23 de outubro de 1984, Grã-Bretanha.
Telejornal noturno da BBC. Entre os destaques do dia, uma matéria produzida pelo correspondente da emissora na África do Sul, Michael Buerk. Pouco mais de sete minutos de reportagem. O horror chegava aos lares britânicos no horário nobre. As imagens são fortes. Se quiser assistir ao vídeo, clique aqui.
Poucas vezes o poder da televisão como veículo de comunicação e mobilização se mostrou tão intenso como depois dessa matéria. Para boa parte do público ocidental, a Etiópia era mais um país perdido no meio da África. Depois de a BBC transmitir a reportagem de Buerk, a mídia ocidental correu para aquele país. Repentinamente, os lares da Europa e dos Estados Unidos foram inundados com imagens quase explícitas de etíopes famintos, moribundos, abandonados à própria sorte. Idosos, crianças, bebês. As agências humanitárias aproveitaram esse despertar da mídia para chamar mais atenção para o seu trabalho de campo, angariando recursos junto a esses públicos mais ricos.
Mas podemos dizer que a crise etíope foi singular e ganhou essa dimensão histórica por causa da reação de uma pessoa em particular: o rockstar britânico Bob Geldof. Ele abriu caminhos para que outras personalidades começassem a se envolver com bandeiras sociais ao redor do mundo nos anos seguintes, como Bono Vox, George Clooney, Angelina Jolie, entre tantos outros.
Comovido pelas imagens que chegavam da Etiópia, Geldof procurou produtores e colegas da indústria fonográfica britânica para compor e gravar uma música especial para angariar fundos para os etíopes famintos, “Do They Know It’s Christmas?”. A canção foi lançada durante a temporada de festas de fim de ano, sendo um sucesso estrondoso: poucas vezes uma canção chegou tão rápido ao topo das paradas musicais no Reino Unido. Para termos ideia do impacto dessa música, Geldof esperava angariar algo em torno de 70 mil libras esterlinas com a canção – ela acabou rendendo mais de £ 8 milhões.
Pouco tempo depois, e influenciados pela iniciativa de Geldof, alguns artistas norte-americanos também começaram a se envolver numa mobilização em prol das vítimas da fome na Etiópia. O fruto mais notável desse esforço foi uma das músicas mais famosas dos anos 1980: “We Are the World”, composta pelo “rei do pop” Michael Jackson e Lionel Ritchie, com produção do lendário Quincy Jones. O videoclipe da música permanece sendo um dos momentos mais marcantes daquela década. Artistas como Stevie Wonder, Paul Simon, Diana Ross, Bruce Springsteen, Cindy Lauper, Willie Nelson e Ray Charles, participaram da gravação da música, que rendeu mundialmente mais de US$ 20 milhões (valores da época).
A partir da mobilização artística nos Estados Unidos e no Reino Unido, surgiu a ideia de realizar um grande festival de música, transmitido para todo o planeta, com o propósito de reunir ainda mais recursos para destinar ajuda humanitária à Etiópia.
Esta foi a semente do lendário festival Live Aid, realizado em 13 de julho de 1985, há 29 anos.
“It’s twelve noon in London, seven AM in Philadelphia, and around the world it’s time for: Live Aid”
As dimensões do Live Aid são surpreendentes até hoje. Ele foi realizado simultaneamente (mas não totalmente, por causa do fuso horário) nos Estados Unidos (no antigo JFK Stadium, na Filadélfia) e no Reino Unido (no lendário Wembley Stadium, em Londres), com programações que se estenderam por mais de 16 horas. Nos dois locais, Paul McCartney, David Bowie, Queen, U2, The Who, Madonna, The Beach Boys, Eric Clapton, Sting, Bob Dylan, Mick Jagger, Tina Turner, Black Sabbath, Duran Duran, Elton John, entre outros nomes estelares da música, se apresentaram para um público empolgado (mais de 120 mil pessoas na Filadélfia e outras 80 mil em Londres). Uma das apresentações mais lembradas até hoje foi a da banda Queen, então no auge do seu sucesso musical, em Wembley. Outro evento memorável foi a dupla apresentação de Phil Collins, que cantou primeiro em Londres e depois voou de Concorde para se apresentar no JFK Stadium.
