Por Amália Safatle
O governo federal pode, mas não quer salvar a Amazônia. Ou, melhor, até gostaria de protegê-la, desde que o custo político interno fosse indolor. Essa é a explicação para a falta de uma ação efetiva contra o desmatamento, na visão do embaixador Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).
Para o ex-ministro da Fazenda e da Amazônia, o Brasil revive, com a devastação, os idos de 1827 a 1850, quando enganava os ingleses para continuar traficando escravos. Até que a pressão internacional ficou insuportável, e o País cedeu – o que é um dos desfechos possíveis na questão amazônica. Mas, enquanto no Brasil os acordos políticos ainda impedem a proteção ambiental, esta começa a virar plataforma eleitoral nos países centrais, compara o diplomata.
Há um ano o senhor afirmou a PÁGINA 22 que a destruição da Amazônia era como um vício que puxava o Brasil para baixo e o fazia perder o argumento no cenário geopolítico. Com a retomada no ritmo de desmatamento, e uma política para a região que parece titubeante, o Brasil nada avançou no último ano em relação a isso?
Em matéria de definição de uma política coerente para o governo como um todo, eu até receio que esses últimos episódios indiquem um retrocesso. Porque, em algum momento, chegou-se a publicar que estavam pensando na anistia aos desmatadores, o que seria um retrocesso grave. A anistia aparentemente foi descartada, mas indica que o perigo está presente. Esses últimos episódios são muito eloqüentes. Qual é a lição a se extrair deles? Que, quando tudo vai bem e os resultados das medições do Inpe sugerem uma redução do desmatamento, a retórica do governo passa a ser muito progressista e confortável. Mas, de repente, quando se verifica que o desmatamento é flutuante e oscila de acordo com as cotações internacionais da soja e do boi, aí vemos que nós não temos uma política efetiva.
Eu vejo dois aspectos muito graves: a falta de uma estratégia coerente de curto, médio e longo prazos, e o outro, a falta de uma posição que englobe o governo como um todo, e não apenas setores dele. Sempre que há um alarma como esse do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), cogitam-se medidas de emergência como as que foram anunciadas: o envio da Polícia Federal, de destacamentos do Exército, visitas de ministro, medidas ligadas a crédito. Mas essas são ações reativas, muitas vezes não têm seguimento e raramente são o prenúncio de uma política firme, continuada e persistente. São mais factóides, que ganham as manchetes dos jornais.
Somente para dar uma resposta ao público?
Sim. Não está havendo o esforço para definir uma política que comece por identificar e remover todos os tipos de subsídios diretos e indiretos que favorecem o desmatamento.
Na raiz disso tudo, existe uma responsabilidade muito grande do Estado brasileiro. Qualquer pessoa sabe que a criação de gado ou a plantação de soja não seria viável em regiões tão distantes como essa, se não houvesse algum subsídio que o governo concede. Porque eles estão a milhares de quilômetros dos portos, embora tenham a vantagem de as terras nem serem compradas, são terras usurpadas. Apesar desse custo baixo da terra, os outros custos são muito elevados. Precisam de calcário para corrigir a acidez da terra, de fertilizantes, de defensivos. A própria energia, nessa região, tudo isso é subsidiado. Há subsídios diretos e indiretos.
Os diretos são financiamentos do Banco da Amazônia ou do BNDES, que aprovou recentemente projetos de frigorífico nessa região. Quem faz isso está criando a possibilidade da devastação para a pecuária. E os indiretos estão embutidos em todo o crédito agrícola, concedido com taxas de juro favorecidas, e que raramente é pago. Agora mesmo estão negociando com a bancada ruralista a anistia, a prorrogação dos créditos. Então, se houvesse um esforço sistemático de eliminar todos esses subsídios, a atividade desse tipo se tornaria inviável.
E isso não custaria aos cofres públicos…
Ao contrário, economizaria! O que acontece é que todos nós, você e eu, estamos financiando os devastadores, através dos impostos que pagamos.
Mas por que isso continua, apesar de toda a pressão internacional para salvar a Amazônia?
Não é verdade que o Executivo brasileiro não pode controlar, ele não quer controlar. É claro que, falando assim, talvez de boa-fé o presidente Lula se sinta chocado, dizendo: “Mas como não quero? Eu quero, sim”. Mas ele não quer pagar o preço que seria necessário para obter o resultado. Porque isso não é indolor.
O preço político?
Sim. Ele teria de ir contra o governador de Mato Grosso, o governador de Rondônia, a governadora do Pará – são todas pessoas que apóiam o governo. As maiores contribuições de campanha da governadora do Pará vieram dos madeireiros. Então, tudo isso é um conjunto de cumplicidades.
