A comunicação já foi muito usada para dominar e manter estruturas de poder. Um processo nascente de descentralização na forma de produzi-la e difundi-la lança luzes para transformar a sociedade
Por Amália Safatle
Do alto de seus 6 bilhões e 600 milhões de pessoas, a Terra anda congestionada. Até o mundo virtual parece emitir sinais de esgotamento. Há pouco, um alto executivo da AT&T engrossou os alertas sobre o colapso da internet até 2010, quando deverá atingir sua capacidade máxima, caso não sejam feitos investimentos bilionários em expansão. A razão, um volume progressivo de downloads, uploads e que tais. Falso ou superestimado, como foi o bug do milênio, o alarme não deixa de ser indicação, exemplificada pela parte on-line da humanidade, de que ela busca cada vez mais formas de se comunicar. O que não necessariamente corresponde a um maior entendimento entre as pessoas.
“A comunicação parte do princípio de que precisa haver o entendimento do outro”, diz Lúcia Araújo, gerente-geral do Canal Futura. Portanto, é o caso de questionar o sentido de tanta informação: comunicar para quê?
Ao longo da história é possível observar como o ato de comunicar foi usado para dominar, para vender mais, para convencer alguém de alguma idéia, mas nem sempre para formar uma sociedade mais esclarecida, questionadora e capaz de encontrar soluções coletivas para os problemas globais (mais sobre relações humanas no artigo “Todos pela Meta 9“). “A comunicação sempre foi colocada como forma de persuasão, e o destinatário como um ser passivo”, afirma Paulo Nassar, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje).
Danilo Santos de Miranda, que dirige o Serviço Social do Comércio (Sesc)-SP, enxerga na mensagem veiculada por muitos meios de comunicação no Brasil o objetivo de criar condições para manter o status quo. “Isso independe de corrente, não tem esquerda, nem direita, nem centro, mas há uma ideologia do estabelecido que vai garantir a continuidade do modelo existente, que é opressor, exploratório, que ameaça a boa convivência entre as pessoas. Mas acho já que avançamos muito”, afirma, em entrevista para esta edição.
Segundo especialistas ouvidos nesta reportagem, esse avanço anda pari passu com a consolidação da democracia. Difícil saber se é a sociedade democrática que eleva os ideais da comunicação ou se é a comunicação que abre os canais para a prática da democracia. “Fato é que, em uma sociedade democrática, a interatividade é enorme e há um descentramento de poder. Hoje um ponto de vista é só um ponto de vista”, diz Nassar. “Com qualquer pessoa produzindo conteúdo, crescem as pressões sobre instituições e empresas. Tudo isso aumenta a complexidade da informação e é preciso aprender a se comunicar nessa nova realidade, em que as empresas são apenas nós de uma rede”, observa.
Longe, porém, de comemorarmos o pleno exercício da democracia no Brasil, onde nem mesmo foi resolvida a questão da educação básica e, por conseqüência, a capacidade de a população acessar e interpretar o volume imenso de informações que pairam no ar. A internet, por exemplo, é um eficaz instrumento para mobilização social em forma de redes, mas em um país de exclusão digital, pouco atinge as massas (mais na reportagem “O byte nosso de cada dia“).
No Brasil, elas ainda são influenciadas por outro meio, que ainda permite pouca interatividade e cujo conteúdo, salvo exceções, tem sido ditado por interesses predominantemente comerciais. Mas que aos poucos começa a sofrer transformações.
Da mão à boca
Fogão e televisão: primeiro e segundo eletrodomésticos mais presentes nas casas brasileiras. Serão representações do pão e circo? A telinha, parte integrante de mais de 90% dos lares, ganha até da geladeira. No livro Tudo É Comunicação, Nassar discorre sobre a boca, parte do corpo que “reúne a matéria e a alma, o alimento e a palavra”. Conhecer a forma como esse meio atua é também perscrutar parte da alma brasileira e entender o que a alimenta.
Há uma máxima de que o público se interessa mesmo é por polícia, política e desastre de avião. Em relação ao primeiro item, o caso Isabella, por exemplo, mostrou a que ponto as mais diversas mídias renderam- se à espetacularização da notícia para angariar pontos de audiência. Mas será que o público brasileiro também não almejaria mais qualidade, tanto na escolha de temas como na forma de se tratá-los?
Pesquisa do Ibope realizada em 2007 revela que o aquecimento global está no topo da lista de preocupações da população brasileira. O fato de a maioria acessar informação via tevê e rádio prova que as informações socioambientais estão de fato disponíveis nesses meios. O problema estaria na forma como são veiculadas.