Além do valor recolhido com os ingressos, o Live Aid também contou com doações individuais via telefone, no estilo dos tradicionais teletons promovidos por emissoras de TV desde os anos 1950. Junto com os direitos de transmissão televisiva, o valor arrecadado pelo festival foi de mais de £ 150 milhões – um número bastante alto, mesmo para os grandes festivais atuais de música. Do ponto de vista de arrecadação financeira para ajuda humanitária, o Live Aid é o evento mais bem sucedido da história. Seus resultados são notáveis, principalmente por nunca mais terem se repetido, mesmo com crises ainda mais sérias. O Live 8, promovido pelo mesmo Geldof 20 anos depois do original, tentou retomar o espírito do festival em prol da luta contra a pobreza global, mas, mesmo com uma estrutura maior, ele foi incapaz de fazer sombra aos shows de 1985 e seus resultados.
Um dos segredos do sucesso do Live Aid de 1985 foi exatamente a motivação por trás daquele evento. As imagens que chegavam da Etiópia eram angustiantes demais. Para muitas pessoas, aquilo simplesmente exigia ação, nada mais. A mobilização humanitária em torno da crise na Etiópia foi muito grande, numa dimensão vista posteriormente apenas no tsunami asiático de 2004 e no terremoto no Haiti de 2011. Assistindo a alguns vídeos da transmissão dos shows no YouTube, nos deparamos com frases que hoje nos parecem clichés mais do que batidos – “vamos alimentar o mundo”, “quando vemos irmãos sofrendo, nós sofremos juntos”, “é nossa responsabilidade ajudar àqueles que necessitam”, e por aí vai. O que hoje nos parece piegas era muito sério há quase três décadas, principalmente porque para esse público a crise etíope era a primeira grande “catástrofe africana” a ser transmitida na televisão em cores. Além disso, era a aurora do jornalismo 24 horas na televisão, personificado na CNN de Ted Turner: o cortejo de imagens se repetia nas telas o dia inteiro.
Poucas crises humanitárias tiveram tamanho destaque na mídia mundial como a fome etíope de 1983-1985. Até então, apenas a crise humanitária causada pela guerra civil em Biafra, na Nigéria, no final dos anos 1960 e começo dos 1970, tinha conseguido atrair a atenção mais específica da mídia ocidental. No entanto, a cobertura de mídia da fome etíope foi gigantesca, mesmo comparada com a de crises posteriores, como no Sudão, Somália e na República Democrática do Congo. O circo midiático armado na Etiópia conseguiu garantir espaço no noticiário ocidental e recursos financeiros para as agências humanitárias que até então trabalhavam solitárias na vastidão desértica da Etiópia. Abria-se uma avenida de possibilidades novas para as agências humanitárias: cobertura televisiva, engajamento artístico, pressão da opinião pública… Para quem vivia aquele momento em campo, no palco da crise, a repentina atenção do mundo dava esperança de que as coisas poderiam mudar na seara humanitária, particularmente no que dizia respeito à África.
Enfim, o espírito da época apontava para um despertar do mundo para com a África – tão empobrecida, tão abandonada, tão explorada, tão azarada… As coisas iriam mudar… Só que não.
Uma das maiores críticas ao Live Aid e à reação ocidental à crise da fome da Etiópia enfoca exatamente a despolitização desses movimentos. Isso não era apenas por causa da “ingenuidade” da mídia, artistas e público ocidentais, mas também porque as agências humanitárias que tanto necessitavam de recursos prezavam exatamente por esse afastamento. É o raciocínio tradicional da neutralidade humanitária: a necessidade de ajudar deve se sobrepor a qualquer consideração ou interesse que não seja ajudar à vítima. A lógica do bombeiro – correr para salvar, ajudar, resgatar, independente de qualquer outra coisa. Qualquer racionalização fora da necessidade emergencial era insuficiente e contraproducente.
