As periferias de grandes cidades como São Paulo são territórios onde a maioria das pessoas vive em situação de carência e vulnerabilidade. Falso ou verdadeiro?
Responder essa questão não é tão simples quanto poderia ser duas décadas atrás. De lá pra cá, por razões ainda não totalmente decifradas, provavelmente por falta de distanciamento no tempo, tem surgido nas periferias e favelas tantas iniciativas autênticas no campo das artes e do conhecimento que, somadas, sugerem ser possível uma interrupção na polaridade centro-periferia.
Um bom começo para tentar entender o turbilhão de ações criativas de âmbito cultural, social e econômico que movimenta e areja a vida nas periferias das capitais brasileiras é ler a esclarecedora Carta da Maré – Manifesto das Periferias. Escrita a muitas mãos de várias nacionalidades durante o Seminário Internacional de Periferias, realizado em abril no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, diz a Carta:
“(…) a definição de periferia não deve ser construída em torno do que ela não possuiria em relação (…) a um centro hegemônico. Ela deve ser reconhecida pelo conjunto de práticas cotidianas que materializam uma organização genuína do tecido social com suas potências inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território.”
Claro que o documento inclui também uma extensa lista de desafios voltados para a redução da desigualdade e o bem-viver, mas o enfoque é a valorização das potencialidades existentes nos bairros periféricos. O geógrafo e dirigente do Observatório de Favelas Jailson de Souza e Silva, um dos autores da Carta, explica que há um tipo de olhar “domesticado” que impede algumas pessoas de ver beleza em lugares como a Maré, onde vivem mais de 140 mil moradores em cerca de 40 mil habitações. “[Alguns visitantes] não conseguem ver nenhuma beleza na favela, não enxergam a intensidade das ruas, a sensualidade presente na juventude, a criatividade nas experiências culturais e artísticas, o valor das crianças brincando soltas, as músicas, as danças.”
Outra possibilidade para entender esse novo conceito de periferia pode-se notar ao dar uma conferida in loco nas quebradas. Para quem tem o hábito de só frequentar eventos no Centro Expandido de São Paulo, participar de um dos muitos saraus que acontecem semanalmente em vários bairros mais afastados pode ser instrutivo. No mínimo, aprende-se que de fato está míope quem só enxerga carência e violência nas periferias.
Só na Zona Sul da cidade é possível optar entre o Sarau da Cooperifa, o mais antigo de todos, o do Binho, o Preto no Branco, o Sobrenome Liberdade, entre vários outros ainda não tão badalados. Na Cooperifa, a qualidade dos versos, o tempero dos quitutes do Zé Batidão – o dono do bar que abriga o movimento –, a temperatura da cerveja e o astral despojado, alegre e participativo da “plateia” são capazes de facilmente transformar um visitante pontual em frequentador contumaz.
Cidade em pedaços
O velho Aristóteles dizia que a cidade ideal seria aquela que do ponto mais alto fosse possível enxergá-la toda. A ideia presente nesta concepção de pólis, segundo o economista e sociólogo Marcelo Paixão, professor do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana e do Instituto de Estudos Latino-Americanos Teresa Lozano, da Universidade do Texas (EUA), é a de que os habitantes, mesmo não sendo uma família, são como se fossem, pois há ali uma relação de identidade. “Se as pessoas de uma determinada comunidade política ou social não compartilham valores nenhum, [as relações] acabam virando uma grande confusão com todo mundo batendo cabeça.”
De certo modo, a reflexão do acadêmico descreve o que de fato ocorre nas grandes cidades em razão da polaridade centro-periferia. Haveria nessas relações, segundo ele, uma alteridade sem simetria de poder e de direito. “O centro pode muito e a periferia atua servindo ao centro.” Ou seja, o centro absorve das periferias mão de obra barata e isso, em princípio, significa uma melhor posição. Mas não. Para Paixão, mesmo que a criminalidade fosse zero, ninguém sai ganhando com uma cidade toda fragmentada em dimensões hierárquicas.