Ligue a tevê aleatoriamente. Jornal Nacional, semanas atrás: após reportagem sobre a polícia e o tráfico de drogas, uma sucessão de temas ambientais e desastres naturais toma o noticiário. As conseqüências do terremoto na China. Do ciclone em Mianmar. Do tufão nas Filipinas. A crise da coleta de lixo que persiste na Itália e o depoimento de uma mulher com medo de contrair cólera. Na seqüência de tanta tragédia, uma reportagem “pra cima” sobre a invenção de um navio movido a hidrogênio na Islândia. Depois, a escolha do consórcio Energia Sustentável para construir a usina de Jirau, na Amazônia. E os planos do novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. Previsão do tempo. Em seguida, reportagem sobre o assoreamento nas margens do Rio São Francisco. Fecha o bloco intervalo comercial que traz o novo Corolla.
Laurindo Leal Filho, professor da ECA-USP, cita as principais fórmulas do jornalismo adotadas em veículos comerciais na busca da audiência: a exploração de fatos que mexem com instintos e emoções primitivas, como o medo e a morte – daí a notícia-espetáculo, a exploração da catástrofe –, e a curiosidade em torno dos chamados fait divers, fatos desconectados entre si e descontextualizados da realidade. Exemplo: o rompimento de uma barragem é noticiado, mas não se fala sobre as causas, por que a represa existe, quais são as alternativas para produção de energia, políticas de eficiência energética etc.
Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação, discorda dessa tese, ao menos no que diz respeito à TV Globo. Segundo ele, a emissora tem abordado permanentemente o assunto da sustentabilidade, produzido séries específicas em que o tema é aprofundado – inclusive em programas de grande audiência, como Jornal Nacional e Fantástico – e mantém há 19 anos um programa semanal dedicado ao assunto, o Globo Ecologia. Outro exemplo de abordagem mais aprofundada que cita é o Globo Repórter: somente em 2007 foram 19 programas abordando questões socioambientais.
Audiência no extraordinário
Mas para Maria Helena Masquetti, psicóloga do Projeto Criança & Consumo, voltado ao impacto da mídia na formação infantil, não existe continuidade na cobertura jornalística, pois o que gera audiência são de fato os aspectos extraordinários. “Na seqüência de uma notícia sobre mudança climática vem outra sobre o nascimento de um bebê panda no zoológico e em seguida cenas de pessoas felizes em um comercial de celular”, diz.
O Projeto Criança & Consumo é um dos movimentos que defendem a proibição da publicidade para a criança (veja mais na reportagem “Zona Cinzenta por Trás do Verde“). O argumento é que o público infantil ainda não tem condições de tomar decisões e é usado para persuadir o adulto. Uma vez que está em formação e sempre procura aceitação de quem está ao seu entorno, tende a acreditar na televisão e a seguir o que é dito nela.
“Como a publicidade vende a idéia de felicidade, a criança se condiciona a consumir para se sentir feliz.” (leia mais sobre o público infantil em “Faz-de-conta de verdade“) Com isso, por mais que os meios de comunicação transmitam a mensagem da sustentabilidade, há uma incoerência quando a publicidade que os sustenta incentiva o consumismo.
Na busca de uma coerência entre as ações de responsabilidade socioambiental corporativa e a publicidade, o produtor cultural Sergio Miletto, coordenador nacional da Associação Brasileira de Empresários para a Cidadania (Cives), pretende reunir os controladores das empresas que são as maiores anunciantes para debater a questão. “Não adianta falar com os publicitários, eles estão atendendo um cliente. É preciso falar com quem decide. Os profissionais que estão no meio são como uma zona de amortecimento”, diz.
Vilões e mocinhos?
Erlanger, da Globo, acredita que não há contradição alguma entre iniciativa privada, consumo e sustentabilidade. “Ao contrário, o que se busca é a harmonia entre esses fatores. ‘Demonizar’ os veículos de comunicação e a sociedade de consumo é uma aposta segura no atraso, e que atinge justamente as populações de baixa renda. Inclusão também implica acesso a bens de consumo – comida, educação, habitação etc.”, afirma. “De qualquer forma, pelas regras da TV Globo estão vedadas mensagens que confrontem nossos princípios éticos e morais”, garante.
Só que, na visão de Leal Filho, não haveria interesse por parte dos detentores das concessões televisivas em promover um jornalismo mais contextualizado. “Se forem discutir as causas e as conseqüências de um fato socioambiental, vão chegar ao questionamento da política pública, da política econômica em vigor, e isso não os convém.”