No entanto, uma coisa que a própria crise de Biafra tinha mostrado – a duras penas para a comunidade humanitária, vale apontar – era que uma “crise humanitária” podia ser qualquer coisa, menos humanitária. Na esmagadora maioria das vezes, a “crise” nada mais é do que um efeito colateral de outra crise de natureza essencialmente politizada, como guerras civis e disputa por poder e recursos.
Em Biafra, a “crise” decorreu de um esforço deliberado do governo nigeriano de dificultar o abastecimento de alimentos e remédios para a população local, para assim enfraquecer as bases rebeldes. Pior, os separatistas biafristas também viram a “crise” como uma oportunidade para angariar apoio político internacional a sua causa, a ponto de contratar uma empresa de marketing para distribuir fotos macabras de crianças famintas e releases de imprensa para inundar as redações ocidentais com as últimas informações. Para os dois lados, a “crise” humanitária era benéfica.
E a coisa não era muito diferente na Etiópia. A fome não decorre exclusivamente de um fenômeno natural; na maior parte das vezes, ela também é resultado da disputa de poder (político e/ou econômico), e acaba se convertendo num instrumento desse conflito. Sim, o país vivia um severo período de seca, que afetou diretamente a produção agrícola e a pecuária local. No entanto, na década anterior, o governo etíope (de orientação comunista) tinha promovido um processo caótico de coletivização das propriedades rurais (que, em muitos casos, estavam nas mãos de um clã ou família há gerações). A produtividade das fazendas despencou, o que forçou muitas famílias a buscarem refúgios em locais onde a seca não estava não forte, pressionando as fazendas que ainda conseguiam produzir alguma coisa. Quando olhamos para esses fatores, o colapso alimentar era um resultado óbvio.
A fome já era uma realidade em 1982, mas a ajuda demorou a chegar à Etiópia. Pelo lado ocidental, havia a questão da Guerra Fria: afinal, o governo etíope era comunista, aliados dos soviéticos. Somente quando a “crise” chegou aos lares e às paradas musicais nos Estados Unidos e na Europa, entre 1984 e 1985, é que a reação ocidental ganhou ímpeto, para a felicidade das organizações humanitárias. Recursos eram praticamente despejados para atender aos famintos etíopes.
Como em Biafra, o governo central se aproveitou da “generosidade” ocidental para fazer um pouco de política do caos no norte do país. Deliberadamente, o governo etíope desviava recursos e mantimentos de ajuda destinados para as regiões em conflito. A fome persistia nessas regiões, o que era muito bom para manter a “crise” na pauta ocidental e atrair mais recursos, ao mesmo tempo em que forçava as populações que lá moravam a sair e buscar ajuda mais ao sul, esvaziando a base local de apoio aos separatistas e ajudando a encher os inúmeros campos de refugiados espalhados pelo país, o que, por sua vez, garantia mais imagens brutais para a mídia ocidental – e mais recursos.
Em campo, as agências humanitárias sabiam disso, mas não conseguiam expressar nenhum tipo de desaprovação pública. A neutralidade clássica também implica confidencialidade: o que acontece em campo, fica em campo. Num mundo politizado, a única forma de um ator não político agir é sem pisar no calo de ninguém. Apenas os Médecins Sans Frontières (MSF) se posicionaram mais criticamente contra a forma como o governo etíope estava se aproveitando dos esforços humanitários empreendidos no país. O MSF disse o óbvio para quem estava em campo: a fome (e a sua persistência) era resultado direto da política brutal de reassentamentos forçados. O governo etíope respondeu com a expulsão da organização e a imposição de restrições à atuação das demais agências.
Ninguém mais abriu a boca para falar um “ai”. Poucos na imprensa ocidental abordavam a “crise humanitária” etíope pela perspectiva da disputa de poder local. Ninguém falou sobre isso no Live Aid. E o dinheiro continuou sendo despejado na Etiópia, até o momento em que o tema simplesmente deixou a pauta ocidental.
O clímax desta história parece mais com um anticlímax. No final das contas, ninguém fez nada para impedir que o governo etíope continuasse promovendo as mesmas políticas que tinham facilitado o surgimento da fome. Os desvios continuaram sendo feitos e o conflito persistiu até 1991, quando a Eritreia conquistou sua independência e o governo comunista etíope caiu.