Salvo honrosas exceções, como a do governador do Amazonas, Eduardo Braga, que está empenhado em preservar a floresta, na maioria desses estados é quase impossível diferenciar o poder político do econômico. Porque os madeireiros, os plantadores de soja, os criadores de gado, os que avançam nas terras públicas são os mesmos que são eleitos deputados, senadores. Eu, quando era ministro da Amazônia, tive uma experiência interessante.
Fui convocado pela bancada amazônica. Naquele tempo era pior, porque o governador era o Gilberto Mestrinho, e a uma certa altura, eles me perguntaram sobre a questão das reservas indígenas. Eles são contra não só a floresta, mas também contra os índios. E fizeram aquela pergunta clássica: se o governo não estava dando muita terra para pouco índio. Eu dei a eles a seguinte resposta: “Quer dizer que vocês favorecem o critério quantitativo, de pessoa por quantidade de terra? Aceitariam que se fixasse também para vocês que nenhum ser humano pode ter mais que uma determinada quantidade de terra?” Aí eles desconversaram, porque todos, ou a maioria, eram latifundiários, e tinham avançado sobre terras públicas.
Mas se há uma conveniência política interna que leva ao desmatamento, o governo não perde muito no âmbito externo, em termos políticos?
Ele perde muito, mas, através dessas desculpas, dessas manobras, dessas meias-promessas, consegue sempre ganhar tempo. O governo está convencido, talvez até inconscientemente, de que vai conseguir superar todas essas questões internacionais empurrando com a barriga, como vem fazendo há décadas. Vou dar um exemplo. Quando a Vale do Rio Doce ainda era estatal, e começou o gigantesco Projeto Carajás, teve uma responsabilidade imensa ao criar aquele pólo de ferro-gusa na região, onde começou o desmatamento para carvão.
Naquele momento, a Comissão Européia quis reagir adotando medidas restritivas à importação de minério e de ferro-gusa. A Vale mudou de posição, e hoje em dia aparentemente ela combate essa prática. Mas o mal foi feito, as empresas de ferro-gusa estão lá, instaladas, continuam operando e, que eu saiba, não houve uma reação internacional como se deveria esperar. O governo brasileiro e a Vale conseguiram amainar a tempestade. E, cada vez que há uma vitória desse tipo, os devastadores se sentem mais em segurança.
Estava lembrando o antecedente da luta contra a Inglaterra entre 1827 e 1850, para pôr fim ao tráfico de escravos. O Brasil enganava os ingleses, por isso que se criou na época a expressão “para inglês ver”. O Brasil prometia de pedra e cal, assinava acordos, mas os desembarques continuavam. Até que o almirantado britânico foi autorizado pela Lei Aberdeen a apresar navios brasileiros dentro de águas territoriais brasileiras. Aí se tornou tão intolerável a pressão inglesa, que em 1850 o Brasil aprovou a Lei Eusébio de Queirós e em três anos acabou o tráfico, só teve um ou outro desembarque clandestino. O que provava que o Brasil podia. Usava-se o mesmo argumento: que o Brasil queria, mas não podia. Ou, para ser mais justo, ele quereria, desde que fosse a um preço indolor.
Nesse paralelo, a Amazônia depende então de uma pressão externa?
Eu temo que de duas, uma. Uma, que não vai haver nenhuma pressão externa e o Brasil vai destruir a floresta e pagar um preço, pois é a Floresta Amazônica que determina o regime de chuvas no Centro-Sul brasileiro – e até em Buenos Aires. E, portanto, a vantagem comparativa que temos em agricultura pode sumir em fumaça, literalmente. E aí não sei o futuro do Brasil, não estarei mais aqui para ver, a minha idade felizmente vai me poupar dessa tristeza. Ou então vai haver uma pressão contundente o bastante para obrigar o Brasil a implantar medidas conseqüentes. Admito até uma solução intermediária, isto é, que haja pessoas no governo que querem fazer alguma coisa. Acho que a ministra do Meio Ambiente é honesta e sincera – tem pouco poder, mas merece todo apoio –, o Ibama, toda essa gente que está tentando melhorar. Só pra citar o caso da madeira, esse documento que se criou sobre o certificado de origem é um excelente passo. Não sou daqueles extremados que dizem que nada se está fazendo. O trabalho desses institutos e ONGs que estão estudando o local está contribuindo, mas é um esforço insuficiente, porque não tem havido uma prioridade real. Os americanos têm uma expressão de que gosto muito: “É preciso colocar o bolso no lugar em que está sua língua”. Ou seja, prioridade que fica no discurso e não se traduz em dinheiro não é prioridade. Se continuarmos a ter dois ou três fiscais para fiscalizar os municípios em que está havendo maior devastação… eu vi o caso de um funcionário do Ibama que foi fazer um auto de autuação de destruição de uma área não autorizada e teve de pedir carona para o próprio devastador, porque o carro dele quebrou! Então, uma política efetiva é baseada em metas e em instrumentos para chegar a essas metas, recursos para fiscalizar, gente, Polícia, Exército.
