Por Amália Safatle e Magali Cabral
Dizem que a periferia é carente – mas carente do quê? Só o Estado pode dar escala às políticas de transformação social – mas de que Estado estamos falando? Os resultados de educação das escolas das periferias não são tão distintos dos consolidados de outras regiões – mas leva-se em conta a desigualdade que existe dentro de cada uma dessas localidades? Fulana de tal empreendeu na favela – ou estava apenas tentando sobreviver?
Perguntas como essas indicam que lidar com a questão das desigualdades socioespaciais no Brasil requer um olhar bem mais aprofundado e cuidadoso. Qualquer leitura apressada sobre um tema tão complexo recai em visões estereotipadas, simplistas.
Nesta conversa, partimos de dois pontos de vista, o da socióloga Maria Alice Setubal, falando sobre as periferias com base em experiências como a da Fundação Tide Setubal, e o do jornalista Tony Marlon, falando a partir das periferias. Uma causa comum aos dois é a defesa do conceito plural de periferia, pois são “múltiplas, diversas, divergentes e, algumas vezes, convergentes”. Essa diversidade exige abordagens peculiares, seja por parte do gestor público, seja de qualquer cidadão na sua relação com a cidade. “Como diz Manoel de Barros, é preciso transver o mundo”, pontua Tony.
Formada em Ciências Sociais e doutora em Psicologia, Maria Alice (Neca) Setubal é presidente do Conselho Consultivo da Fundação Tide Setubal, que atua em São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo. Também preside o Conselho de Governança do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife)
Tony Marlon é jornalista e fundador da Escola de Notícias, que atua no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo. Filho de boias-frias nascido em Salinas, no Vale do Jequitinhonha, participou do Projeto Arrastão, onde teve os primeiros contatos com oficinas de comunicação. Ao ser selecionado no programa Virada de Futuro da Fundação Abrinq, conquistou uma bolsa para o curso superior
Nas duas últimas décadas é perceptível um movimento de valorização das periferias. Vocês concordam com essa visão? Se sim, qual a origem desse movimento?
Maria Alice (Neca) Setubal – De um lado, sim, diria que a periferia adquiriu maior visibilidade, especialmente pelas questões culturais, os coletivos, a questão da música, da diversidade etnorracial e de gênero. Por outro lado, há um posicionamento que traz os ódios, as intolerâncias em relação à periferia. Talvez um exemplo forte sejam os “rolezinhos”: não é permitido aos jovens entrar no shopping… como assim? Então esse olhar em relação à periferia é ambíguo da parte da sociedade.
Tony Marlon – A gente, que mora na periferia, tem uma frase inicial: a gente não está representando, porque não tem essa de representatividade, mas é uma voz dentro da representatividade. Outra coisa que para mim é muito forte é a briga simbólica para pluralizar a periferia, de colocar um “s” no final. Porque elas são múltiplas, diversas, divergentes e, algumas vezes, são convergentes. Exemplo rápido: há dez dias, a Fundação Perseu Abramo realizou uma conversa sobre a percepção política da periferia. Das quatro pessoas que estavam falando, nenhuma era da periferia. Isso não fez nenhum sentido pra gente. A gente, que faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, fez uma mega-ação blocada de todo mundo ir lá e falar: “Mano! Vocês estão loucos? Querem conversar sem botar a gente na conversa?”
Então, a disputa desse termo é justamente para dizer que a Zona Leste é completamente diferente da Zona Sul, que é completamente diferente da Norte, do Graja [Grajaú], do Campo Limpo. Toda a dinâmica comunitária é diferente uma das outras, inclusive a dinâmica de ação social. São 2 horas e 40 para colar no Colônia, no extremo Sul. Dá quase pra ir a Santos e voltar.
No último ano e meio, parece que todo mundo descobriu essa força política que as periferias têm. A pesquisa da Perseu Abramo fala sobre isso. A gente estava problematizando uma série de coisas sobre isso. Mas só agora todo mundo resolveu escutar, de uma fonte oficial, legitimada por alguém, dentro de uma pesquisa? Só o Campo Limpo tem mais de 600 mil pessoas, mas a pesquisa ouviu 90.