Ao todo, a fome etíope de 1983-1985 atingiu quase oito milhões de pessoas, matando de 1/8 delas. No norte do país, foco da crise, mais de 400 mil pessoas perderam a vida, sendo que metade delas pereceu devido aos desmandos e abusos do governo central, que facilitaram a fome nessa região.
Para o universo das organizações humanitárias, a “crise” na Etiópia inaugurou um período de desafios que modificaram profundamente as bases do esforço humanitário. Questões como a politização da ajuda humanitária e sua instrumentalização por governos e insurgentes começaram a assombrar os profissionais da área, e alimentaram nesse campo um processo ainda em andamento de soul searching. A relação entre humanitários e mídia também começou a se aprofundar a partir da Etiópia, o que levaria a uma simbiose quase explícita entre esses atores nas crises seguintes (particularmente nos Balcãs, durante os conflitos dos anos 1990) – e, consequentemente, mais pressão sobre o conceito de neutralidade da ajuda.
E a Etiópia? Bem, sua sorte somente começou a melhorar na última década, mesmo enfrentando mais um período de seca no começo dos anos 2010. Para o público ocidental, o país voltou a sua condição de “lugar distante”, perdido no meio da África…
O que sobrou na cabeça das pessoas no Ocidente foram os shows memoráveis, os nomes estrelados da música, as canções gravadas, e alguma lembrança bem tênue de que o motivo daquilo tudo era a “fome na África”.
PS: Ainda que a leitura desse post seja um pouco crítica, seria desonesto não observar que Bob Geldof continuou se envolvendo com questões humanitárias na Etiópia, visitando o país inúmeras vezes, mesmo depois do auge da fome, mesmo depois do apagar dos holofotes da imprensa internacional. Posteriormente, ele se envolveu em questões como o combate à pobreza nos países subdesenvolvidos, participando da iniciativa ONE Campaign, organizada pelo vocalista do U2 Bono Vox.[:en]23 de outubro de 1984, Grã-Bretanha.
Telejornal noturno da BBC. Entre os destaques do dia, uma matéria produzida pelo correspondente da emissora na África do Sul, Michael Buerk. Pouco mais de sete minutos de reportagem. O horror chegava aos lares britânicos no horário nobre. As imagens são fortes. Se quiser assistir ao vídeo, clique aqui.
Poucas vezes o poder da televisão como veículo de comunicação e mobilização se mostrou tão intenso como depois dessa matéria. Para boa parte do público ocidental, a Etiópia era mais um país perdido no meio da África. Depois de a BBC transmitir a reportagem de Buerk, a mídia ocidental correu para aquele país. Repentinamente, os lares da Europa e dos Estados Unidos foram inundados com imagens quase explícitas de etíopes famintos, moribundos, abandonados à própria sorte. Idosos, crianças, bebês. As agências humanitárias aproveitaram esse despertar da mídia para chamar mais atenção para o seu trabalho de campo, angariando recursos junto a esses públicos mais ricos.
Mas podemos dizer que a crise etíope foi singular e ganhou essa dimensão histórica por causa da reação de uma pessoa em particular: o rockstar britânico Bob Geldof. Ele abriu caminhos para que outras personalidades começassem a se envolver com bandeiras sociais ao redor do mundo nos anos seguintes, como Bono Vox, George Clooney, Angelina Jolie, entre tantos outros.
Comovido pelas imagens que chegavam da Etiópia, Geldof procurou produtores e colegas da indústria fonográfica britânica para compor e gravar uma música especial para angariar fundos para os etíopes famintos, “Do They Know It’s Christmas?”. A canção foi lançada durante a temporada de festas de fim de ano, sendo um sucesso estrondoso: poucas vezes uma canção chegou tão rápido ao topo das paradas musicais no Reino Unido. Para termos ideia do impacto dessa música, Geldof esperava angariar algo em torno de 70 mil libras esterlinas com a canção – ela acabou rendendo mais de £ 8 milhões.
