores e distribuidores podem puxar essa nova economia da Amazônia, como defende Meirelles, mas de nada adianta se não houver uma produção que atenda regularmente à demanda. Para Homma, da Embrapa, os investimentos em produtos da biodiversidade amazônica propagandeados por empresas não correspondem à necessidade e a região vive uma grande defasagem de infra-estrutura, educação, ciência e tecnologia (leia mais na reportagem “Tesouro à espera de um mapa”). O que, por sua vez, desencoraja investimentos.
Recentemente, o Museu Paraense Emílio Goeldi divulgou uma lista com nada menos que 2.150 espécies florestais não madeireiras com algum tipo de uso econômico, incluindo plantas aromáticas, medicinais, alimentícias, fibrosas e oleaginosas. “Temos a maior floresta do mundo, que representa 59% do território nacional e é supostamente considerada o ouro verde do futuro, mas sua biodiversidade contribui em menos de 1% para o PIB”, afirmou Charles Roland Clement, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), durante a 59ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Belém.
Surfistas pegam a onda
Com valor econômico tão baixo, não é de espantar que a floresta caia por terra. Há, contudo, quem veja valor nela e consiga extraí-lo. O açaí disseminou-se pelo mercado consumidor do Sudeste, mas quem agregou valor a ele e conquistou maiores mercados mora longe da Amazônia. Foram dois surfistas americanos que investiram na criação de um inteligente sistema de coleta e pré-industrialização do fruto, o purple berry, e fundaram a empresa com nome de explícita referência ao Brasil e forte apelo comercial no exterior: Sambazon.
“Tirando Natura, Boticário e outras poucas, não há empresas brasileiras fazendo coisas desse tipo”, diz Roberto Waack, sócio-diretor da Amata, empresa que trabalha com madeira certificada. Devido à distância e à rápida degradação facilitada pelo clima tropical, os produtos amazônicos são extremamente perecíveis. As castanhas ficam com fungo, o açaí apodrece, as essências evaporam. Daí a necessidade de aplicar tecnologia para subir alguns degraus além do extrativismo puro e simples e alçar vôos mais altos. “Mas falta empreendedorismo”, afirma.
Empresas brasileiras fazendo coisas desse tipo”, diz Roberto Waack, sócio-diretor da Amata, empresa que trabalha com madeira certificada. Devido à distância e à rápida degradação facilitada pelo clima tropical, os produtos amazônicos são extremamente perecíveis. As castanhas ficam com fungo, o açaí apodrece, as essências evaporam. Daí a necessidade de aplicar tecnologia para subir alguns degraus além do extrativismo puro e simples e alçar vôos mais altos. “Mas falta empreendedorismo”, afirma.
De fato, os empresários brasileiros pouco se animam a enfrentar a aventura da floresta tropical, quando têm infra-estrutura e mercado consumidor à disposição num só lugar, no eixo Centro-Sul do País. “A região não conta com uma razoável infra-estrutura rodoviária, ferroviária, portuária. Exportar um contêiner de Belém custa duas vezes mais que do Porto de Santos. Nós só estamos atuando na região (no Pará) porque fomos antes, há 25 anos, quando o governo concedia incentivos fiscais para derrubar a mata e se implantar”, conta Marcello Brito, diretor-comercial da Agropalma, empresa que possui 34 mil hectares em plantações de palma e mais 72 mil hectares de reserva legal.
Quando começou a acessar o mercado internacional, em 1995, e crescia lá fora a conscientização ambiental, a Agropalma teve de se redescobrir. A partir daí buscou uma produção sustentável na região, usando o plantio das palmeiras para recuperar áreas degradadas. A palma, de onde se extrai o azeite-de-dendê, é uma cultura perene com ciclo de 25 a 30 anos, que produz o ano inteiro, gera empregos e tem uma produtividade bem superior à da soja e até à da canola. O azeite serve às indústrias alimentícia, oleoquímica, cosmética e também como biocombustível. “Não é uma opção para substituir a floresta porque não recompõe a biodiversidade, e sim para recuperar áreas desmatadas”, explica o diretor.