Escrevi um texto em que o [secretário de Cultura de São Paulo, André] Sturm falou que adoraria que o artista do Capão Redondo fosse levado para o Centro, circulasse pela cidade, mas não um rapper, e sim um músico, um artista [risos]. Quer alguém que manje mais de pesquisa de música que o KL Jay dos Racionais MC’s? Fiz um texto gigante que termina assim: “O [álbum] Sobrevivendo no Inferno foi a política pública que nenhuma prefeitura fez: me deu identidade”. Isso nos anos 90, e os saraus fizeram o mesmo nos anos 2000. Se o rap me deu o direito de existir, o sarau me deu um palco. Não só eu existo, mas tem um senhor que aprendeu a ler aos 18, hoje tem 51 anos e está no seu décimo romance. Ele é eletricista. Tem essa coisa do olhar que é uma ação de conquista que passa pelo viés cultural – o que o Sarau do Binho fez por nossa geração a gente nunca vai conseguir agradecer, mas acho que tem isso de aqui é até onde você pode ir. E o rolezinho é a prova disso.
Eu percebo isso quando a gente vai participar de alguns espaços e leva problematizações do tipo: “Não tem mulher negra nessa mesa?” E ouvi dizerem: “Nossa, esses caras são chatos, hein!” Eu falei: “Desculpa, mas vocês me convidaram para uma mesa de sete pessoas e tem sete homens? Não me sinto à vontade”. Daí eles dizem: “Mas não tem nenhuma mulher fazendo trabalho de comunicação comunitária”. Como não? Então tem uma parada de valorização, sim, principalmente porque os saraus e o rap deram uma identidade política, um norte político para o discurso. Mas, ao mesmo tempo, fica aqui no seu cantinho.
Isso fica mesmo no cantinho ou acaba sendo apropriado como se deu com o samba? Existe um paradoxo de que a periferia cria, e o reconhecimento dessa criação pelo centro é ao mesmo tempo a sua expropriação. Como lidar com isso?
Tony – O caminho se faz caminhando. Por exemplo, tem gente do hip-hop que acha que o Emicida é um vendido. Se os Racionais MC’s não continuassem cantando Diário de um Detento, eu nunca saberia que existe um preso chamado Mumia Abu-Jamal, dos Panteras Negras.
Os Racionais MC’s representam o marco do início desse movimento de valorização?
Tony – Pra mim, sim. O Sérgio Vaz e o Binho deram o palco, e os Racionais, a identidade.
Neca – Se você pensar no olhar capitalista, todos os movimentos são cooptados e transformados. Mas aí os movimentos também têm de se transformar. Porque a outra alternativa é ficar segregado, falando só com os seus amigos.
É como repartir os benefícios da biodiversidade: o mateiro descobre uma planta medicinal, mas em geral quem explora a descoberta é a indústria farmacêutica. A questão é como repartir os benefícios?
Tony – Um exemplo que vivi há um mês: uma empresa com interesse em grupos jovens me procurou, pagando uma grana que meu pai e minha mãe trabalharam uma vida pra ganhar e comprar uma casa. Eles iam me pagar isso em um mês pra eu ajudá-los a desenhar uma estratégia de comunicação para jovens da periferia. Eu fui muito direto: “Vocês querem mudar o modus operandi na forma de se relacionar?” A menina da agência: “Não, o que o meu cliente quer é vender o produto dele”, porque ele não consegue vender lá. Eu levantei, e disse: “Muitíssimo obrigado, mas não me interessa ativar consumidores. Agora, se você quiser repensar o seu modelo de negócios e quiser que a responsabilidade social não seja vista como uma área, mas como um valor institucional, aí você me chama para que a gente gere valor para as duas partes”.
Por que as periferias importam para vocês? Por que essa causa os move?
Neca – Na Fundação [Tide Setubal], a gente tem o mote de que o território importa e isso possui vários significados. As políticas públicas não podem ser políticas homogêneas que vêm direto de um órgão central de Brasília, do Oiapoque ao Chuí, como se todos fossem iguais, como se as regiões do Brasil não importassem. Estamos falando de pessoas diferentes, biomas diferentes, realidades sociais e econômicas completamente diferentes.
Então, quando dizemos que periferia importa e que o território importa, nós estamos falando de espaços diferenciados e que as políticas públicas têm de estar de acordo com aquelas realidades. Certamente, as periferias de São Paulo são diferentes entre si, como são diferentes as de Fortaleza, de Belo Horizonte, e assim por diante. Então é ter um novo olhar que leve em conta o que é aquele espaço, aquela região, qual a história, os valores, as tradições, quais são as políticas que já vieram antes, por que deram certo, por que não deram. É conseguir customizar muito mais as políticas públicas.
Somos uma instituição preocupada em combater as desigualdades, especificamente as socioespaciais. O que é o direito de circulação na cidade? Onde está a equidade? Qual é o orçamento da cidade? Como esse orçamento se divide entre as várias regiões? Se não olharmos para a desigualdade, não vamos conseguir construir esse país que está sendo falado aí. Não estamos falando de 5%, 10%, estamos falando de 30%, 40% da população em nível de pobreza. É muito significativo.
