[Esta entrevista com Antônio Carlos Sartini mostra como a língua do colonizador português se firmou no Brasil. Leia aqui a entrevista com Eduardo Navarro, que aborda as línguas dos povos colonizados]
O Museu da Língua Portuguesa, que mal pôde comemorar os 10 anos em março, está tão vivo quanto a própria língua que representa. Era 21 de dezembro quando uma forte variação termoelétrica teria gerado uma faísca que o pôs em chamas, comovendo o público. Sucesso de visitação, principalmente entre estudantes, o museu se prepara para renascer com uma linguagem em tempo real, conversando com pessoas de todo o Brasil e do mundo.
Isso é um pouco do que nos adianta o diretor Antônio Carlos Sartini. Este advogado de formação brinca que foi salvo no meio do caminho quando enveredou pelas vias que de fato o interessavam – as da cultura, não as do mundo jurídico. Nesta entrevista, Sartini nos leva a viajar pela história da língua que já é a terceira mais usada nas redes sociais. Versátil, rico, dinâmico, o idioma ganhou estilo próprio na maior ex-colônia que ajudou a unificar, mas não sem a contribuição das línguas indígenas e africanas.
Diretor do Museu da Língua Portuguesa desde 2006, Antônio Carlos de Moraes Sartini é advogado pela PUC-SP. Em 1989, mudou de vida ao abrir uma produtora cultural, que inicialmente apresentou Bob Wilson e La Fura del Baus na 21ª Bienal de São Paulo. Em 2005, assumiu o Departamento de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura, que deu origem ao Departamento de Expansão Cultural – por meio do qual coordenou a 1ª Virada Cultural de São Paulo.
Quando o Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado, muita gente não acreditou que pudesse ser um sucesso de público, inclusive entre gente jovem. Até porque alunos costumam não gostar de estudar português. Qual foi a chave do sucesso?
Como tudo que é novo, tínhamos uma expectativa, uma dúvida sobre qual seria a aceitação do museu. Depois de inaugurado, no primeiro ano, o museu teve uma presença assustadora, de 4 mil, 5 mil pessoas por dia. E nós sempre com esse receio: quando passar o efeito novidade, o que vai acontecer? O último dia de visitação foi 20 de dezembro [devido ao incêndio em 21 de dezembro] e nesses quase dez anos tivemos uma média diária de 1.325 pessoas – número expressivo para o Brasil e até para o museu, que é um prédio muito interessante, mas tem muitas limitações físicas. É um dos mais visitados na América Latina, e aí você me pergunta a razão desse sucesso.
Logo que foi inaugurado, as pessoas falavam muito na tecnologia de ponta. É engraçado porque, passados os dez anos, a mídia continuava falando em tecnologia de ponta – mas que tecnologia de ponta é essa que resistiu dez anos? (risos). Existem vários aspectos quando se analisa um equipamento cultural, mas acho que o aspecto que mais contribuiu para o sucesso foi o tratamento dado à língua portuguesa pela equipe que concebeu o museu.
Como você disse, nós não gostamos de estudar português na escola, é uma das matérias mais difíceis, mas infelizmente é como a educação apresenta a língua. Agora, não tem muito jeito: se você quiser dominar a língua, precisa aprender gramática e ortografia, o que de fato não é muito agradável. Mas o grande acerto do museu foi tomar a língua como um grande patrimônio imaterial, que pertence a todos os brasileiros, e dar um tratamento muito mais histórico e sociológico, de curiosidades, de como se deu a formação da língua e como ela se enriqueceu por influência das nossas línguas originárias aqui, as indígenas e as dos povos africanos.
Ou seja, apresentá-la no contexto do nosso dia a dia, nas nossas relações, em vez de uma visão mais burocratizada?
Exatamente. Uma visão menos árdua da língua. E, nesses anos todos, o museu recebeu cerca de 4 milhões de visitantes, dos quais 65% estudantes.
O quanto a língua portuguesa se enriqueceu ao ter contato com as línguas indígenas e com as africanas?
Estamos agora preparando uma exposição itinerante, que deve circular por cidades do interior paulista e deve começar por Itápolis em julho ou agosto, que é exatamente mostrar a origem do nome dos 645 municípios do estado. Porque 80% dos municípios têm origem em nomes indígenas – Sorocaba, Itápolis, Itapira, Itu, Embu, Peruíbe, Mogi Guaçu, Araçatuba, Guararema… O coração de São Paulo é o Anhangabaú, o parque mais querido da cidade é o Ibirapuera, o Corinthians tem seu estádio em Itaquera…
Até o shopping mais chique tem nome indígena – Iguatemi…
Pois é, nós nem nos damos conta do quanto a língua indígena enriqueceu o português que usamos. Da mesma forma, a língua dos povos obrigados a vir pro Brasil, os africanos. Daí a diferença do português falado no Brasil e do português falado em outras ex-colônias, que são mais próximos do português de Portugal. As línguas africanas trouxeram também uma melodia diferente para o nosso português, além de uma série de palavras que a gente só encontra aqui.