E essas áreas não faltam. Segundo Veríssimo, do Imazon, já se desmatou na Amazônia o equivalente aos territórios de Minas, São Paulo, Alagoas e Sergipe. Metade disso está abandonada ou subaproveitada. Brito, entretanto, critica o ambiente institucional para os negócios:
“A Amazônia é tratada com tanto respeito pelo governo brasileiro que sua ocupação é regida por uma medida provisória de 1999, que estabeleceu a reserva legal de 80%”, ironiza. Com isso, diz ele, se o empresário adquire uma área 100% degradada, tem de bancar do bolso o reflorestamento de 80%. “Qual atividade econômica será viável assim? É preciso uma regularização fundiária e um modelo de zoneamento econômico-ecológico, senão o empresário vai preferir investir em São Paulo mesmo. “ O custo de recuperação de áreas degradadas na Amazônia é ainda mais alto que em outras regiões. Segundo Homma, da Embrapa, a tonelada do calcário, por exemplo, custa dez vezes mais que em São Paulo. “Na Amazônia, a recuperação custa de R$ 800 a R$ 850 por hectare. Ao mesmo tempo, com R$ 300 a R$ 400 e um palito de fósforo, desmata-se a mesma quantidade de área”, compara.
Um zoneamento ordenaria a ocupação e a exploração econômica sem causar mais devastação. “Já desflorestaram 17% da Amazônia, ou seja, estamos quase nos 20% que a lei de reserva legal permite desmatar na região”, diz Waack, da Amata, para quem a agricultura e a pecuária são parte da solução para estancar o desmatamento e gerar renda nas áreas já convertidas. “É preciso estabelecer uma economia agrícola na Amazônia”, defende.
Mercados Crescentes
Veríssimo, do Imazon, também acredita que a pecuária feita de forma sustentável é uma boa alternativa de exploração, e para a qual há mercados crescentes. Para Homma, da Embrapa, o Brasil deveria também produzir nessas áreas a madeira de reflorestamento.
Mas para esse ordenamento são necessárias políticas públicas eficazes. “E falta ao governo uma visão estratégica para a Amazônia. Não tem um órgão com peso, estrutura, poder, uma coordenação de ministros. Sem isso teremos apenas iniciativas pontuais”, afirma Mary Allegretti, consultora independente que ocupava a secretaria de Coordenação da Amazônia no Ministério do Meio Ambiente até o início do governo Lula.
“Os estados hoje estão mais avançados que o governo federal, e o Acre e o Amazonas são exemplares. A soja determina a política de ocupação, mas a castanha e a borracha, não. Eu apostaria em mais ecoturismo para a região, mas faltam investimento público em infraestrutura e uma política regional para pagamentos por serviços ambientais”, critica Mary. Segundo ela, estudos para implantação do ecoturismo foram financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, mas não foram aproveitados na atual gestão.
Ela também aponta a necessidade de haver maior ativismo da sociedade civil. “Cadê as ONGs? Foram todas para o governo e por isso ninguém mais quer criticar.”
Recentemente, Roberto Mangabeira Unger, da então Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, mostrou preocupação com a conservação da Amazônia e atacou o “simplismo das políticas econômicas” para a região. Ao jornal A Tribuna, do Acre, afirmou: “Precisamos investir em projetos de zoneamento territorial. Temos de promover ações de médio e longo prazo, envolvendo agentes da sociedade para que a Amazônia passe a ser um assunto de interesse de todos”. Mas a Medida Provisória que criou a secretaria não foi aprovada.
A reportagem o havia procurado, mas sua assessoria informou que ele nçao concederia entrevistas até se inteirar melhor do tema amazônico. Em reunião com o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão do MMA que está implantando o sistema de concessões florestais em áreas públicas, o então ministro afirmou que as florestas são e sempre foram fator estratégico para qualquer planejamento econômico de uma nação. E agora se trata de uma área de inovação institucional, pois exige uma nova visão sobre direito de propriedade e uso sustentável.
Tanto Mary Allegretti como Homma avaliam que é preciso ir além da “política muito preservacionista” que ainda persiste no Brasil. “O País está dormindo, precisamos de um plano nacional de borracha, por exemplo”, diz Homma. A borracha, que já chegou a representar mais de 90% das exportações brasileiras, e cuja exploração protege a floresta, hoje é importada do Sudeste Asiático para atender a três quartos da demanda nacional.