Tony – Importa porque é uma força de trabalho da cidade muito forte. Hoje eu tinha uma reunião às oito e meia, peguei o trem às seis e vinte para conseguir chegar em tempo e o trem estava lotado – é um fluxo migratório mesmo. A gente está sempre falando em termos relativos. Quando você olha para dentro do Campo Limpo e você vai para o sul, percebe que nas bordas existe a periferia da periferia. É assim em Paraisópolis. Tem uma avenida principal onde as casas são triplex, como diz o Criolo [na faixa Grajauex], duas lajes é triplex. E você tem a grota. Ninguém quer colar na grota, porque lá é onde o bicho pega. Acho que por isso é importante problematizar essa coisa do plural.
Neca – Uma vez, na Secretaria de Educação, ouvi uma apresentação de um pesquisador mostrando que os resultados de educação das escolas das periferias não eram tão distintos dos resultados consolidados de outras regiões – justamente porque não se leva em conta essa diferença. A desigualdade está dentro de cada uma dessas regiões, por isso é mais complexo. Cada região reproduz a mesma lógica da cidade. As escolas que estão no centro regional têm os melhores professores e alunos com melhor nível cultural. À medida que se distanciam do centro, as desigualdades são maiores. Os dados encobrem esse cenário. A gente aqui na Fundação está começando a discutir muito como trabalhar os dados e traduzi-los, porque esses dados estão todos blocados.
Tony – Eu gosto muito dessa coisa do “fazedor”, que sempre existiu e agora leva um nome oficial, “empreendedorismo social”. Essas pessoas vão emergindo por absoluta necessidade. Então, estou gravando agora uma série de entrevistas para lançar um podcast em junho e a pessoa fala assim: “Ah, que legal, fulana no Campo Limpo empreendeu né?” Imagina! Ela estava sobrevivendo. Ela nunca foi no Sebrae. É muito louco, porque, se as políticas públicas não chegam, esses fazedores começam a emergir porque precisam resolver um problema e a gente sabe que ninguém vai resolver. Um exemplo disso é o shopping-trem – o shopping-trem é maravilhoso. As pessoas ficam horas no trem e já compram tudo ali mesmo. Os produtos são lançados primeiro lá.
Essas iniciativas amenizam, mas não transformam a ponto de resolver o problema da desigualdade. Só o Estado pode dar escala às transformações?
Neca – Eu diria, em uma resposta rápida, que sim. Só o Estado tem o poder de alcance e tal para dar escala. Mas que Estado?
Nenhuma fundação ou coletivo vai resolver nada isoladamente, mas a importância dessas iniciativas é influenciar, mostrar, fazer advocacy, fazer pressão. Essa é a escala possível para as fundações e coletivos: poder influenciar, trazer luz, provocar o debate, incomodar.
Tony – Percebo um movimento bem interessante. Metade do que sou se deve ao Projeto Arrastão. Foi ele que abriu a minha cabeça e me apresentou pra tudo que conheço. Só fiz faculdade por causa da Fundação Abrinq, que tinha o programa Virada de Futuro. Formou uma geração, todo mundo da minha turma saiu criando coisas que não eram ações sociais, mas algo assim: como é que eu pego esses valores que me foram ensinados, abraço uma atividade que gosto muito e pulverizo. O Rubens foi para a dança, eu fui para comunicação, o Washington foi para o teatro. A gente termina a nossa jornada lá no Arrastão, sai e vai criar coisas. Ficamos quatro ou cinco anos criando coisas.
O projeto Arrastão era socioeducativo, daí vem o Escola de Notícias e trabalha com Antroposofia, coisa que ninguém falava lá. Aí um outro grupo – Leo, Sheyla, Fran –, sai de lá e fala e a gente vai trabalhar com mobilidade. Ninguém falava de mobilidade lá. E só falou de mobilidade porque o olhar diferente da Escola de Notícias, que foi formado pelo olhar diferente do Arrastão, fez com que eles pensassem: “Peraí, não é só o [Programa Escola] Bike Anjo que entende de mobilidade.
Esse é um exemplo de como se está rompendo um ciclo, por isso que ninguém está entendendo nada do que fazer na periferia. E essa galera que está vindo pergunta: “Tony, o que você vai fazer depois da Escola de Notícias?” Existir, né! Existir já dá trabalho pra cacete. Já ouço alguns financiadores dizerem: “A sua geração está saindo muito rápido do projeto que criou”. Eu respondo: “Lidem com isso! A nossa geração é uma geração multilutas e não vai ficar em um lugar só”.
E qual é a próxima luta?