Isso é só uma parte da resposta. A outra é que nem todos desejam (a proteção da floresta). O ministro da Agricultura, eu não sei se deseja, embora tenha dito que as áreas já devastadas seriam suficientes para se aproveitar para a pecuária e a soja. Na prática, não é bem assim, porque área devastada tem de ser recuperada, tem um custo e é mais atrativo usar áreas virgens. Outros ministros aí têm dado essas declarações clássicas sobre soberania, porque, na hora em que aumentam a pressão e a crítica internacional, a saída brasileira é sempre aquela que foi condenada pelo famoso autor de dicionários inglês, o Doctor (Samuel) Johnson, que dizia: “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Os canalhas sempre se embrulham na bandeira nacional.
Assim foi com o tráfico de escravos, com a tortura no governo militar, com a destruição da floresta. Sempre a defesa de causas indefensáveis se dá em nome da soberania nacional. Diante dessas divisões que existem no Ministério, a posição do presidente, em um sistema presidencialista, é fundamental. Porque só o presidente pode dirimir os conflitos internos. Só ele que poderia traçar uma linha e dizer: essa é a linha de governo, essa é a linha do Brasil. Ao não fazer isso, a sensação que se cria é de que essa é uma preocupação apenas da ministra Marina. Quem é Marina Silva? Uma pessoa demissível, ao bel-prazer do presidente da República.
Dou um exemplo que muita gente hesitaria em dar, porque é de um presidente que ficou marcado muito negativamente na História do Brasil, o Collor. Ele adotou duas medidas muito polêmicas, porque não se importou quanto ao potencial de conflito que geravam.
Uma foi ter dado ao ianomâmis aquela reserva imensa de Roraima, contra a qual se levantavam todo o estado de Roraima e os militares. A outra foi a decisão de mandar cimentar aquele poço de testes nucleares que os militares tinham construído na Serra do Cachimbo. Ele foi pessoalmente lá e cimentou. Nesse caso agora, precisaria de um gesto dramático, desta dramaticidade. Collor não foi um bom exemplo em outras coisas, mas nisso foi.
Qual sua opinião sobre as concessões florestais?
Olha, a idéia faria sentido para a Dinamarca ou para a Finlândia. Aqui, eu não sei, por causa da questão de fiscalização, da capacidade de orientar. Já que se quer fazer, teria que haver uma experiência piloto, para ver se funciona.
Além do Executivo, qual o papel dos mercados para a conservação da floresta e a busca de produtos certificados?
Acho fundamental que participem, mas tenho dúvidas de que, sem o Estado, os mercados façam esse papel plenamente. Dei aquele exemplo do ferro-gusa. Apesar dos pesares, não houve um boicote internacional. Hoje mesmo essa companhia MMXEBX, que saiu da Bolívia e está em Mato Grosso do Sul, é acusada de usar carvão vegetal e declarou que só terá carvão de madeira reflorestada em 2016.
Mas em relação à pressão dos mercados internacionais sobre a soja houve uma resposta…
Houve, houve também em relação ao óleo de palma da Indonésia e da Malásia. Acho que entidades como UE e países que importam a nossa soja e carne deveriam impor restrições, caso se comprove que o Brasil não é capaz de fazer isso por si próprio. O que está em jogo são valores mais altos, morais. Mas não sou tão confiante, porque os mercados não são tão virtuosos como parecem. Pois ainda preferem preços mais baixos e os certificados custam mais. Ainda não atingimos esse nível de consciência socioambiental.
Mas, à luz das negociações pós- Bali, como se tende a chegar a um regime internacional muito severo para os países ricos, em termos de restrições que terão de adotar em cortes de emissões, a partir desse momento vão começar a aplicar restrições severas a produtos que vêm de área não sujeita a limitações socioambientais. Acho que esse é um problema de médio prazo que o Brasil vai enfrentar com muita força.