Miletto partilha da mesma opinião. Para ambos, a lógica criada entre anunciantes, emissoras de tevê e governo procura manter as relações de poder e de influência como são – embora na condição de concessionárias públicas, as tevês devam cumprir um papel social, estabelecido na Constituição Federal.
“Nem cartório passa mais de pai para filho no Brasil. Quem controla o canal não deveria controlar o conteúdo, assim como a concessionária de uma estrada não decide quem vai passar por ela”, diz Miletto. “Mas falta vontade política para romper privilégios”, critica Leal Filho.
Erlanger, entretanto, reafirma que o papel da televisão aberta é fornecer entretenimento e informação para que a sociedade possa refletir sobre seus rumos. E faz questão de diferenciar os dois modelos de concessão vigentes no País: as televisões estatais e as comerciais.
“Não raro se cobra da televisão privada um papel que caberia aos canais públicos”, diz o diretor. “A tevê privada é provavelmente a atividade com maior fiscalização no Brasil. É controlada pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário, sem contar os milhões de telespectadores – nossa razão de ser e juiz maior do nosso comportamento.” E acrescenta: “Como se viu agora na transparente prestação de contas dentro do processo de renovação (da concessão), com aval do poder público, a TV Globo atende com sobra a todos os quesitos exigidos pela legislação, porque nossa aposta é no País”.
Em uma sociedade mais complexa, com mais atores interagindo, fica difícil traçar a linha entre bons e maus. Embora Paulo Nassar concorde que falta à tevê aberta uma cultura pública, uma contrapartida social à sua cultura administrativa, acredita que não há mais espaço para maniqueísmo. “É a história do filme Tropa de Elite, tá todo mundo consumindo, todos são responsáveis”, afirma. “Não adianta querer demonizar o publicitário, a tevê de massa, o governo. Agora é a hora da mesa-redonda. Não tem mais uma única verdade. É o momento da procura”, afirma.
Vi um Brasil na tv
Se há várias verdades, nada como retratá-las em sua diversidade. Primeira tevê pública de caráter nacional, a TV Brasil veio preencher um espaço complementar ao sistema privado de comunicação – como previsto pelo artigo 223 da Constituição. Um de seus propósitos é dar vazão às produções e documentários independentes que não encontraram receptividade nos canais comerciais. Pelo que conta Orlando Senna, diretor-geral da TV Brasil, sustentabilidade, diversidade cultural e valorização da cultura regional deverão permear a programação – que até o fim do ano poderá ser assistida pela internet, pelas emissoras próprias de São Paulo, Rio, Brasília e São Luís, e nas afiliadas à rede, ainda em formação.
“As tevês privadas têm seus objetivos, suas funções, e cada uma delas dirige sua programação de acordo com seus interesses, que algumas vezes passam ao largo desses temas”, afirma o diretor, egresso do Ministério da Cultura. “A TV Brasil tem, entre seus objetivos, o de garantir acesso irrestrito e gratuito à informação, despertando a consciência crítica do público. Para isso, as informações fornecidas têm de permitir o entendimento do todo, do universo no qual o cidadão se insere.” Mas, por ser pública, é de se perguntar sobre os riscos de a programação sofrer ingerência do governo, ainda mais se houver questionamento e crítica às políticas públicas vigentes. Ao que Senna responde: “Nenhum sistema público de comunicação pode orientar a sua política de programação com foco em nenhum governo, sob o risco de perder a sua razão de existir. O foco é e sempre será a sociedade”. Segundo ele, a TV Pública tem seu Conselho Curador, seus estatutos, suas normas e seus padrões de operação e funcionamento. “Em nenhum desses itens existe espaço para ingerências.”
Controle cada vez mais remoto
De novo, caímos no tema democracia, tevê e sustentabilidade. Um período da História mostra como a televisão brasileira foi um dos instrumentos utilizados pelo regime totalitário. A mensagem era fortalecida pelo meio, que tecnologicamente não permitia interatividade, diálogo, “o entendimento do outro”, do qual fala Lúcia Araújo, do Futura.
Hoje, com a tecnologia digital, a interatividade começa a virar realidade. Assistir programas de tevê pelo computador, na hora em que se deseja, pulando comerciais, é mais uma forma de libertação da grade televisiva.