Eu fui dar uma palestra para um grupo de adolescentes em Araraquara, outro nome indígena, e pensei como é que ia segurar o grupo – não tinham me avisado que a palestra seria para adolescentes. Comecei perguntando se eles conheciam alguma palavra em português que, entre os países de língua portuguesa, só existisse no Brasil. Eles não sabiam e eu respondi que era “bunda”. Bunda em Portugal tem outro nome. Obviamente eles queriam saber qual era e eu disse que só falaria no final da palestra (risos): é “cu”. “Bunda” é uma palavra originária da África. Outra influência importante foi do árabe, primeiro pela vinda de escravos negros que eram muçulmanos, e depois pela imigração árabe do final do século retrasado e início do século passado.
Em 2009, foi assinado o Acordo Ortográfico unificando o português falado no mundo…
O português escrito. O falado você não consegue unificar jamais. A língua escrita sempre corre atrás da língua falada.
Ah sim, é verdade. Esse acordo gerou muitas críticas?
Muitas, especialmente de Portugal.
Por que foi criticado e o que se buscou com essa unificação? E em relação à perda da diversidade que pode haver dentro da própria língua portuguesa?
Esse acordo foi estudado durante muitos anos por especialistas, e todo acordo ortográfico traz um aspecto interessante e muito discutível porque, de alguma maneira, alguém legisla sobre um idioma. Se a língua escrita corre atrás da língua falada, é praticamente impossível legislar sobre um idioma, pois o idioma está se transformando a todo momento. Não é o Parlamento, não é o Poder Executivo, não é o Poder Judiciário o dono da língua; quem é dono da língua é quem a usa, tá certo? Então todo acordo ortográfico traz muita discussão.
Esse acordo nasce de uma situação peculiar, pois ao longo da História foram criados alguns padrões diferenciados da língua portuguesa – hoje se fala em um padrão europeu, um padrão africano e um padrão brasileiro. Além dos padrões da língua falada, a língua escrita também é diversificada. Isso faz com que o português tenha dificuldade de ser reconhecido como língua oficial em alguns organismos internacionais, como a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Por exemplo, se você quiser concorrer a algum edital das Nações Unidas, não pode usar o português. O espanhol culto e o inglês culto são únicos, é uma mesma língua escrita nos diversos países que os falam. Portugal deu até 2016 para todos aderirem ao acordo, mas essa é uma discussão que vai e volta.
Então por esse motivo o acordo já se justifica?
Sim. Tem uma questão econômica também: no Google tem o português padrão de Portugal, e tem o padrão do Brasil. Isso gera custos enormes para as empresas, porque alguém tem de ficar alimentando essas plataformas constantemente, as palavras estão mudando, e surgem outras. Isso aumenta muito os custos. Por conta do acordo, resolveu-se criar um novo vocabulário da língua portuguesa consolidando todos os padrões diferenciados em um só. Isso já foi lançado em parte, porque alguns países ainda estão consolidando o seu próprio vocabulário, mas quando terminar vamos ter uma coisa inédita entre todos os idiomas, que é contemplar toda a diversidade da língua em todos os seus países. Vai reunir palavras que entraram para o português através dos diversos países. Por exemplo, “bunda”.
É a nossa contribuição para a língua (risos).
Sim (risos). Bunda é uma palavra que estaria fora do vocabulário, mas então passa a fazer parte. Palavras de uso comum nos nove países virão sem observação, mas aquelas de uso específico virão com uma indicação da origem [os nove países são Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste]. Por exemplo, no Brasil, a gente toma café da manhã. Em Portugal, é o pequeno almoço. Em Angola, Moçambique e Timor Leste, é o mata-bicho. Matabichar é tomar café da manhã. Esse vocabulário será publicado em base digital pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa assim que terminar a consolidação, o que pode acontecer até o fim deste ano.
E por que o acordo foi criticado?
Porque traz mudanças bastante radicais para o português escrito em Portugal. A forma se aproxima do português usado no Brasil, o que gerou resistência por parte de um setor que não aceita, por exemplo, tirar o “c” mudo de “facto”, que serve para diferenciar o vestuário (fato) do acontecimento (facto). As pessoas mais tradicionalistas se opõem às mudanças. As universidades em Portugal são muito favoráveis ao acordo, porque têm uma clareza grande de que o futuro da língua portuguesa está no Brasil. Somos 205 milhões de falantes, enquanto os outros somam 55 milhões de pessoas. Tem algumas questões políticas também. Um pesquisador da Faap fez um estudo no ano passado defendendo a tese de que as mudanças sofridas pela língua no Brasil já dariam margem a chamar o nosso idioma de um outro nome, diferenciado do português. Seria uma perda terrível, imagine que a língua falada por 260 milhões de pessoas passaria a ser falada por apenas 55 milhões. Então há uma visão muito clara por parte de autoridades portuguesas e pesquisadores das universidades de que o caminho é fazer essa aproximação com o português do Brasil. O que não vai afetar a diversidade, a riqueza da língua, os sotaques.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, tiveram de aprender a língua dos índios para fazer a dominação e a colonização. Em grande parte do território, e até o século XIX, usava-se a chamada língua geral – falada por indígenas, portugueses e africanos –, que permitia o entendimento de todos. Mas nas escolas que vieram a surgir se ensinava o português. Com que objetivo a língua portuguesa se tornou a oficial?