Tony – Em breve nascerá a Historiorama, que vai desenhar conteúdos e experiências para que as pessoas usem a comunicação para restaurar a sua autonomia. Essa é a brincadeira. Estou desenhando um jogo de cartas para que as pessoas tenham conversas profundas, não sobre o que elas fazem, mas sobre quem elas são. As conversas genuínas nascem de quem a gente é, não do que a gente faz.
Queria muito entender como este aparelhinho [mostra o celular] cria experiência que me dá possibilidade de autonomia sobre a minha vida. Informação é poder. Aprendi com o meu pai quando a polícia entrou em casa sem mandado e meu pai comprou uma Constituição e começou a ler. E ele falou: “Agora ninguém nunca mais vai entrar aqui, porque eu sei o meu direito”. É isso. Se a gente conseguir usar toda a tecnologia a nosso favor para criar experiências cidadãs, empáticas, a gente restaura a nossa autonomia.
Tem muita potência nas periferias, mas o que aparece é o estereótipo da carência.
Neca – Tem múltiplas potências, mas também existem muito menos recursos, mesmo. E há um preconceito muito forte em relação à periferia. É preciso se virar muito mais para conseguir que o empreendedorismo dê certo. Você [Tony], o Binho, o Sérgio Vaz têm uma rede de conexão, mas outros não conseguem.
Tony – Quando eu era menino, o que mais me irritava era quando a TV nos apresentava como jovens carentes. Carente não é sobrenome. E o padrão de carência é interessante, porque em geral é um padrão econômico. Mas, como o meu valor não passa simplesmente pelo econômico, para mim não existe carência nesse sentido. Alguém como a Suzane von Richthofen, para mim, é carente de humanidade, amor, afeto.
Eu brincava com os repórteres: “Quando fala de carência, você se refere a quê?” Essa coisa do carente emerge bastante, porque a visão de mundo é estabelecida pelo econômico. E não é assim que funciona.
Quando a gente vai falar de indicadores sociais, eles também não consideram os ativos intangíveis, criativos. Os indicadores captam ainda menos que a gente imagina?
Neca – Tenho uma diferença com análises que consideram apenas dados quantitativos, porque precisam ser demonstrados com regressões e grandes gráficos. Tudo o que não é medido, mensurável, sai fora desse tipo de análise. Por exemplo, como medir o que é um bom professor? Muitas das competências para ser um bom professor não são mensuráveis quantitativamente. Não dá para medir, por isso não se leva essa informação em consideração. Mas como se pode tirar da análise o professor, que é quem mais impacta na educação, como demonstram as pesquisas nacionais e internacionais? Essa questão dos indicadores é importante, mas precisamos amadurecer muito, de modo a articular dados quantitativos e qualitativos. Enquanto isso, desperdiça-se muito dinheiro público em projetos que às vezes viram espuma.
Falamos sobre preconceito agora há pouco. Neca, você, que é de uma família da elite econômica, sofre preconceito pelo fato de ser da elite, de uma família de banqueiros?
Neca – Já sofri muito ao longo da vida. Tinha dificuldade em lidar com o sobrenome e tudo com o que a família representa. Eu, que sempre atuei na área social e de educação, me sentia culpada com essa ambiguidade. É uma questão sempre difícil. Quem não me conhece já me rotula. Mas já foi pior, porque hoje já tenho uma trajetória e isso fez com que eu seja hoje mais reconhecida pela consistência dessa história do meu trabalho profissional e da minha vida pessoal.
E o que despertou lá atrás essa vocação social em você?
Neca – Eu estudei em um colégio de freiras experimental, o Nossa Senhora do Morumbi. As freiras que estavam atuando para aquele grupo experimental eram superjovens – a maioria delas logo depois largou a escola e foi para a Teologia da Libertação. Nessa fase, tive uma educação voltada para direitos e justiça social. Foi ali que comecei a me ligar no tema. Depois fiz Ciências Sociais. Sou de uma família de banqueiros, mas que sempre respeitou muito as minhas posições. Gostavam de um debate, valorizavam a liberdade de expressão e de escolher os próprios caminhos.
Tony – Essa porrada existe aqui e existe do outro lado também. Um monte de gente hoje não gosta do Mano Brown, porque ele faz show no Credicard Hall. O Brown não está preso mais, ele está falando de outras coisas. Mudou, já passaram 24 anos. Vamos libertar. A gente não precisa de herói. A gente não está se escutando. Eu trouxe o Caco Barcellos [do programa Profissão Repórter] no início da Escola de Notícias. “Pô, mano, vai trazer logo um cara da Globo?” Mas é o Caco Barcellos, não é a Globo. Como diz Manoel de Barros, é preciso transver o mundo.