Do outro lado da tela, a produção também pode recorrer a técnicas que “horizontalizam” o diálogo. A TV Brasil, segundo Senna, pretende trazer a participação direta do público na programação, não só por meio dos sistemas interativos em instalação, mas também na produção de conteúdo pelas pessoas por meio de webcams, vídeos e celulares que serão distribuídos em vários pontos do País. Uma experiência que já vive o Futura – canal disponível na TV por assinatura e aberto em parabólicas, mantido por 13 empresas parceiras, entre as quais a Globo, e que é assistido regularmente por 33 milhões de pessoas, boa parte pertencente às classes C e D.
Segundo Lúcia, essa inovação foio salto de paradigma que permitiu ao canal gerar um conteúdo diferenciado. “Colocamos a tevê na realidade e não a realidade na tevê. A comunicação voltada para a mudança social precisa ser dialógica, de mão dupla, e não de cima para baixo.” Por falar em mão dupla, a reportagem questionou por que o Futura – assim como o programa Cidades e Soluções, voltado à temática da sustentabilidade e transmitido pela GloboNews e Futura – não “contamina” as emissoras de caráter comercial, como a Globo. “Na verdade, é a TV Globo que contamina os outros modelos de televisão do mesmo grupo”, responde Erlanger. Para Lúcia Araújo, fazer televisão do jeito do Futura “na prática dá muito trabalho, é demorado. Para a tevê comercial, que tem um modo industrializado de produção, é complicado sair do convencional”, explica.
Talvez por isso programas diferenciados ainda estejam restritos às tevês educativas e a canais fechados.Mas mostram que é possível gerar conteúdo atraente sobre sustentabilidade, tema que permeia, por exemplo, boa parte da nova programação da TV Cultura – agora com o slogan “A TV que faz bem” e conhecida pelo pioneirismo em programas ambientais, como Planeta Terra e Repórter Eco. Uma das grandes novidades da grade será o Ecoprático, um reality show, com estréia prevista para agosto, e transmissão aos domingos, às 19 horas.
Consultora de sustentabilidade do Faixa Sustentável – que engloba os programas semanais Ação Consciente (voltada ao cidadão), Balanço Social (sobre responsabilidade das empresas) e Planeta Cidade (sobre qualidade de vida urbana) –, Maria Zulmira de Souza integra a equipe de criação do Ecoprático. Ela explica que pretende prender a atenção do telespectador ao levar questões socioambientais para dentro da vida das pessoas.
A idéia é entrar em uma casa de família e aos poucos adaptá-la aos preceitos da sustentabilidade, no que tange a consumo de energia, geração de resíduos, consumo, transporte, alimentação etc. Cada programa mostrará uma casa, desde a mansão a uma casinha na periferia. “A reforma que vamos buscar vai além do imóvel, significa também mudança de hábitos e de atitude”, afirma.
Jornalismo sinalizador
Cidades e Soluções é outro exemplo de programa que busca transmitir uma mensagem propositiva. “O bom jornalismo é fiscalizador, mostra os problemas, mas também precisa sinalizar rumo e perspectiva, senão vai gerar pacotes de frustração”, diz André Trigueiro, jornalista e apresentador do programa. “A gente não perde tempo só com boas idéias. Damos visibilidade a experiências que já se mostraram viáveis e que podem ser replicadas e ganhar escala.” Trigueiro conta que despertou para o jornalismo ambiental quando cobria o Fórum Global, evento paralelo da Eco-92. “Meio ambiente é assunto de quem está vivo. Como jornalista, percebi a urgência de lutar contra o analfabetismo ambiental”, conta. A seu ver, o bacharel em comunicação sem informação sobre sustentabilidade não está preparado para sua função social. “O mundo mudou e a universidade tem de acompanhar isso.” Segundo ele, sob a ótica da sustentabilidade até o conceito de notícia muda, pois embora um fato só vá ocorrer no futuro – e pelas regras atuais mereceria menos espaço na mídia – o presente é determinante desse futuro, então é necessário trazê-lo para o tempo presente e rever a importância que deve ganhar na mídia.
Questionado sobre a preparação do jornalista para essa nova realidade, Leal Filho, da ECA, diz que é preciso ter cuidado com a especialização no curso de Jornalismo, para que a especialidade do aluno nunca se desvincule da realidade que o cerca.“Mais que ter cadeiras de jornalismo ambiental, por exemplo, o curso deve ser dado em universidades, para que o jornalista possa trafegar pelo conhecimento universal.”
Comunicação e sustentabilidade mostram que têm muito em comum: são sistemas universais, transversais, complexos, não-lineares. E a primeira, se feita de forma ética, diversificada e democrática, é meio pelo qual se alcança a segunda. Basta pôr a mão na massa.