Mas uma ou outra iniciativa sobressai. Em Xapuri (AC), a abertura de uma fábrica de preservativos com incentivos fiscais da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) fará com que antigos seringueiros retomem a atividade. A fábrica deverá produzir 200 milhões de preservativos por ano, ampliando a oferta para distribuição na rede pública de saúde.
Efeito tampão
Segundo Oldemar Ianck, superintendente-adjunto de Projetos da Suframa, a fábrica é um dos 45 empreendimentos — entre os quais a produção de equipamentos eletrônicos e de motocicletas — que vão injetar US$ 720 milhões na economia local e gerar cerca de mil empregos diretos nos próximos anos. Para Homma, a Zona Franca de Manaus exerce um “efeito tampão”, ao movimentar uma economia alternativa à exploração predatória.
Para ir além da “política preservacionista”, as concessões se apresentam como uma mudança de paradigma, na visão de Waack. Tanto por atuar como instrumento de regulamentação do uso da terra quanto na forma como esse uso será feito. A Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia, foi escolhida como a primeira região do País onde será permitida a concessão florestal.
O Plano de Outorga prevê que 1 milhão de hectares de florestas públicas (cerca de 0,5% do total) possam ser concedidos à iniciativa privada para manejo sustentável. As concessões serão feitas por meio de licitação pública, em que devem ser levados em conta o menor impacto ambiental, o respeito às normas trabalhistas e o direito das comunidades tradicionais. “Os critérios de seleção consideram mais a técnica e menos o preço. Isso é inédito na história da administração pública nacional”, afirma Tasso Azevedo, diretor-geral do SFB.
Segundo ele, o contrato com a empresa vencedora da licitação deverá ser assinado em março de 2008. Dos 220 mil hectares da Flona do Jamari, 40% poderão ser objeto de concessão, e 60% são de uso comunitário, conservação, mineração ou apresentam características que, segundo a Lei de Gestão de Florestas Públicas, impedem a exploração por empresas. A fiscalização das concessões será feita pelo Ibama, pelo SFB e uma auditoria independente, a quem caberá monitorar o manejo e a atuação dos dois órgãos. Mas ainda assim é objeto de dúvida por parte de alguns especialistas.
Stephan Schwartzman, codiretor do Programa de Trabalho Internacional da Environmental Defense, organização não governamental dos EUA, concorda que o sistema pode dar uma contribuição importante ao zoneamento. “Mas a questão é a implementação, a capacidade do Estado de fiscalizar aquelas concessões”, afirma.
“É uma região onde tem até trabalho escravo. Se não se consegue controlar isso, quanto mais monitorar os parâmetros de concessão”, questiona Rodolfo Salm, ph.D. em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, Inglaterra, e pesquisador do Emílio Goeldi. Salm aponta o risco de as atividades serem indutoras de ocupação no entorno, haver aumento de caça, em especial os grandes mamíferos, e se perderem espécimes de árvores. “As raras e de grande diâmetro não voltam mesmo”, diz
Segundo Schwartzman, há um debate técnico quanto à sustentabilidade do manejo madeireiro. “Não é questão de fazer um plano, cortar as madeiras mais nobres, voltar em 30 ou 40 anos, fazer tudo de novo e obter o mesmo valor. Isso não existe. O valor do segundo, terceiro ciclo, se um dia chegar lá, é muito menor”, afirma.
“As concessões não são a redenção da Amazônia”, Diz Mary Allegretti. “Temos experiência de dez anos com as reservas extrativistas, e elas só funcionam com várias culturas, como não madeireiros, turismo.” Por enquanto, o carro-chefe da exploração será a madeira.
Segundo Tasso Azevedo, a infra-estrutura a ser aberta na região não é indutora de ocupação porque estará voltada apenas ao uso florestal. Ele diz que a tendência é de diminuição, e não de aumento da caça na região onde há trabalho com carteira assinada. Que os relatórios de manejo serão públicos e os sistemas de fiscalização estão mais sofisticados. “O Detex, que vai monitorar a exploração florestal, entra em operação em outubro”, diz.
Apesar dos questionamentos, as concessões são mais uma tentativa para compor a necessária economia da floresta. E um exercício importante de atuação conjunta entre iniciativa privada, governo, comunidades locais e mercado consumidor. Somente essa rede de múltiplos atores pode dar conta de resgatar uma Amazônia multifacetada e megadiversa.