Pouco tempo depois, e influenciados pela iniciativa de Geldof, alguns artistas norte-americanos também começaram a se envolver numa mobilização em prol das vítimas da fome na Etiópia. O fruto mais notável desse esforço foi uma das músicas mais famosas dos anos 1980: “We Are the World”, composta pelo “rei do pop” Michael Jackson e Lionel Ritchie, com produção do lendário Quincy Jones. O videoclipe da música permanece sendo um dos momentos mais marcantes daquela década. Artistas como Stevie Wonder, Paul Simon, Diana Ross, Bruce Springsteen, Cindy Lauper, Willie Nelson e Ray Charles, participaram da gravação da música, que rendeu mundialmente mais de US$ 20 milhões (valores da época).
A partir da mobilização artística nos Estados Unidos e no Reino Unido, surgiu a ideia de realizar um grande festival de música, transmitido para todo o planeta, com o propósito de reunir ainda mais recursos para destinar ajuda humanitária à Etiópia.
Esta foi a semente do lendário festival Live Aid, realizado em 13 de julho de 1985, há 29 anos.
“It’s twelve noon in London, seven AM in Philadelphia, and around the world it’s time for: Live Aid”
As dimensões do Live Aid são surpreendentes até hoje. Ele foi realizado simultaneamente (mas não totalmente, por causa do fuso horário) nos Estados Unidos (no antigo JFK Stadium, na Filadélfia) e no Reino Unido (no lendário Wembley Stadium, em Londres), com programações que se estenderam por mais de 16 horas. Nos dois locais, Paul McCartney, David Bowie, Queen, U2, The Who, Madonna, The Beach Boys, Eric Clapton, Sting, Bob Dylan, Mick Jagger, Tina Turner, Black Sabbath, Duran Duran, Elton John, entre outros nomes estelares da música, se apresentaram para um público empolgado (mais de 120 mil pessoas na Filadélfia e outras 80 mil em Londres). Uma das apresentações mais lembradas até hoje foi a da banda Queen, então no auge do seu sucesso musical, em Wembley. Outro evento memorável foi a dupla apresentação de Phil Collins, que cantou primeiro em Londres e depois voou de Concorde para se apresentar no JFK Stadium.
Além do valor recolhido com os ingressos, o Live Aid também contou com doações individuais via telefone, no estilo dos tradicionais teletons promovidos por emissoras de TV desde os anos 1950. Junto com os direitos de transmissão televisiva, o valor arrecadado pelo festival foi de mais de £ 150 milhões – um número bastante alto, mesmo para os grandes festivais atuais de música. Do ponto de vista de arrecadação financeira para ajuda humanitária, o Live Aid é o evento mais bem sucedido da história. Seus resultados são notáveis, principalmente por nunca mais terem se repetido, mesmo com crises ainda mais sérias. O Live 8, promovido pelo mesmo Geldof 20 anos depois do original, tentou retomar o espírito do festival em prol da luta contra a pobreza global, mas, mesmo com uma estrutura maior, ele foi incapaz de fazer sombra aos shows de 1985 e seus resultados.
Um dos segredos do sucesso do Live Aid de 1985 foi exatamente a motivação por trás daquele evento. As imagens que chegavam da Etiópia eram angustiantes demais. Para muitas pessoas, aquilo simplesmente exigia ação, nada mais. A mobilização humanitária em torno da crise na Etiópia foi muito grande, numa dimensão vista posteriormente apenas no tsunami asiático de 2004 e no terremoto no Haiti de 2011. Assistindo a alguns vídeos da transmissão dos shows no YouTube, nos deparamos com frases que hoje nos parecem clichés mais do que batidos – “vamos alimentar o mundo”, “quando vemos irmãos sofrendo, nós sofremos juntos”, “é nossa responsabilidade ajudar àqueles que necessitam”, e por aí vai. O que hoje nos parece piegas era muito sério há quase três décadas, principalmente porque para esse público a crise etíope era a primeira grande “catástrofe africana” a ser transmitida na televisão em cores. Além disso, era a aurora do jornalismo 24 horas na televisão, personificado na CNN de Ted Turner: o cortejo de imagens se repetia nas telas o dia inteiro.
