Uma nova classificação adiciona a densidade populacional e o uso da terra aos parâmetros que definem os biomas. Com 18 categorias, os biomas antropogênicos podem ajudar a mudar a maneira como o homem vê a natureza
Por Flavia Pardini
Se os homens desaparecessem da face da Terra, bairros residenciais se transformariam em florestas, ratos e baratas desapareceriam e grandes animais proliferariam em meio a vários souvenirs deixados pelos humanos, como estátuas de bronze, toneladas de plástico e de lixo radioativo. Essas são algumas das hipóteses que o jornalista americano Alan Weisman explora no livro O Mundo Sem Nós. Mais difícil é imaginar como a humanidade pode forjar um futuro para, estima-se, 9 bilhões de pessoas em 2050, sem destruir ecossistemas inteiros e pôr em risco a própria sobrevivência. Com uma população desse tamanho, o desafio maior parece ser encarar o mundo conosco, em vez de sem nós.
Atualmente, o homem está em toda parte, embora a classificação tradicional dos biomas ignore não só sua presença, mas sua interação com os ecossistemas. Para colocar o homem no mapa, os pesquisadores Erle Ellis, da Universidade de Maryland, Baltimore County, e Navin Ramankutty, da Universidade McGill, no Canadá, adicionaram duas variáveis – densidade populacional e uso da terra – ao conjunto usado para classificar os biomas, composto por diferenças gerais no tipo de vegetação e variações regionais do clima.
Em artigo publicado em fevereiro na revista Frontiers in Ecology and the Environment, eles apresentam uma visão alternativa da biosfera terrestre, baseada na análise dos padrões globais de interação direta e continuada do homem com os ecossistemas. Os resultados são o que Ellis e Ramankutty chamam de biomas antropogênicos, ou antromas.
“Os biomas antropogênicos podem ser descritos como mosaicos de paisagens heterogêneas, combinando diferentes usos da terra e coberturas vegetais”, explicam os autores. “Áreas urbanas estão inseridas em regiões agrícolas, árvores estão espalhadas entre plantações e moradias, e a vegetação manejada pelo homem está misturada com a vegetação seminatural.”
Ellis e Ramankutty criaram quatro categorias quanto à densidade populacional: densa (mais de 100 pessoas por km2), residencial (de 10 a 100 pessoas por km2), povoada (1 a 10 pessoas por km2) e remota (menos de 1 pessoa por km2). Partindo de dados globais para o tipo de população (urbana ou não urbana), uso da terra (áreas de pastagem, plantações, irrigação, arrozais e perímetro urbano) e para cobertura vegetal (áreas com vegetação ou improdutivas), usaram imagens de satélite e procedimentos estatísticos para chegar a 18 tipos de antromas e 3 tipos de biomas selvagens (tabela abaixo; o mapa-mundi dos biomas antropogênicos está disponível neste site).
“Vistos globalmente, os biomas antropogênicos claramente dominam a biosfera terrestre, cobrindo mais de três quartos da área livre de gelo da Terra e incorporando mais de 90% da Produção Primária Líquida e 80% da cobertura vegetal global”, escreveram os pesquisadores. A Produção Primária Líquida (NPP, na sigla em inglês) é a taxa líquida de produção de energia química útil pelas plantas de um ecossistema, resultado da diferença entre a quantidade de energia que produzem e a que usam por meio da respiração de suas células. Parte da NPP é empregada no crescimento e na reprodução das plantas e parte é consumida pelos herbívoros e em geral, indiretamente, pelo homem.
22% selvagem
Quarenta por cento da população humana vive nos antromas de povoamento denso e, destes, 82% estão nas cidades. Outros 40% habitam vilas, antroma Composto de povoamentos agrícolas densos, 15% vivem em áreas agrícolas, 5% em regiões de pastagem e 0,6% em áreas florestadas.
Em termos de extensão, as pastagens são o maior antroma, de acordo com o mapa de Ellis e Ramankutty, cobrindo quase um terço da superfície terrestre livre de gelo. Em seguida vêm as áreas agrícolas, com 20%, e as florestas, com 19,3%. Embora a maior parte das pessoas viva em povoados densos e vilas, ambos cobrem apenas 7% da superfície livre de gelo, na qual as vilas ocupam 5,9%.