A ideia de tornar o português o idioma oficial foi do Marquês de Pombal. Ele, que era assessor do rei Dom José I, começou a perceber alguns aspectos geopolíticos interessantes da América do Sul. Primeiro, que tinham uma colônia muito grande cercada por todos os lados pela Coroa Espanhola, sua rival. Sempre houve uma preocupação em definir muito bem o que era território português e o que era território espanhol. Ele argumentou ao rei que não podiam ser ingênuos, que essa colônia uma hora se libertaria de Portugal. E politicamente seria muito mais interessante que essa colônia se libertasse como um país só do que na forma de vários países, o que causaria um número maior de problemas para administrar.
Além disso, a fragmentação serviria para criar alvos fáceis para a Coroa Espanhola. Foi uma estratégia muito bem montada pelo Marquês de Pombal, que viu na língua portuguesa uma maneira de unificar a colônia. Como o resto da América do Sul falava espanhol, era muito mais óbvio que quem falasse português se reunisse em um país só. Então, mais ou menos a partir de 1750, o rei acaba oficializando o ensino de português na colônia e até proibindo o uso do idioma geral. É por volta dessa época que os jesuítas são expulsos do Brasil, exatamente porque os jesuítas incentivavam muito a cultura indígena, o idioma geral. E, para o bem ou para o mal, Marquês de Pombal tinha razão: forjou-se uma identidade cultural na colônia a partir do português.
Falando agora mais especificamente sobre as palavras nos dias de hoje, percebemos que é preciso continuamente criar termos para dizer as mesmas coisas, dado que há um desgaste no uso. Por exemplo, nós que trabalhamos com sustentabilidade, vemos o quanto essa palavra já se desgastou e talvez seja até preciso usar outras para manter o assunto na pauta. Por que isso acontece?
Precisamos levar em conta que vivemos em um mundo muito midiático. Acho que as palavras nunca tiveram tanta visibilidade como hoje, com as redes sociais. E nós temos uma língua que permite criar diversos usos. O português é uma língua extremamente apta para a comunicação, por isso o número de falantes e de estudiosos da língua tem crescido muito nos últimos anos, no mundo inteiro. Já outras línguas ficam muito restritas a seu país justamente pelas suas limitações. O alemão, por exemplo, jamais seria uma língua de redes sociais, pois, se você tira uma vírgula, muda todo o significado. Apesar de o português estar como sexta língua mais falada no mundo, no Facebook é a terceira mais falada, depois do inglês e do espanhol.
E também porque a gente usa muito a rede, né?
Sim, e também porque a população é muito grande. Mas a língua tem uma flexibilidade e um dinamismo que permite isso. Possui um vocabulário muito rico, que se adapta às novidades. A gente, por exemplo, facilmente toma emprestado palavras de outros idiomas, como deletar, que virou um verbo que se conjuga em todos os tempos verbais.
Isso não acontece em outras línguas?
No alemão, por exemplo, não.
No inglês acontece muito, google virou verbo.
No inglês e no espanhol acontece muito.
Quando o museu vai reabrir?
Pelo menos daqui a uns dois anos. O acervo está todo preservado, é digital, mas tivemos perda de equipamentos. Felizmente o prédio não teve sua estrutura abalada. As imagens do incêndio, que mostram o telhado de madeira do 3º andar pegando fogo, foram mais chocantes que o incêndio em si. No momento, estamos esperando o prédio ser liberado para darmos início às obras de restauro, que são muito delicadas. Trata-se de um prédio tombado pelo Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], pelo Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico] e pelo Conpresp [Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo]. Para agilizar todo esse processo, será mantido o mesmo projeto que havia sido aprovado anteriormente por esses três órgãos.
É possível aproveitar a recuperação para promover alguma mudança no museu?
Sim. Todos os conteúdos que lá estavam permanecerão e vamos ver o que mais acrescentar. O museu se caracterizou muito por causar um fascínio nas pessoas. Além disso, queremos que seja um museu em tempo real. Ou seja, que continue exercendo esse fascínio, mas que as pessoas que estejam no museu e em outros locais do Brasil e do mundo possam interagir com ele em tempo real. Não me pergunte como vamos fazer isso, mas não deve ser tão difícil.