Poucas crises humanitárias tiveram tamanho destaque na mídia mundial como a fome etíope de 1983-1985. Até então, apenas a crise humanitária causada pela guerra civil em Biafra, na Nigéria, no final dos anos 1960 e começo dos 1970, tinha conseguido atrair a atenção mais específica da mídia ocidental. No entanto, a cobertura de mídia da fome etíope foi gigantesca, mesmo comparada com a de crises posteriores, como no Sudão, Somália e na República Democrática do Congo. O circo midiático armado na Etiópia conseguiu garantir espaço no noticiário ocidental e recursos financeiros para as agências humanitárias que até então trabalhavam solitárias na vastidão desértica da Etiópia. Abria-se uma avenida de possibilidades novas para as agências humanitárias: cobertura televisiva, engajamento artístico, pressão da opinião pública… Para quem vivia aquele momento em campo, no palco da crise, a repentina atenção do mundo dava esperança de que as coisas poderiam mudar na seara humanitária, particularmente no que dizia respeito à África.
Enfim, o espírito da época apontava para um despertar do mundo para com a África – tão empobrecida, tão abandonada, tão explorada, tão azarada… As coisas iriam mudar… Só que não.
Uma das maiores críticas ao Live Aid e à reação ocidental à crise da fome da Etiópia enfoca exatamente a despolitização desses movimentos. Isso não era apenas por causa da “ingenuidade” da mídia, artistas e público ocidentais, mas também porque as agências humanitárias que tanto necessitavam de recursos prezavam exatamente por esse afastamento. É o raciocínio tradicional da neutralidade humanitária: a necessidade de ajudar deve se sobrepor a qualquer consideração ou interesse que não seja ajudar à vítima. A lógica do bombeiro – correr para salvar, ajudar, resgatar, independente de qualquer outra coisa. Qualquer racionalização fora da necessidade emergencial era insuficiente e contraproducente.
No entanto, uma coisa que a própria crise de Biafra tinha mostrado – a duras penas para a comunidade humanitária, vale apontar – era que uma “crise humanitária” podia ser qualquer coisa, menos humanitária. Na esmagadora maioria das vezes, a “crise” nada mais é do que um efeito colateral de outra crise de natureza essencialmente politizada, como guerras civis e disputa por poder e recursos.
Em Biafra, a “crise” decorreu de um esforço deliberado do governo nigeriano de dificultar o abastecimento de alimentos e remédios para a população local, para assim enfraquecer as bases rebeldes. Pior, os separatistas biafristas também viram a “crise” como uma oportunidade para angariar apoio político internacional a sua causa, a ponto de contratar uma empresa de marketing para distribuir fotos macabras de crianças famintas e releases de imprensa para inundar as redações ocidentais com as últimas informações. Para os dois lados, a “crise” humanitária era benéfica.
E a coisa não era muito diferente na Etiópia. A fome não decorre exclusivamente de um fenômeno natural; na maior parte das vezes, ela também é resultado da disputa de poder (político e/ou econômico), e acaba se convertendo num instrumento desse conflito. Sim, o país vivia um severo período de seca, que afetou diretamente a produção agrícola e a pecuária local. No entanto, na década anterior, o governo etíope (de orientação comunista) tinha promovido um processo caótico de coletivização das propriedades rurais (que, em muitos casos, estavam nas mãos de um clã ou família há gerações). A produtividade das fazendas despencou, o que forçou muitas famílias a buscarem refúgios em locais onde a seca não estava não forte, pressionando as fazendas que ainda conseguiam produzir alguma coisa. Quando olhamos para esses fatores, o colapso alimentar era um resultado óbvio.
A fome já era uma realidade em 1982, mas a ajuda demorou a chegar à Etiópia. Pelo lado ocidental, havia a questão da Guerra Fria: afinal, o governo etíope era comunista, aliados dos soviéticos. Somente quando a “crise” chegou aos lares e às paradas musicais nos Estados Unidos e na Europa, entre 1984 e 1985, é que a reação ocidental ganhou ímpeto, para a felicidade das organizações humanitárias. Recursos eram praticamente despejados para atender aos famintos etíopes.