Como em qualquer tipo de instituição, comunidade ou agrupamento humano, quando se está fundamentado nessa lógica da fragmentação, as relações se traduzem em uma crise permanente, na qual ninguém se sente confortável. O que os dois lados perdem? O sociólogo explica que, nas relações, um polo não pode ser compreendido sem o outro. “Como dois territórios estranhos, o centro não pode entender o que a periferia tem de mais legal nem usufruir das formas de manifestação cultural ou dos espaços coletivos de sociabilidade que poderiam ser vividos por ambos. Do mesmo modo, a periferia poderia também ter no centro um local que fosse seu.”
Ponto de vista
O produtor cultural britânico Paul Heritage, professor de Artes Cênicas na Queen Mary Universidade de Londres, também tem um bom argumento para mostrar o que podem estar perdendo aqueles que fecham os olhos para as periferias. Imagine o mundo sem Shakespeare. Por não frequentarem as periferias da cidade, quantos londrinos deixaram de conhecer pessoalmente aquele que viria a ser o dramaturgo mais influente de todos os tempos? O bardo e sua trupe encenavam os espetáculos bem à leste do Rio Tâmisa, em uma das periferias mais degradadas de Londres na época. “Shakespeare hoje parece ser um autor do centro, e o meu trabalho é exatamente ‘descentralizá-lo’”, conta o inglês.
Para explicar como se “descentraliza” Shakespeare, Heritage começa lembrando que o conceito de periferia não é apenas geográfico. “É também de identidade.” A universidade, por exemplo, é central na formação de conhecimento, mas dentro da instituição há disciplinas diferenciadas situadas na periferia do ensino, entre elas as Artes Cênicas. “O teatro é um ato crítico e Shakespeare reunia nos séculos XVI e XVII cerca de 3 mil pessoas em um espetáculo. Tinha potencial para desafiar as autoridades. Por isso seu teatro era na periferia, onde aconteciam as lutas, as execuções, onde se fazia sexo, onde se amava, onde havia jogos ilegais. Gosto de pensar o teatro de Shakespeare assim – diz Paul Heritage. Ele adorava estar nas periferias.”
Quando desembarcou no Brasil, em 1991, o produtor cultural foi trabalhar em presídios, onde por 15 anos produziu peças teatrais com detentos, detentas e guardas. Essa experiência lhe mostrou que, de um ponto de vista periférico (para ele, as cadeias são como periferias), é possível enxergar o mundo com mais clareza, ideia que guarda semelhança com a do grego Aristóteles. “Às vezes, quando precisamos avaliar algo que já conhecemos muito bem, é preciso se deslocar. A periferia não é um lugar apenas para ser visto, é um lugar de onde a gente consegue ver [o mundo] de forma diferente”, reflete Heritage, que atualmente trabalha no eixo Brasil-Reino Unido com movimentos culturais populares como o Nós do Morro, da Favela do Vidigal, na Zona Sul do Rio, e o grupo AfroReggae. “Aprendi aqui que, para Shakespeare, aquela região onde ele montava as suas peças era o melhor ponto de vista para olhar o rei, a coroa, a cidade.”
Sujeito periférico
Criado em um bairro da Zona Leste paulistana, o sociólogo Tiarajú Pablo D’Andrea, em sua tese de doutorado, defendida no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, atribui à obra do grupo de rap Racionais MC’s, cujo primeiro disco é de 1988, a criação de um novo entendimento sobre o que seja periferia e a forte influência na autoimagem que os moradores passaram a ter de si mesmos.
Intitulada A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e política na periferia de São Paulo, a pesquisa trata do processo de surgimento desse sentimento centrado no orgulho da condição de “sujeito periférico”, termo que autor utiliza para definir o “indivíduo que passa a agir politicamente a partir desse orgulho”.
