Independência energética. Preservação das florestas tropicais. Sustentabilidade. Empregos verdes. Cidades habitáveis. Fontes renováveis. Água e ar puros. Crianças saudáveis. Etc. É longa a lista exposta ao público por um conferencista da Cúpula Mundial do Clima. Mas eis que na plateia um cético, com fisionomia irritada, pergunta à colega sentada a seu lado: “E se tudo isso [a mudança climática] não passar de uma brincadeira e criamos um mundo melhor por nada?”
A descrição acima é de um cartum desenhado por Joel Pett, que ilustra o jornal americano Lexington Herald-Leader. A alfinetada retrata bem o momento em que a turma dos descrentes da mudança climática procura ganhar espaço.
Embora a concentração de dióxido de carbono na atmosfera tenha batido na semana passada uma marca de nada menos que 4 milhões de anos atrás – 400 partes por milhão – um feito que pertencia à época chamada de Plioceno, do período Terciário da era Cenozoica, acredite: há quem ainda duvide do aquecimento global.
E também tem a turma que, mesmo reconhecendo o aquecimento, não acredita que a ação antrópica desde a Revolução Industrial, período a partir do qual a humanidade passou a queimar combustíveis fósseis como nunca na história da civilização, tenha alguma participação nesse quadro. Não acha que a mão do homem seja capaz de potencializar outros possíveis fenômenos naturais causadores do aquecimento. Outra linha argumenta que a tese do aquecimento é uma conspiração ideológica ou de motivação mercadológica e política. Ou mera questão de ego acadêmico.
Os céticos são críticos ferozes do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês) um grupo formado por 2 mil cientistas do mundo todo. Muitos dos céticos ganham espaço na mídia chamando a atenção por suas vozes dissonantes e taxando de alarmistas e catastrofistas as previsões do IPCC. Previsões estas que eles buscam desqualificar tecnicamente, mostrando erros.
De fato, a ciência do clima está em construção, assim como tantas outras. Como um novíssimo capítulo da ciência, é normal que haja incertezas, erros, descobertas, conflitos, discordâncias. Isso faz parte do processo de desenvolvimento do conhecimento científico.
Mas daí a chamar o aquecimento global e suas perigosas consequências de “farsa” há uma distância enorme. Recentemente, estudos mostraram que existe uma diminuição no ritmo do aquecimento em relação ao aumento das emissões de dióxido de carbono. Na última década, houve uma variação menor que a prevista pelos modelos climáticos. Pronto: era tudo o que os céticos queriam.
Mas até mesmo a conservadora revista inglesa The Economist deu um show de jornalismo expondo o fato, analisando-o de forma equilibrada, ouvindo várias linhas de investigação científica e concluindo que esse não seria motivo para se descuidar do combate ao aquecimento global. Até porque variabilidades em períodos curtos (como décadas) são normais e podem não indicar uma tendência de longo prazo.
Além disso, pontos ainda obscuros como a medição da temperatura oceânica em diferentes níveis de profundidade, e variáveis como a influência dos aerossóis e até mesmo da cobertura de nuvens tornam ainda mais complexas as investigações e a modelagem climática como um todo.
Diante de dúvidas, o que é melhor fazer? Em uma curva, em que o motorista tem poucos elementos para saber o que está a sua frente, deve-se acelerar para ultrapassar ou dirigir com mais cuidado?
Incertezas e gaps de conhecimento são mais motivos para agir com precaução e aprofundar estudos, em vez de desqualificá-los. É o que explica reportagem “Sensibilidade Climática“, publicada em maio na revista Página22.
Quando trafega na contramão do bom senso é que o jornalismo se torna capaz de produzir coisas como a reportagem da revista Veja de 8 maio. Derrapagem pura. Claro que se entende a obediência da matéria à linha editorial da publicação, voltada a enlevar o consumismo de uma classe média individualista. E no entender da revista, essa história de aquecimento global faz o consumidor se sentir culpado. Mas nada justifica o desserviço público de colocar o jornalismo entre ferragens.
A matéria de tom vingativo, que logo se vê pelo título irônico “O Apocalipse terá de esperar“, apressa-se em conclusões duvidosas, apoia-se apenas nas fontes que servem para justificar suas teses e dá a impressão de querer tirar algo por muito tempo entalado na garganta.
Quase histriônica, chega ao descontrole de associar a responsabilidade humana na questão do aquecimento global com “pecado ecológico” e citar o homem de Cro-Magnon para inferir que defensores da sustentabilidade querem voltar ao tempo das cavernas – ignorando, assim, toda a inovação embutida em uma economia de baixo carbono, busca de eficiência, aumento de produtividade, tecnologias avançadas, fronteiras de conhecimento, empregos verdes, novos mercados etc. Questões desafiadoras em um cenário de limites físicos, de preocupação com o coletivo, de crescente responsabilidade socioambiental e de necessidade de adaptação a mudanças bruscas e profundas durante um minúsculo trecho da linha do tempo planetária.
A Veja, ao também abrir espaço para quem acredita que o aquecimento global trará benefícios à humanidade. Sem ouvir representantes da comunidade científica que é majoritariamente preocupada com os efeitos da mudança climática praticamente faz um insulto às vítimas de eventos climáticos extremos, só para citar uma das conseqüências do desequilíbrio do clima.
Por essas e outras, dá para ter uma dimensão de quão inconveniente pode ser a verdade climática e como certas porções da sociedade brasileira fazem de tudo para manter a cabeça em um orifício sob a terra – qualquer coisa para não abrir mão de sua zona de conforto e seguir em um mundo particular, alheio e ilusório.
Que o debate científico seja mais inteligente e a imprensa, um prestador de bons serviços.
*Texto originalmente publicado no Terra Magazine