Como em Biafra, o governo central se aproveitou da “generosidade” ocidental para fazer um pouco de política do caos no norte do país. Deliberadamente, o governo etíope desviava recursos e mantimentos de ajuda destinados para as regiões em conflito. A fome persistia nessas regiões, o que era muito bom para manter a “crise” na pauta ocidental e atrair mais recursos, ao mesmo tempo em que forçava as populações que lá moravam a sair e buscar ajuda mais ao sul, esvaziando a base local de apoio aos separatistas e ajudando a encher os inúmeros campos de refugiados espalhados pelo país, o que, por sua vez, garantia mais imagens brutais para a mídia ocidental – e mais recursos.
Em campo, as agências humanitárias sabiam disso, mas não conseguiam expressar nenhum tipo de desaprovação pública. A neutralidade clássica também implica confidencialidade: o que acontece em campo, fica em campo. Num mundo politizado, a única forma de um ator não político agir é sem pisar no calo de ninguém. Apenas os Médecins Sans Frontières (MSF) se posicionaram mais criticamente contra a forma como o governo etíope estava se aproveitando dos esforços humanitários empreendidos no país. O MSF disse o óbvio para quem estava em campo: a fome (e a sua persistência) era resultado direto da política brutal de reassentamentos forçados. O governo etíope respondeu com a expulsão da organização e a imposição de restrições à atuação das demais agências.
Ninguém mais abriu a boca para falar um “ai”. Poucos na imprensa ocidental abordavam a “crise humanitária” etíope pela perspectiva da disputa de poder local. Ninguém falou sobre isso no Live Aid. E o dinheiro continuou sendo despejado na Etiópia, até o momento em que o tema simplesmente deixou a pauta ocidental.
O clímax desta história parece mais com um anticlímax. No final das contas, ninguém fez nada para impedir que o governo etíope continuasse promovendo as mesmas políticas que tinham facilitado o surgimento da fome. Os desvios continuaram sendo feitos e o conflito persistiu até 1991, quando a Eritreia conquistou sua independência e o governo comunista etíope caiu.
Ao todo, a fome etíope de 1983-1985 atingiu quase oito milhões de pessoas, matando de 1/8 delas. No norte do país, foco da crise, mais de 400 mil pessoas perderam a vida, sendo que metade delas pereceu devido aos desmandos e abusos do governo central, que facilitaram a fome nessa região.
Para o universo das organizações humanitárias, a “crise” na Etiópia inaugurou um período de desafios que modificaram profundamente as bases do esforço humanitário. Questões como a politização da ajuda humanitária e sua instrumentalização por governos e insurgentes começaram a assombrar os profissionais da área, e alimentaram nesse campo um processo ainda em andamento de soul searching. A relação entre humanitários e mídia também começou a se aprofundar a partir da Etiópia, o que levaria a uma simbiose quase explícita entre esses atores nas crises seguintes (particularmente nos Balcãs, durante os conflitos dos anos 1990) – e, consequentemente, mais pressão sobre o conceito de neutralidade da ajuda.
E a Etiópia? Bem, sua sorte somente começou a melhorar na última década, mesmo enfrentando mais um período de seca no começo dos anos 2010. Para o público ocidental, o país voltou a sua condição de “lugar distante”, perdido no meio da África…
O que sobrou na cabeça das pessoas no Ocidente foram os shows memoráveis, os nomes estrelados da música, as canções gravadas, e alguma lembrança bem tênue de que o motivo daquilo tudo era a “fome na África”.
PS: Ainda que a leitura desse post seja um pouco crítica, seria desonesto não observar que Bob Geldof continuou se envolvendo com questões humanitárias na Etiópia, visitando o país inúmeras vezes, mesmo depois do auge da fome, mesmo depois do apagar dos holofotes da imprensa internacional. Posteriormente, ele se envolveu em questões como o combate à pobreza nos países subdesenvolvidos, participando da iniciativa ONE Campaign, organizada pelo vocalista do U2 Bono Vox.
Bruno Toledo