As letras das músicas do Racionais MC’s são altamente críticas e costumam enfatizar o discurso da falta, da pobreza e da violência. Mas também abordam as potencialidades da população. Em uma delas, Trutas e Quebradas, o grupo, integrado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, homenageia dezenas de bairros nos arredores da cidade de São Paulo e vários de seus personagens:
“… Não sei de nada./ Não salvo e amo quem me ama./ Desprezo o zé-povinho e amo a minha quebrada./ Obrigado Deus por eu poder caminhar de cabeça erguida./ Ae Jaçanã, Serra Pelada, Jardim Ebron de fé./ Firmeza Valcinho./ E ae 9 de julho, é nós./ Wellington, Pulguento, tá valendo./ Calibre do gueto, Raciocínio das ruas, Relatos da invasão… é a caminhada certa./ Serrano, resistente, firmão./ Ei, Valdiza sem palavras, hein?/ Jairão tá no coração, irmãozão./ Garotos de periferia sacode a rede/ que vocês são o amanhã, certo? …”
A psicanalista Maria Rita Kehl chegou a analisar o notável sucesso do grupo em seu livro A Fratria Órfã (Olho D’Água, 2008): “É a capacidade de produzir uma fala nova e significativa sobre a exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical de massas do Brasil dos anos 1990”. Para Tiarajú D’Andrea “… [os Racionais MC’s] foram os principais expoentes de uma nova forma de enxergar os territórios da pobreza no Brasil, e, por extensão, o próprio Brasil… É fato que após o surgimento do grupo e do impacto do discurso por eles elaborado nunca mais a visão sobre a periferia foi a mesma.”
O que se quer olhar?
Em meados do ano passado, o Datafolha Instituto de Pesquisas e a Fundação Tide Setubal realizaram um levantamento em São Paulo em que 46% dos moradores (foram ouvidas 2.017 pessoas de todas as regiões da cidade) associavam periferia à pobreza e à violência. Segundo o relatório, 4 em cada 10 moradores declararam evitar bairros periféricos e um quarto dos entrevistados disse ter sofrido preconceito em razão do local onde mora. Os indicadores oficiais tampouco costumam ser portadores de boas notícias sobre as periferias.
Mas esses números representariam uma verdade absoluta? Jailson Souza e Silva critica a metodologia aplicada em indicadores de órgãos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre outros. “O IBGE chama favela e periferia de aglomerados subnormais e todos os seus indicadores são negativos. O Ministério das Cidades usa o termo assentamento precário. A mídia e pessoas em geral falam em comunidade carente. E o Ipea chama as pessoas abaixo de um determinado nível de pobreza de ‘indigente’. Todos os juízos são marcados negativamente. Como alguém vai ter orgulho de nascer na favela, se é impelido a ter vergonha da sua cor negra, de morar numa quebrada, de seus pais serem trabalhadores manuais e terem origem nordestina?”
Em sua opinião, esses indicadores oficiais nem sequer expressam a verdade. Ele duvida dos índices que dizem que bairros como Higienópolis (região central de São Paulo) ou Morumbi (na Zona Sul) não têm nenhuma vulnerabilidade, enquanto o vizinho Campo Limpo e São Miguel Paulista (no extremo leste) são intensamente vulneráveis. “Por esses indicadores, o Morumbi e Higienópolis são paraísos terrestres”, afirma. “Mas que indicador é esse que não mede a capacidade de as crianças brincarem juntas na rua? Nesse sentido, onde a vulnerabilidade é maior, no Morumbi ou em São Miguel Paulista? E a capacidade das pessoas de se reunir para produzir coisas coletivas, onde é maior, em Itaquera ou em Higienópolis?”, questiona Jailson Silva.
Aline Anaya, pedagoga e poeta que atua no Coletiva Audácia, grupo feminista “de quebrada” que busca dar visibilidade a mulheres negras e periféricas através de atividades socioeducativas, é por si só uma resposta aos questionamentos do sociólogo ativista da Favela da Maré. Ela tem 26 anos e faz tempo que trocou os programas que fazia nas regiões centrais de São Paulo pelos da Zona Sul. Frequentadora assídua de saraus, onde apresenta suas poesias, para ela a arte tem mesmo um papel fundamental nesse processo que está mudando o jeito de ser periférico. “A arte atrai pessoas e proporciona identidade”, afirma.