O mundo sem nós – os biomas selvagens sem evidência de ocupação humana – domina 22% da superfície terrestre. De acordo com Ellis e Ramankutty, as áreas selvagens em geral estão localizadas nas regiões menos produtivas e, embora incluam florestas não povoadas, sua maior extensão ocorre em terras improdutivas e com pouca cobertura vegetal. Da produção global de NPP, os cantos selvagens do mundo contribuem com apenas 11%.
Um belo pedaço da natureza selvagem está no Brasil, onde 14% do território ainda guarda florestas sem indício de ocupação, segundo análise feita por Erle Ellis a pedido de PÁGINA 22 (tabela abaixo). Embora representem 14,6% do total existente no mundo, as florestas selvagens brasileiras perdem em extensão para o Canadá – que possui 35,2% de toda a área coberta por florestas selvagens do globo – e para a Rússia –, que detém 32,1%. Ambos os países abrigam a taiga, ou floresta boreal, o maior bioma do mundo e um dos mais frios.
Segundo Ellis, o Brasil e suas florestas tropicais representam o “arquétipo do selvagem na natureza”.Uma rápida olhada no tradicional mapa dos biomas brasileiros basta para identificar onde se concentra a arquetípica floresta: na Amazônia.
“Há essa imagem das florestas primárias, que não foram cortadas pelo menos desde o início do registro histórico, porque elas tendem a ter níveis mais altos de biodiversidade”, diz Ellis, especialista em ecologia da paisagem. “Mas é possível ter uma paisagem parte manejada e parte não; ter algum uso muito intensivo, mas também alguma conservação, e manter quase toda a biodiversidade.” Prova é a região produtora de cacau em Una, no Sul da Bahia, onde a paisagem fragmentada da Mata Atlântica reteve boa parte da diversidade biológica.
“Se tivermos uma abordagem científica, menos baseada na idéia de que o que é selvagem é inerentemente bom e mais na idéia de que queremos a biodiversidade, mas também queremos benefícios econômicos como os que decorrem da agricultura ou de diferentes tipos de manejo florestal, podemos tentar descobrir o tipo de estrutura da paisagem que as várias espécies precisam, especialmente aquelas mais sensíveis à fragmentação, que é o efeito mais simples que os homens têm”, afirma Ellis.
Assim como biodiversidade, as florestas usadas pelo homem retêm alta produção de NPP e o Brasil detém um total de NPP significativamente maior do que qualquer outro país, seguido pela Rússia e pelos EUA.“Isso se deve em grande parte às grandes quantidades de NPP nas florestas”, explica Ellis. “Mas vale notar que as florestas selvagens representam apenas um pouco mais de um quarto da NPP total das florestas, e que nas florestas remotas, com evidência de ocupação e uso pelo homem, a NPP é quase duas vezes mais abundante.” Depois das florestas, a maior fonte de NPP entre os antromas brasileiros são os mosaicos residenciais úmidos – áreas agrícolas com significativa cobertura vegetal e população humana.
Há 8 mil anos
Ellis admite que o atual mapa dos biomas antropogênicos precisa de avanços. As imagens de satélite mostram a cobertura vegetal, mas não revelam imediatamente o uso feito da terra – o que demanda outras fontes de informações, nem sempre disponíveis ou atualizadas. Hoje, os pesquisadores usam dados atualizados até o ano 2000. “Temos um modelo simples, em que as florestas selvagens, por exemplo, são uma categoria, sem diferenciar entre boreal e tropical”, admite Ellis. “Apenas analisamos os padrões existentes, não tentamos compreender como foram criados ou por que um local foi mais alterado do que outro.”
Ele e seus colegas trabalham agora para criar um modelo que consiga prever o status futuro dos biomas antropogênicos com base, por exemplo, nas condições econômicas. A idéia, garante Ellis, não é aposentar os modelos convencionais de biomas. “Nós ainda precisamos deles, são uma boa referência para como a natureza se comporta sem o homem.”