A primeira manifestação disso será no etanol. Houve um relatório agora muito importante que inspirou a UE a só importar etanol com certificado que prove não estar diminuindo a biodiversidade em nenhum dos biomas e que a contribuição no balanço das emissões é bastante positiva. E no estado de São Paulo até hoje há queima antes da colheita e acusações repetidas das condições sociais deploráveis dos trabalhadores. No caso do etanol, uma dimensão é saber se o balanço energético e ambiental é bom. Isso você pode fazer por medições. Mas tem a questão social e há o complicador do protecionismo dos países consumidores. Alguns europeus acham que a salvação da agricultura européia não é mais a produção de alimentos, pois não conseguem competir com Brasil e Argentina, mas a de biocombustíveis. O Pascal Lamy já questionou isso: se não é mais ambientalmente saudável comprar o alimento ou etanol produzido pelo seu vizinho do que importar gastando o óleo diesel da caldeira dos navios, aumentando as emissões. Vai ser complicado, será uma batalha entre muitos fatores.
Se houver algum ajustamento na produção brasileira de etanol, será para atender a exigência de mercados?
Neste caso, sim. Os mercados ajudam, mas esse não é um tigre que possa ser morto com uma só bala. É preciso um conjunto de medidas, do governo brasileiro, da comunidade internacional e dos mercados, que não existem puramente. Por trás dos mercados europeus está a pressão dos governos e dos consumidores.
O quanto essa pressão pode ser usada como argumento para imposição de barreiras não tarifárias no comércio internacional?
À luz das atuais normas comerciais tudo isso é discutível. O Brasil poderia facilmente contestar isso na OMC (Organização Mundial do Comércio). Até hoje não houve negociações que chegassem a um acordo para incorporar amplamente as questões ambientais às restrições comerciais. Existe alguma coisa, mas é pouco em relação ao desejável. Quanto à questão em si, jurídica, mesmo que o Brasil ganhasse, é aquela história, ganha, mas não leva. Anos atrás, os consumidores alemães começaram a pressionar para que não se comprasse mais papel de países que fizessem o embranquecimento da celulose com produtos clorificados, o que é muito nocivo ao meio ambiente. Na época, boa parte da produção brasileira se fazia com cloro. Teoricamente, essa era uma barreira ilegal no comércio. O Brasil, se quisesse, poderia ter contestado, ido à OMC. Mas aqui os grandes fornecedores do mercado alemão acabaram se dobrando à exigência, porque é aquela história, o cliente sempre tem razão.
E quem se ajustasse ganhava uma vantagem competitiva.
Sim, mas o problema é quando tem um consumidor que aceita engolir qualquer coisa, por mais pirata ou criminosa que seja a atividade que a produziu, que é o caso do comprador chinês.
Mesmo assim, a busca da certificação socioambiental de produtos e processos é um caminho inescapável para o Brasil?
É um caminho valiosíssimo. Quanto mais certificados tivermos para madeira, soja, carne, melhor será. Mas com uma cautela: certificar-se de que o certificado é honesto, pois, aqui no Brasil, se falsifica tudo. E também é preciso a conscientização do consumidor.
Na corrida presidencial americana, vemos o candidato Barack Obama, com grandes chances de sair pelo Partido Democrata, dizer que o plano dele para mudanças climáticas é mais forte que o do republicano John McCain. Isso quer dizer que o clima já virou plataforma política, pelo menos nos países centrais?
Já. Acho que nos EUA há um fator que não se pode desprezar: 500 cidades de 25 estados – entre os quais a Califórnia, que sozinha representa o quarto PIB do mundo – já adotaram leis sobre as emissões.
Algumas estão querendo adotar tetos mais severos que o da Inglaterra. Isso prova uma evolução muito grande. O próprio setor de negócios e indústrias nos EUA está evoluindo muito. Isso se traduz nas campanhas políticas.
O que pode haver de inovação e criatividade no desenvolvimento de novas frentes ligadas à sustentabilidade?
É um imenso campo. Uma das muitas soluções para o problema da sustentabilidade é aquela que replaneja a vida humana em todos os seus setores, desde o tipo de casa em que se mora, o tipo de veículo que se usa, até o próprio urbanismo das cidades. Abu Dhabi resolveu investir não sei quantos milhões de dólares para construir no meio do deserto uma cidade de 40 mil habitantes, que será uma cidade ambientalmente avançada em vários aspectos. Tudo isso exige uma mudança do próprio design das coisas. Enquanto isso, nós aqui festejamos o centenário do Oscar Niemeyer. Ele não é um arquiteto que mereceria um grande prêmio desse ponto de vista, porque nunca teve preocupação com essas questões de natureza ambiental. Em geral, os projetos da geração de arquitetos que ele representa dependem fortemente de ar condicionado, de iluminação artificial, basta ver os prédios do Congresso Nacional. Até hoje isso é visto no Brasil como um modelo. Estamos festejando uma arquitetura que é bonita, mas é uma arquitetura dos anos 50, com princípios de Le Corbusier dos anos 30! Não quero censurar a grandeza do arquiteto, mas os alunos de arquitetura agora deveriam se encaminhar no sentido oposto ao dele…
O senhor, que esteve à frente do tema economia criativa quando secretariava a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), que definição faz desse conceito?