Apesar de crítica quanto a algumas letras dos Racionais MC’s, a poeta acredita que o grupo teve, sim, um papel preponderante nessa transformação, pois introduziu um caráter político à condição de ser periférico. “Essa pauta nos levou a fazer uma busca ancestral sobre quem somos – a periferia é construída por pessoas pretas e indígenas. Tudo isso mudou o meu olhar. Tenho muito orgulho de ser preta e periférica”, disse Anaya, antes de dar uma palinha da sua arte: Na mira do meu sonho./ Na contradição do solo./ Eu na vida me exponho./ Minhas dores eu boto no colo./ Saudade é rio que curva./ Na margem da solidão./ Eu sou um peixe dentro d’água./ Eu já nem me afogo em ilusão/.
As opções de vida feitas por Loredana de Oliveira, 29 anos, produtora multimídia, comunicadora visual, poeta e frequentadora dos saraus da Zona Sul paulistana, também reforçam as dúvidas de Jailson Silva quanto à percepção dos indicadores que medem a qualidade de vida nas periferias. Ela nasceu em um bairro pobre de São Paulo, foi adotada ainda bebê por uma família italiana e criada em um bairro “nobre” da capital. “Quatro anos atrás, fiz o caminho inverso”, diz ela. “Fui criada na burguesia e voltei para a periferia por opção.”
Esse regresso começou a despontar quando ela passou a dar aulas para crianças moradoras de ocupações em São Paulo. Por gostar de escrever poesias e por ser mulher negra, foi gostando de frequentar os saraus. Daí a se mudar para um bairro do extremo sul não demorou. “O Brasil é um país muito preconceituoso e ser uma mulher negra dentro de uma realidade branca não é fácil. Eu não tinha nem noção da minha identidade de mulher negra até vir parar aqui de volta”, revela. Fluente em inglês e italiano, a comunicadora que hoje trabalha ensinando línguas estrangeiras em coletivos voltados para a educação afirma: “Aqui me sinto mais à vontade, mais eu mesma”.
O espírito local
Para os gregos e os romanos, todo local (podia ser a casa, a rua ou um pequeno bairro) era dotado de um genius loci. Trata-se de uma divindade ou um espírito que protege ou dá uma certa identidade ao lugar. O arquiteto italiano Aldo Rossi recuperou esse conceito para reforçar suas críticas à vertente do modernismo que, na primeira metade do século XX, propunha uma arquitetura mais racional e funcional que resultava em uma concepção urbanística planejada e asséptica. Ou seja, faltava nela o genius loci.
Em contraposição, na década de 1970 entra em cena o chamado pós-modernismo, “que passa a valorizar nas cidades o encontro das pessoas, as esquinas, o boteco, a calçada, o sabor da vida urbana, as ruas tortas, os becos, enfim, a vida real”, como afirma o arquiteto e urbanista Marcos Cartum, ex-professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos. Agora, no século XXI, é a globalização que chega e põe em risco a identidade nas grandes cidades e os bairros periféricos, por sua vez, tornam-se repositório do ritmo da vida urbana que vai perdendo as suas características no centro. “Paradoxalmente, explica Cartum, a essência identitária do centro vai ficando cada vez mais na periferia.”
Vítima de uma perversidade especulativa, o centro histórico e afetivo da cidade, para onde ainda convergem os eixos radiais, segundo o arquiteto, foi se pulverizando em policentros e tornou-se obsoleto. Já foi abandonado pela elite econômica, que prefere os shopping centers, e agora vem sendo ignorado também pelos moradores das periferias, que preferem ocupar e dar nova identidade aos seus próprios bairros. O resultado é um vazio e eventuais reocupações desse centro-referência por moradores de rua. “Ou seja, o centro vai deixando de ser a antítese da periferia e passando a ser a própria periferia.” (Colaborou Amália Safatle)
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