Faz tempo, no entanto, que a natureza era o único sistema a determinar o destino dos biomas, pelo menos de acordo com a linha de pesquisa que embasa o trabalho de Ellis e Ramankutty. Na contramão do consenso científico de que as ações humanas começaram a influenciar o clima – um dos determinantes dos biomas – nos últimos séculos, o geólogo William Ruddiman defende que o fenômeno tenha se iniciado há cerca de 8 mil anos, quando nossos antepassados passaram a desmatar para praticar a agricultura.
Sabe-se que o clima global é controlado por três variações previsíveis e cíclicas na órbita da Terra, que determinam a quantidade de radiação solar que chega a diferentes partes do planeta em cada estação do ano e a tendência à concentração de gases de efeito estufa. Ao longo dos últimos 3 milhões de anos, tais variações produziram períodos em que grandes parcelas do Hemisfério Norte foram cobertas por gelo, as eras glaciais, intercaladas por períodos mais quentes, as eras interglaciais.
Ao examinar os registros de concentração de dois gases de efeito estufa dos últimos 400 mil anos, Ruddiman observou uma mudança no final do último período interglacial: a concentração de metano, ao contrário dos ciclos anteriores, não abaixou tanto. O mesmo ocorreu com a concentração de CO2 alguns milhares de anos depois.
Para boa parte dos pesquisadores, o fenômeno decorre de fatores naturais, mas, de acordo com Ruddiman, o único fator presente no último ciclo e não nos anteriores é a agricultura, que começou a ser praticada no Oriente Médio há cerca de 11 mil anos, espalhando-se em seguida para o Oriente, onde os homens iniciaram o cultivo de arroz em áreas alagadas há cerca de 5 mil anos. À época da Revolução Industrial, portanto, o clima era bem mais quente do que em igual período de ciclos passados. “Na minha visão, a natureza teria esfriado o clima do planeta, mas nossos antepassados mantiveram-no quente ao descobrir a agricultura”, escreveu Ruddiman.
Adeus, Holoceno?
A teoria ainda é controversa, mas cada vez mais cientistas acreditam que a magnitude da influência do homem sobre o planeta é comparável às forças climáticas e geológicas que moldam a biosfera terrestre e seus processos. Tanto que um grupo de pesquisadores, encabeçados pelo geólogo Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, propõe que a ciência reconheça o início de um novo período geológico, o Antropoceno.
A expressão foicunhada em 2002 pelo prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, que sugeriu que a Terra vive um novo período por causa dos efeitos ambientais do aumento da população humana e do desenvolvimento econômico. Para Zalasiewicz e colegas, as mudanças na biota, na sedimentação e na geoquímica do planeta desde o início da Revolução Industrial são suficientes para deixar uma assinatura estratigráfica – nas camadas de rochas e sedimentos – distinta da período atual, o Holoceno.
Em artigo publicado em fevereiro, os pesquisadores discutem como determinar o limite inicial do novo período – uma hipótese são os testes atômicos dos anos 60, que disseminaram isótopos radioativos globalmente – e admitem que, à parte muito debate científico, a decisão de iniciar o Antropoceno vai depender da utilidade do termo, em particular para os geólogos.
A teoria de Ruddiman é facilmente encampada pelos chamados “céticos” em relação ao aquecimento global, rápidos em apontar o papel benéfico do aumento da concentração de gases de efeito estufa causada pelas atividades humanas. De outro lado, o mapa dos antromas de Ellis e Ramankutty foicriticado por conservacionistas preocupados com o fato de que, ao usar o termo “antropogênico” em vez de “natural”, os pesquisadores estariam desvalorizando os ecossistemas aos olhos do público leigo e fomentando sua destruição.
“Ver a natureza como parte dos sistemas humanos encoraja as pessoas a tomar responsabilidade pelos ecossistemas em vez de pensar neles como ‘a frágil natureza lá fora’”, rebatem os pesquisadores. “Já estamos no lugar do motorista. Se o nosso desejo coletivo nos levar a conservar, preservar e restaurar a ‘natureza’, sairemos todos ganhando. Mas manejar a natureza como se tudo o que tocássemos fosse destruído não vai nos levar aonde queremos chegar.” Neste momento do debate “coletivo”, o maior valor de colocar o homem na escala geológica e no mapa dos biomas é educativo, acredita Erle Ellis. “É educativo para mim como cientista, e para muitos cientistas, ver o mundo dessa maneira, aprendemos algo que não compreendíamos.”