A obesidade é emblema dos desafios socioambientais contemporâneos: perseguir a qualidade em vez da quantidade
A existência de 1 bilhão de famintos e o horizonte de crescimento em mais de um terço da população mundial até 2050 parecem levar a uma conclusão óbvia: nada seria mais importante para o sistema agroalimentar que prosseguir no incessante aumento da oferta. Documento recente das Nações Unidas, elaborado a partir de entrevistas com dezenas de pesquisadores e líderes setoriais de todo o mundo, insurge-se contra essa aparente evidência. “Estamos buscando o objetivo errado”, diz o texto logo em sua introdução. “Pela primeira vez na História, a quantidade de pessoas com sobrepeso e obesidade supera a de desnutridos. São desastrosas as consequências de nossos hábitos dietéticos emergentes para a saúde das pessoas e dos ecossistemas. No entanto, a política agrícola concentra-se em produção e comércio e está curiosamente divorciada das questões vitais da boa nutrição”.
O setor agroalimentar é uma espécie de síntese dos grandes desafios da relação entre economia, sociedade e natureza no século XXI. Por um lado, é imprescindível que ele faça mais, permitindo que alimentos de boa qualidade cheguem àqueles que estão em situação de fome ou que têm carências nutricionais. Mas seu desafio mais importante e mais difícil não é este: é fazer melhor e, em muitos casos, fazer menos do que se faz atualmente.
O gráfico mostra que a quantidade de refrigerante servida por refeição nos fast- foods americanos aumentou seis vezes, o hambúrguer tornou-se três vezes maior e a porção de batata frita foi igualmente multiplicada por três de 1950 para cá. Como esse padrão se difunde globalmente, o resultado é uma pandemia de obesidade. Só nos estados Unidos, um terço da população adulta é obesa. E sempre é bom lembrar que obesidade não é apenas sobrepeso: um indivíduo de um metro e setenta e cinco será considerado obeso caso seu peso vá além de 92 quilos.
Este é um exemplo de duas dimensões centrais dos problemas socioambientais contemporâneos. A primeira refere-se ao fato de que a ampliação desmesurada na oferta de produtos depende do uso predatório e gratuito de serviços ecossistêmicos, cuja oferta encontra-se cada vez mais ameaçada. A consultoria global KPMG calculou os custos ocultos de 11 setores da economia global referentes à emissão de gases-estufa, ao uso de água e à produção de lixo. Para cada setor esses custos foram comparados aos lucros setoriais. No caso do setor alimentar, corresponderam a nada menos que 284% dos lucros.
Globalmente, o setor opera no vermelho. Na raiz da obesidade (e também do desperdício que destina ao lixo de 30% a 40% da produção agropecuária mundial) está o caráter artificialmente barato das calorias servidas de forma cada vez mais abundante. Comida barata resulta muito mais de apropriação predatória e não paga de serviços ecossistêmicos escassos do que de eficiência tecnológica.
A segunda dimensão em que a obesidade sintetiza os problemas socioambientais contemporâneos é que os padrões de consumo a ela subjacentes são formatados de maneira explícita e coordenada pela indústria, sobretudo pela oferta crescente daquilo que Carlos Augusto Monteiro, uma das maiores autoridades mundiais no tema, chama de alimentos ultraprocessados. Seus principais ingredientes tornam-nos ricos em gorduras e pobres em micronutrientes, fibras e outros compostos bioativos. Além disso, eles possuem alta densidade energética, hiperpalatabilidade, são vendidos em porções imensas e apoiam-se em marketing agressivo. Consumir esses alimentos de forma esporádica não traz danos. O problema é que eles se integram à dieta cotidiana e a quantidade de produtos frescos com os quais, às vezes, são servidos é ínfima. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha os alimentos ultraprocessados fornecem mais de metade de toda a energia calórica consumida pela população.
Tais produtos não são uma resposta neutra àquilo que os consumidores demandam: sua base é um trabalho industrial e mercadológico de formação da demanda que passa pela moldagem da cultura alimentar e do próprio paladar das pessoas. O pior é que esse padrão vai-se impondo desde a infância, por meio de técnicas mercadológicas eticamente inadmissíveis (e, no entanto, largamente praticadas) como a associação entre comida e brinquedos como forma de atração de crianças para dentro das lojas de fast-food.
Professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, é autor de Muito Além da Economia Verde. Twitter: @aBramovay