É todo tipo de atividade econômica que depende muito menos do capital, da força de trabalho, dos recursos naturais, e mais das idéias, dos fatores intangíveis. Um caso típico é toda a economia do software. E também de grande parte da indústria da diversão, cinema, rádio, televisão, música.
O que a economia criativa pode trazer de benefícios em termos de sustentabilidade, para que serve e que diferencial pode trazer para a sociedade que a desenvolve?
É uma economia muito menos intensiva em energia e, assim, incide menos sobre recursos naturais. Além disso, hoje cada vez mais está se tornando o grande dínamo das economias maiores. Na Inglaterra, o conjunto das indústrias criativas já é o maior responsável pelos números de emprego e pela produção em termos percentuais. O setor de serviços que mais se desenvolve hoje é a economia criativa. Não é a toa que a Inglaterra lança de tudo que é design e moda, como fez com a minissaia.
Embora os EUA tenham criado o rock’n’roll, os grandes grupos de rock eram ingleses ou irlandeses – os Rolling Stones, os Beatles. Hoje em dia, a Inglaterra vive da inventividade. Em matéria de indústria, não tem quase mais nada.
Ela fez a Revolução Industrial, mas ficou com muito pouco disso. Cada vez mais as sociedades avançadas vivem de idéias ou de ócio. (John Kenneth) Galbraith já dizia isso. À medida que aumenta o índice de renda das pessoas, gasta-se menos da renda com alimentos ou roupa e mais com teatro, música, computador. E a indústria criativa é a que fornece essas coisas. São bens que, quanto mais você consome, mais quer consumir, não enjoa consumir música, filmes, programa de computador.
E o Brasil, que ainda tem muita demanda pelas questões fundamentais, como fica em relação à economia criativa?
O Brasil teria condições muito boas, porque é culturalmente forte, tem uma marca forte. Na Unctad, notamos que nesse campo não há oportunidade apenas para os que são muito desenvolvidos.
No caso da tecnologia, sim, mas na música popular, por exemplo, não. No nosso primeiro programa, fomos para a Jamaica, que é um país curioso, e é paupérrimo. No entanto, boa parte desses ritmos, como o reggae e o calypso, nasceu lá. A combinação de africanos, cultura da cana, trópicos, tudo fez da Jamaica um lugar muito criativo. Os artistas jamaicanos têm ido sempre para Inglaterra e EUA. E, embora muitos desses ritmos tenham nascido da cultura popular, não tinham nenhum autor, então o povo da Jamaica lucrou muito pouco com isso. Os grandes criadores já moravam nos EUA ou na Inglaterra e os direitos ficaram para duas companhias. Tem duas companhias que dominam quase todo o copyright musical do mundo – Warner e tal dominam tudo. O que ia para a Jamaica era mínimo. Depois começamos em Cuba, que é extremamente criativa em música e dança. A influência que os cubanos tiveram no jazz americano é enorme. Mas também recebem muito pouco. E o Brasil segue a mesma linha. Então como fazer isso? Teria de criar companhias de disco aqui mesmo. Usar padrões daqui para fazer moda. Há várias maneiras de se buscar isso, para que a renda fique na economia daqui.
Além dos benefícios econômicos, quais outros poderia haver na linha de fortalecimento da identidade, de desenvolvimento nacional?
Seria uma forma de mostrar que culturas locais podem ter uma grande marca na economia mundial, mesmo em países que relativamente atrasados, como os da África. Quando fizemos a Unctad aqui, não conseguimos dinheiro, mas queríamos trazer esses grupos africanos para um grande concerto que iria se chamar “A Riqueza dos Pobres”, porque a riqueza cultural está em toda parte.
Isso mesmo em um país com educação fundamental precária como o Brasil?
Isso não depende do sistema educacional. O Cartola, a educação fundamental que ele teve foi mínima. A Clementina de Jesus, não sei nem se teve. É um talento que foi desenvolvido nas comunidades, teve um processo de aprendizado, mas que não foi formal, não precisa ser formal.