Um redemoinho enorme passa à nossa frente. Como não lembrar dos xapiris sobre os quais tanto nos conta Washington Novaes em seu diário em 1984? São espíritos presentes em todos os seres vivos, que circulam pela aldeia e pelas matas, e são associados à saúde, à doença, à vida e à morte. Podem ser vistos com pajelança e tantas outras manifestações que, para nós, brancos, são inimagináveis
Por Antônio Reis Jr.*
Sexta feira, 12 de agosto de 2022
Durante a madrugada, ouço o som das flautas de bambu e dos cantos. Acordamos bem cedo e a aldeia já parece movimentada, com grupos alinhados no terreiro, cantando e dançando, juntos e afinados. Uma fina poeira vermelha se levanta enquanto os pés batem ritmados no chão. Forma-se uma nuvem cor de terra. O ar seco, o sol forte e o calor na aldeia são intensos, Bebemos água a toda hora, que vem de um poço artesiano da casa de Tabata, mas isso pouco mata a sede.
Os Kuikuro, anfitriões do Kuarup na Ipatse, estão recebendo nesta sexta-feira outras etnias, como os Kamaiurá e os Mehinako – estes também farão seu Kuarup na semana seguinte, em sua própria aldeia.
Tomamos café com nossos novos amigos da família Novaes e vamos ao terreiro, essa grande praça pública, para observar mais de perto os tocadores. Estão próximos à Casa do Homens, no centro.
No caminho, encontramos um jovem Kuikuro chamado Afukana, vizinho de Tabata, e iniciamos uma conversa. Ele se prepara para as competições de Huka Huka, uma luta corporal que ocorre em dois dias, nessa sexta e no próximo domingo 14 de agosto, quando as principais disputas ocorrerão. Esse grande evento encerrará o Kuarup.
Ele nos conta que havia sido campeão em sua modalidade – tem por volta de 30 anos – e que depois foi superado pelo irmão mais jovem. Mas continua competindo e esta, de fato, entre os melhores do “torneio”, como vemos depois. Ele nos mostra os braços, as pernas e o dorso arranhados por um pente feito de casca de coco com dentes de peixe-cachorro fixados, com pontas muitíssimo afiadas.
Com o pente, arranham o corpo como guerreiros em preparação para o Huka Huka, fortalecendo seus músculos e corpos tonificados. Depois, despejam água com folha de pequi macerada para evitar inflamações. E, em algumas ocasiões, de grandes disputas, colocam pimenta também após os arranhões.
Os arranhões parecem escarificações, embora não deixem marcas no corpo com o tempo. Os adolescentes de algumas etnias do Alto Xingu também têm seus corpos arranhados durante o período de reclusão, como parte dos ritos de passagem para a vida adulta. E a prática também está associada, entre mulheres e homens adultos, a renovação da pele, embelezamento e fortalecimento.
Afukana nos convida para entrar em sua casa, esperava por isso há tempo! O sol está a pino. Antes de entrar, um redemoinho enorme passa à nossa frente, como uma nuvem em espiral. Como não lembrar dos xapiris sobre os quais tanto nos conta Washington Novaes em seu diário em 1984? São espíritos presentes em todos os seres vivos, que circulam pela aldeia e pelas matas, e são associados à saúde, à doença, à vida e à morte. Podem capturar a alma das pessoas e levá-las para a floresta. E podem ser vistos com pajelança e tantas outras manifestações que, para nós, brancos, são inimagináveis.
Entrar no interior da casa comunal da família de Afukana é muito interessante. O ambiente é fresco, com uma brisa circulando na ventilação cruzada que atravessa as duas portas alinhadas, de um lado e de outro da casa. Ela é sustentada por dois grandes pilares de troncos grossos e amparados por uma viga imensa, por onde desce a estrutura curvada até o chão, toda coberta de sapé e de base ovalada.
O pé direito é muito alto e há um amplo espaço comum, levemente dividido com panos coloridos ocultando algumas redes estendidas e amarradas na estrutura lateral. À noite, pequenas fogueiras esquentam a casa e aquecem os corpos. Para minha companheira Ligia Rocha, uma arquiteta, esta é uma experiência impactante, um choro emocionado de alguém que pensa em cidade e encontra uma aldeia, e percebe a ciência dessa morada que em entramos pela primeira vez.
Saímos, agradecemos a acolhida e desejamos um bom combate no Huka Huka, lançando a promessa que torceríamos por ele. A luta teria início as quatro horas, na frente da Casa dos Homens, em destaque no centro da aldeia, com uma grande tenda armada com troncos finos e bambu para abrigar os participantes da cerimônia.
Às quatro em ponto, nós nos dirigimos ao centro do terreiro onde os homens já estão preparados para os combates. Um festival de corpos pintados, de múltiplas cores, com tecidos amarrados nas pernas, cinturas e braços. Cabelos pintados com urucum, corpos inteiros com argila branca e grafismos com linhas pretas de jenipapo e de carvão vegetal – com os quais preparam pigmentos – e também nanquim e tintas sintéticas. As maquiagens dos meninos e meninas são estonteantes, diferentes entre si, parecendo obedecer apenas à infinita criatividade das crianças.
Além de tecidos coloridos na canela, os lutadores protegem seus joelhos com panos bem grossos que os resguardam dos impactos durante os combates – o que não evita sérias contusões, nos ombros e joelhos, como nos contou Afukana.
Estão presentes, além dos Kuikuro, os Iawalapiti, os Kalapalo, os Waurá, e os Kamaiurá, mais de uma centena de homens, mulheres e crianças no centro da grande aldeia circular. Ao que parece, a Ipatse é uma aldeia de referência para o povo Kuikuro, a maior população entre as etnias do Alto Xingu, com 653 indivíduos distribuídos por extenso território. Conta também com uma Unidade Básica de Saúde, em casa de alvenaria, uma escola de ensino fundamental e um carro com uma brigada de prevenção a incêndios que neste período seco, são grande ameaça à aldeia.
Os Kuikuro foram convencidos a mudar para dentro do Parque Indígena do Xingu por Orlando Villas-Boas no início da década de 1960, sob o argumento de que sua existência estaria comprometida no território em que ocupavam, pois o avanço dos fazendeiros, grileiros e das atividades de mineração já ameaçavam as terra indígenas naquela época. Essa contribuição dos Villas-Boas é controversa entre alguns Kuikuro mais jovens com quem conversamos.
Antes dos combates, cantos e danças. No Huka Huka os lutadores se aproximam, giram no mesmo sentido, olhando-se nos olhos, soltam sons graves, abrem os braços e se lançam ao chão de joelhos. Agarram-se pelo pescoço e tentam derrubar o adversário ou tocar por alguns instantes em seu tornozelo ou atrás do joelho. Quando isso acontece, temos um vencedor. E muitos empates, que nós não entendemos como se dão. A impressão, inclusive, é de que nós, brancos, não percebemos parte importante dos significados dos gestos, movimentos e sons em profusão, levantando densa poeira suspensa no ar.
Leia aqui o dia anterior da jornada. A seguir, o quinto dia.
*Antônio Reis Jr. é historiador, doutor em Educação e professor universitário na área de História e Comunicação Social. Neste diário de viagem, ele e sua companheira imergem no ritual do Kuarup, no Parque Indígena do Xingu, que neste ano tem entre os homenageados o jornalista e ambientalista Washington Novaes, morto em 2020.